Marco Scarassatti | Crônicas Sonoras de Cabo Verde, entre São Vicente e Santo Antão
Título | Crônicas Sonoras de Cabo Verde, entre São Vicente e Santo Antão
No final de janeiro de 2015 parti, junto com a pesquisadora e poeta Míria de Oliveira, para uma Missão de Estudos e Pesquisa em Cabo Verde, dentro de um projeto de mobilidade internacional e de cooperação acadêmica financiado pela cooperação CAPES/AULP. Esse projeto era uma das conquistas da política de afirmação das relações culturais, econômicas e científicas entre países da língua portuguesa, da discussão em torno da diáspora africana e do reconhecimento dos saberes produzidos nos países latino americanos e africanos. É bom lembrar que esse projeto existiu durante os anos de 2012 e 2017, período que antecedeu à ascensão conservadora no Brasil.
Meu objetivo na viagem era inicialmente fazer uma Cartografia Sonora de Cabo Verde, coletando sons da natureza, sons humanos (culturais ou ligados ao trabalho) e sons advindos da tecnologia humana.
O mar imperioso e intenso parecia conduzir suas ondas a adentrar e escorrer pelas areias escuras, ao mesmo tempo em que, quando as atirava contra as encostas de pedra, fazia percutir as ilhas em explosões acústicas.
É o mar quem estabelece a relação de trânsito constante entre as ilhas que compõe o arquipélago Cabo Verde, sobretudo entre as ilhas de São Vicente e Santo Antão, ilhas nas quais concentro esse trabalho. Ali um Ferry Boat faz o transporte diário entre as ilhas levando e trazendo trabalhadores, documentos, pertences e histórias de parentescos, rivalidades e amores, boa parte deles cantados em mazurcas, mornas e outros gêneros locais.
Quando cheguei à Mindelo era carnaval e a ilha é conhecida pelo seu Carnaval brasileiro, com escolas de samba, carros alegóricos, ao mesmo tempo que também conta com a resistência de um carnaval anárquico, desinstitucionalizado e quase tribal dos Mandigas.
Em Santo Antão escuta-se o correr das águas no período das chuvas por sobre os inhames. Na chegada à ilha fui recepcionado por um pilão triturando milho, num acontecimento de sincronia e ritmo entre três mulheres. Essa sonoridade dos corpos no trabalho juntou-se, em minhas memórias, ao som da faca arrancando as escamas dos peixes no Mercado dos Peixes de Mindelo, capital de São Vicente e que, assim como Santo Antão, também tem áreas rurais, pequenas chácaras e balneários. Na medida em que se atravessa a ilha ficam claras as gradações microregionais. Foi ali que encontrei um moinho de vento e a prosa tranquila de dois trabalhadores.
Santo Antão é misteriosa, mística. Na estação da rádio de Paúl, uma de suas principais cidades, encontrei um grupo de músicos que gravava um samba para concorrer a um prêmio durante o carnaval de Mindelo. Conversa vai, conversa vem, eles começaram a lembrar da Mazurca, pedida e provocada pelo Manuel, motorista e grande amigo que fiz na ilha. Gravamos várias. E como num presságio, alguns dias depois encontramos a rainha das Mazurcas, a caminho das Fontainhas… lugar mágico.
O vento foi um cantante personagem de todas as histórias vividas. E seu ininterrupto movimento contrastava com a imagem das nuvens desenhadas, quase estáticas num céu azul pintado. Ele parece vir do horizonte, de onde as formas misteriosas se agigantavam, nos espreitavam e protegiam. O vento também foi o sopro que acompanhou a palavra de todos, do sussurro ao grito, em todas as ilhas, idiomas e variantes. Como fala, verso, rima, relato, ou canção.
Entre o carnaval brasileiro de Mindelo e as incursões no Mercado Municipal e dos Peixes, conheci Seiva, um rapper local, figura forte com um trabalho importante já registrado. Seu sonho é sair de Cabo Verde pra tocar sua música.
Sua rima juntei ao barco, ao mar, à faca no peixe, ao pilão…
A reescuta de cada um desse momentos tornou-se uma crônica sonora das experiências vividas em Cabo Verde.
FICHA TÉCNICA
Gravação, mixagem e composição | Marco Scarassatti. Fevereiro de 2015.
Canção “Bingala d’Pó”, Frank Cavaquim.
Músicos de Santo Antão | José Leite, Romario Santo, Bebeth Santos, Edmilson Cruz, Manuel da Cruz Fortes.
Participação especial | mc Seiva com a rima: “Lambedores”.
Agradecimentos especiais | Miria Gomes, Aracy Alves Martins, Manuel da Cruz Fortes, Nelson Pinton, Pedro Matos, Clarisse Alvarenga, Paulo Raposo, Bruno Nunes, Daniel Nunes e Julio Pattio.
Masterizado por Andre Veloso.
Fotografias | Marco Scarassatti.
Lançado em Junho de 2019, numa co-edição Autogenesis Magazine, Berlim e La Petite Chambre Records, Belo Horizonte.
Disponível em | https://lapetitechambrerecords.bandcamp.com/album/cr-nicas-sonoras-de-cabo-verde
Marco Scarassatti
E-mail: marco_scarassatti@yahoo.com.br
SCARASSATTI, Marco. Crônicas Sonoras de Cabo Verde, entre São Vicente e Santo Antão. ClimaCom – Povos ouvir – a coragem da vergonha [online], Campinas, ano 6, n. 16. Dez. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/marco-scarassa…-e-santo-antao/
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SEÇÃO ARTE | POVOS OUVIR – A CORAGEM DA VERGONHA | Ano 6, n. 16, 2019
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