Mantendo viva a cultura Kaingang – entrevista com Constantino Jorge da Silva

Nesta entrevista, Constantino Jorge da Silva, Constantino Kaingang, professor na escola indígena Índia Vanuíre em Tupã, São Paulo, conversa com Rayane Barbosa e traz a sabedoria do seu povo, ensinando sobre o profundo respeito pela cosmologia.

Desenho de Rayane Barbosa

ClimaCom –  Rayane Barbosa

Na minha época escolar, o contato com a educação territorializada se fortaleceu a partir de práticas pedagógicas que envolviam o preparo de artesanatos e as histórias contadas por professores e pelos mais velhos. Foi a partir desse movimento, que aprendi a escutar e praticar

Nesta entrevista, Constantino Jorge da Silva, Constantino Kaingang, professor na escola indígena Índia Vanuíre em Tupã, São Paulo, conversa com Rayane Barbosa e traz a sabedoria do seu povo, ensinando sobre o profundo respeito pela cosmologia.

Desenho de Rayane Barbosa

ClimaCom –  Rayane Barbosa

Na minha época escolar, o contato com a educação territorializada se fortaleceu a partir de práticas pedagógicas que envolviam o preparo de artesanatos e as histórias contadas por professores e pelos mais velhos. Foi a partir desse movimento, que aprendi a escutar e praticar um diálogo com as formigas, o beija- flor e o milho, elementos que fazem parte da cosmologia Kaingang e que trago na minha escrita a partir de uma educação voltada ao diálogo com o território e saberes. Você, como professor e liderança, poderia me dizer como você traz as plantas, rios e toda diversidade cultural a participarem das suas aulas?

 

Constantino Kaingang

Boa tarde, meu nome é Constantino Jorge da Silva. Sou professor na Escola Estadual Indígena Vanuíre, localizada na Terra Indígena Vanuíre. Trabalho com alunos dos anos iniciais, especialmente do 4o. e 5o. ano, e hoje gostaria de compartilhar um pouco sobre a pesquisa de uma estudante que futuramente irá se formar na Unicamp.

Estamos contribuindo com a pesquisa dela sobre a educação tradicional Kaingang. Nosso objetivo é relatar como essa educação era trabalhada no passado, como está sendo desenvolvida atualmente e como pretendemos fortalecê-la no futuro. Buscamos sempre preparar nossos alunos para que no futuro, possam ingressar no ensino superior, assim como a estudante Rayane, que estudou em nossa escola desde a educação infantil até o ensino médio.

Entre as perguntas que ela elaborou, algumas tratam da diversidade cultural, abordando como trabalhamos com elementos da nossa Terra Indígena, como as plantas, os rios e os pássaros, especialmente o bem-te-vi. Além disso, há questões sobre o milho bugre e outros elementos fundamentais da nossa cultura.

Quero também compartilhar um pouco da minha própria experiência com a educação. Quando comecei meus estudos, no que antes era chamado de primeira série, a escola não oferecia uma educação diferenciada voltada para a nossa cultura e língua. O ensino era o mesmo das escolas não indígenas, sem considerar nosso conhecimento tradicional. Naquele tempo, a cultura era de certa forma, apagada e esquecida dentro da escola.

Nossa escola oferecia apenas até o quarto ano, e, depois disso, éramos obrigados a estudar fora da comunidade, na escola de Arco-Íris. Esse deslocamento resultava em grandes perdas culturais, pois, além da dificuldade de acesso, não havia espaço para o fortalecimento da nossa língua e dos nossos costumes. A educação era imposta de forma padronizada e não valorizava a nossa identidade.

Com o tempo, esse cenário começou a mudar. A legislação já previa que professores indígenas fossem contratados para atuar dentro das escolas indígenas, mas, durante muitos anos, essa lei não foi cumprida. Foi apenas por volta de 1997 ou 1998 que o Estado passou a reconhecer essa demanda e a permitir que professores indígenas assumissem o ensino em suas próprias comunidades. Essa mudança não aconteceu de forma fácil ou espontânea, mas sim por meio da luta dos povos indígenas de São Paulo e de todo o Brasil, que reivindicavam esse direito há muitos anos. Lideranças, caciques e professores se mobilizaram para garantir uma educação mais adequada às nossas realidades.

Naquele tempo, quando eu ainda era criança, estudei na antiga escola da aldeia. Após concluir o ensino médio em Arco-Íris, senti o impacto dessa falta de valorização da nossa cultura dentro da escola. Mas, quando finalmente conseguimos que a educação fosse conduzida por professores indígenas, as coisas começaram a mudar. O professor Mário, que hoje é nosso diretor, foi um dos pioneiros nesse processo, junto com o professor Edivaldo, que infelizmente já faleceu, mas teve uma grande contribuição para a valorização da língua e da cultura Kaingang. Outros professores também foram essenciais nesse movimento, como a professora Valdenice, a professora Rosimeire, a professora Queila e a professora Fabiana.

Essa transição permitiu que a escola passasse a oferecer o ensino completo dentro da comunidade, desde a educação infantil até o ensino médio. Dessa forma, nossos alunos não precisavam mais sair da aldeia para continuar os estudos. Esse avanço fortaleceu nossa cultura, pois a língua materna passou a ser valorizada dentro do currículo escolar.

