Geofilosofia, anarquismo e o povo novo: uma sugestão
Alexsandro Sgobin[1]
Este texto deseja propor que se encontre algo em comum entre o conceito de Geofilosofia de Deleuze e Guattari, o anarquismo e a sala de aula, sendo este último o local em que se deseja haver frutos e rizomas vicejando? Águas plácidas, maremotos, oceanos insondáveis, o ribombar da catarata e o marulho do riacho… na sala de aula, onde o que existe é a contingência, cremos poder afirmar que a conversa a qual nos dispomos a empreender entre geofilosofia, anarquismo e um ambiente de aula deixa entrever possibilidades e potências de haver-se aí o Novo, o Povo Por Vir, a diferença, quiçá…
Mas seria possível aproximar conceitos de Deleuze e Guattari e o anarquismo?
Na verdade, isso já não é novo: algo existe entre a riqueza do pensamento dos dois autores e a riqueza do anarquismo, e trata-se, parece-nos, do que chamaremos asselvajamento que grassa em ambos, um atrevimento de dizer, de escrever (e de fazer, no caso do anarquismo – ação direta) o que fere ao ser dito e escrito, uma insubmissão aos cânones de uma sociedade, de uma filosofia, de um modo de pensar sobre o mundo e as gentes por demais recatado, tímido, representativo.
Também há algo que escapa em ambas as usinas, o pensamento e o texto dos dois autores, e o anarquismo – não se pode agarrar cada linha que explode de ambos. E há linhas de força e de tensão que fogem por todos os lados, selvagens!, diremos, e a selvageria então é boa, e nos sugere caminhos alvissareiros e atrevidos. E, a título de curiosidade, se percorrer a filosofia de Deleuze e Guattari exige atenção e cuidado, definir o anarquismo não é tarefa menos difícil; preferimos, neste momento, acatar Edson Passetti, quando diz que “é impossível definir o anarquismo. Ele é um fluxo de singularidades que coexistem” (PASSETTI, 2000, p.4).
Este fluxo de singularidades, e a filosofia de Deleuze e Guattari, guardadas as devidas proporções, carreiam consigo, acreditamos, potências para gerir certas liberdades (uma vez que falar da Liberdade é por demais grandioso, ou por demais insuficiente…): em demanda de uma forma de pensar mais generosa e potente, no primeiro caso, em busca do socialismo libertário, no segundo. Mas tanto um como outro são irredutíveis às demandas que aventamos aqui; tanto um como outro podem produzir rizoma, fazer explodir linhas de força, abrir infinitos poros e rasgos e tocas no tecido social/filosófico/psicossocial, fazer a guerra ou permitir microguerrilhas.
O anarquismo nunca se furtou a denunciar a exploração do ser humano pelo ser humano, nem a fazer a guerra aos exploradores quando julgou preciso; o texto dos dois autores em questão nunca se furtou a deixar correr microguerrilhas por entre as palavras, nas palavras, nas entrelinhas, nas margens, no “extra-campo” do texto mesmo… mas isso também é pouco, é falar apenas de combates, que são acontecimentos extremos, tanto num campo como no outro (um livro dos autores discutidos. ruas tomadas por anarquistas. a bandeira negra em meio ao povo que se subleva); estamos mais interessados nas linhas de força que correm entre a palavra impressa entre um, seja, Mil Platôs, e as muitas formas de viver do anarquismo.
Compreende-se o que desejamos sugerir?
Entre os dois mundos citados o que mais nos parece instigante é que tenham a potência e o atrevimento de extravasar conceitos por rasgos talhados no tecido do pensamento representativo, filho do controle e de uma ordem assustadiça, irmão da Moral (e o que preferimos, concordando com Deleuze e Guattari e com o que acreditamos querer o anarquismo, independente de sua corrente? A Ética, em detrimento de uma moral), em uma palavra, o Velho, diríamos, parafraseando Rancière. O caminho perigoso, falto de estradas retas e sinalizadas, repleto de charcos, abismos, florestas, planícies silenciosas, platôs, onde qualquer daqueles que não seja desassombrado pode se perder, é justamente esse caminho vagabundo que nos sabe à viandas dignas de deuses, ainda que terríveis de se alcançar.
[Daí nossa séria dúvida em relação a qualquer coisa que se chame “deleuzeana”, e nosso riso frente a uma hipotética codificação do anarquismo – o quê? – : ter-se-á diluído exatamente a força do asselvajamento, a mais vigorosa (cremos) possibilidade deixada pelos dois franceses e pela essência dos movimentos que requisitam a bandeira negra sobre suas ações e pensamento].
Mas note-se que insistimos na palavra “texto”: diremos que é justamente no texto, do texto que emergem muitas das potências do pensamento de Deleuze e Guattari. Ao apresentarem um bailado com as artes, a literatura, a filosofia, as ciências exatas, um bailado, dizíamos nós, mãos e pés irmanados com rigor conceitual e teórico, os autores crianceiam, fazendo brotar, aqui e ali, microexplosões (potências de…) – dir-se-ia rizoma, que anarquizando sob/sobre/junto/dentro da terra, faz brotar pontos inusitados e ruidosos de pensamentos-criança, frescos, novos, atrevidos, de letras, frases, parágrafos.