Antigamente, nossa grade curricular era muito limitada, com foco apenas em disciplinas como português e matemática. Hoje, temos disciplinas específicas, como “Saberes Tradicionais” e “Língua Materna”, que nos permitem trabalhar a cultura e o conhecimento ancestral de maneira mais profunda. O fortalecimento da nossa identidade sempre existiu na comunidade, pois os mais velhos nunca deixaram de falar a língua e transmitir os conhecimentos, mas, dentro da escola, isso antes não era valorizado como é agora.

Para aprender a cultura Kaingang, acredito que isso se aplica a outros povos também, é essencial estar próximo dos mais velhos. O ensino tradicional não acontece sentado em uma cadeira, mas sim por meio da prática, da observação e da escuta atenta. Se um mais velho está ensinando algo, seja uma armadilha de caça ou o uso de uma planta medicinal, o aprendizado acontece no fazer e no acompanhar.

Depois de concluir o ensino médio, tive a oportunidade de participar da formação de professores na USP, entre 2004 e 2008. Foi uma experiência enriquecedora, que me preparou para atuar como professor em minha comunidade. No entanto, percebi que saber algo é uma coisa, mas ensinar é um desafio completamente diferente. Tive que aprofundar minhas pesquisas, estudar com os mais velhos e buscar maneiras eficazes de transmitir o conhecimento tradicional para as novas gerações.

No meu trabalho como professor, procuro sempre levar os alunos para a mata, para que possam ter contato direto com os conhecimentos transmitidos pelos mais velhos. Aprender é uma coisa, mas ensinar exige prática e dedicação. E, ao longo dos anos, percebi que o conhecimento tradicional Kaingang carrega uma profundidade científica muito grande, que merece ser estudada e valorizada cada vez mais.

Desde sempre, percebi que o conhecimento tradicional Kaingang é profundo e científico, especialmente no processo de produção de cerâmica. Como sou pertencente ao povo Kaingang, foquei minhas pesquisas nessa cultura, embora também tenha aprendido um pouco sobre os Krenak e outros povos quando era mais jovem.

No início da minha trajetória como professor, eu acreditava que ensinar cerâmica era simplesmente pegar o barro e trabalhar com os alunos em sala de aula. No entanto, ao aprofundar minhas pesquisas, percebi que estava apenas na superfície desse conhecimento. Fui então buscar aprendizado com os mais velhos, como o Zeca Kaingang e a dona Helena Kaingang (que já faleceu), entre outros anciões da comunidade.

Ao visitá-los, percebi que eles gostavam de ensinar, mas não queriam que eu registrasse tudo em anotações, papel. Preferiam que eu aprendesse prestando atenção, absorvendo o conhecimento diretamente. No começo, tentei escrever, mas logo entendi que precisaria guardar tudo na memória e depois praticar.

Certa vez, propus ao Zeca que fizéssemos juntos uma cerâmica Kaingang. Ele aceitou e marcamos um dia. Antes de começarmos, ele me orientou a me preparar para entrar na mata: usar facão, calça e botas, pois a caminhada exigia cuidado. Brinquei que os antigos andavam descalços e com vestimentas tradicionais, mas ele me explicou que, naquela época, eles tinham um preparo diferente, algo que nós, hoje, já não possuímos.

Durante essa caminhada, ele me ensinou sobre diversas raízes e plantas medicinais usadas pelos Kaingang. Uma delas era uma raiz parecida com uma batatinha, usada para preparar um xarope medicinal que auxilia o fígado. Ele também falou sobre o uso da salsaparrilha e da casca da árvore cabreúva, que serve para fazer um xarope contra gripes. Esse conhecimento me fez perceber como os Kaingang sempre tiveram uma ciência natural sofisticada, baseada na relação equilibrada com a natureza.

A cultura Kaingang sempre teve um olhar atento à fauna e à flora. O respeito pelos pássaros, por exemplo, está ligado ao equilíbrio ambiental, já que são eles que espalham as sementes das árvores nativas. Esse pensamento de preservação é essencial para a continuidade do nosso povo, pois se perdermos a natureza, perderemos também nossa cultura e nossa língua.

Falando em língua, ensinar Kaingang é um desafio. Diferente do português, a língua Kaingang exige uma pronúncia precisa, muitas vezes utilizando o som nasal. As crianças, ao aprenderem, às vezes tentam adaptar a pronúncia para algo mais próximo do português, mas eu reforço que é preciso falar corretamente, pois a língua tem regras próprias e não pode ser modificada.

Com todo esse aprendizado, comecei a levar esses conhecimentos para dentro da escola, onde trabalho. Em 2018, iniciei práticas com os alunos sobre a produção de cerâmica Kaingang. Em 2022 e 2023, fizemos um projeto em que levamos os estudantes ao local de extração da argila, onde aprenderam desde a retirada do barro até o preparo e modelagem da cerâmica. Eles praticaram bastante e produziram suas primeiras peças, entendendo que esse processo está diretamente ligado à alimentação tradicional Kaingang, já que as panelas de barro eram utilizadas para preparar os alimentos, principalmente os à base de milho.

Minha missão é transmitir esses conhecimentos da maneira mais fiel possível, seguindo os ensinamentos dos anciãos e mantendo viva nossa cultura. Hoje, sou professor, mas no futuro, quando for um dos mais velhos da comunidade, continuarei ensinando o que aprendi, garantindo que as próximas gerações mantenham vivo o saber tradicional Kaingang.

Leia a entrevista completa aqui.

 

* Esta entrevista foi feita por Rayane Barbosa Kaingang como parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – Educação Territorializada Kaingang: Pedagogias que Brotam do Chão – apresentado como requisito para obtenção do título de licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação (FE), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação da Profa. Dra. Susana Oliveira Dias.