As microexplosões nesses textos; o rizoma frenético, semprevivo, que a qualquer momento aí pode surgir, sugerindo a terra em frêmito, com a raiz se espalhando selvagem sobre ela, contaminando-a com o movimento da descoberta ou do impensado, os corpos que marcham na terra negra e quente artificial sob o troar da revolta botas sobre a terra terrível de piche palavras de ordem sangue suor e cassetetes potência da palavra do pensamento e do pontapé, eis que!…
A terra: em “O que é a Filosofia?”, Deleuze e Guattari pedem uma relação entre o pensamento e a terra, é preciso um chão, um solo para o pensamento, ainda que este jamais esteja seguro sobre esta terra; ele treme, corre, dormita, escava buracos, explode o solo em mil fragmentos, desliza sobre camadas e estratos em evoluções/revoluções com as coisas e os objetos, as pessoas e as ideias, que lá já estão e estiveram: assim se compreende porque se falade uma filosofia alemã, ou uma filosofia francesa!
Pensar, dizem os autores, é estender um plano de imanência que “adsorve” a terra, podendo desterritorializá-la (potência), ligação pensamento-terra de múltiplas conectividades que inicia uma dança em turbilhão, irmanado, esse pensamento com a terra prenhe de contingência e de história, de ideais, ideologias, ideias, de fixos e de fluxos… como coloca SANTOS (2013, p.57-58):
O pensamento, então, tem antes uma geografia de circunstâncias e contingências que precedem a sua própria história, se orienta menos pelo artifício de um método que por uma experimentação tateante, uma zona de presença de relações vitais, um meio de imanência que se refere às condições de um meio intensivo de relações variáveis que liga a terra ao território.
Não se pode, assim, escapar completamente da própria história da terra, do local, de suas idiossincrasias, de seus aconteceres, eis uma “linha dura” (e, ainda assim, fugidia); mas outra linha convida ao tatear, à experimentação, á dúvida háptica, ao movimento do pensamento: eis uma linha explosiva. Anarquia no pensamento, pensamento anarquizado.
Mas desse pensamento se dirá que há um meio, de largas fronteiras, onde se bailará mais cuidadosamente pois não se ficará nem preso à geografia de uma terra (pois então só se haveria uma descrição), nem nos lançaremos ao caos, o que nada nos daria de útil, uma vez que é preciso ter algo às mãos. Esse meio, esse entre extremos de largas fronteiras deslizantes conecta-se a terra, desterritorializa-a e territorializa, em absoluto – contato com o puro plano de imanência -, ou relativizando-se, pois antes do pensamento fazer visita a uma dada terra, muita gente lá já havia, muito se passou e se construiu. Mas não se trata apenas disso: Deleuze e Guattari sugerem um Povo Por Vir, necessário fundar um Novo Povo, poroso ao pensamento asselvajado, tinto de certas liberdades, carreando consigo a vastidão do deserto e/ou a pureza do ar das alturas, sem receios; nisso também o Anarquismo funda esperanças, num Povo Por Vir, poroso ao pensamento asselvajado, tinto de certas liberdades, carreando consigo a vastidão do deserto e/ou…ou…
Mas faremos aqui uma ressalva: parece-nos que se fala, em ambos os casos, num povo demasiado grande para o que desejamos sugerir nesse texto; nossas pretensões são infinitamente mais modestas, e sobretudo, efêmeras, falarão de um povo efêmero…
II- A terra sala de aula: o povo novo efêmero
A terra da qual queremos falar é a sala de aula, terra rica, terreno de contingência, complexo, múltiplo; efetivamente, Milton Santos dizia que quanto menor o espaço em questão, maior é o número de elementos que nele incidem, do cósmico ao local: eis a imensa porosidade de uma sala de aula. Terra escorregadia, que por vezes tem sobre si a mais férrea ordem, mas também vê amiúde o quase-caos se instalar. É esse terreno escorregadio que nos fornece inspiração para um atrevimento, que é sugerir que o Povo Por Vir já está dado, e o que é preciso é atualizá-lo, ainda que essa atualização seja efêmera, pois o ethos da sala de aula comum ainda é a norma, a normatização, a ordem, a disciplina…e a punição.
Em que nos amparamos para sugerir que já existe um “povo novo”?
Na hipótese de que todas as possibilidades de emancipação de um saber, um pensamento, um corpo, já estão dadas de antemão, simplesmente (?) porque nada há que negue que essas possibilidades estejam ali; resta, então, atualizá-las, se o momento se oferece, ou se procuramos convidar à atualização – pode ser que jamais se mostrem [Ordem! Norma! Moral! Cuidado!]. Se todas as possibilidades já estão, latentes, o que se aponta ao Anarquismo, a uma pedagogia anarquista, é que pense a partir/junto/dentro de uma geofilosofia, abrindo convites a essas possibilidades, anarquizando a terra e desterritorializando-a, dando lugar ao Novo, fazendo mesmo o Velho bailar ao som da terra renovada, cáustica, porejante.
Anarquizai-vos!, dirá uma pedagogia anarquista, traçando, dolorosamente, um pensamento com a terra-sala-de-aula, na qual estenderá um plano de imanência adsorvendo essa terra rica, tentando fazer atualizar-se a virtualidade do Povo Novo, que já estava, mas não ousava emergir. Seja, por exemplo (irmanando-nos, por conveniência, com os subtítulos desse Seminário) pensar uma aula sobre Ecologia: é possível dizer (por um mero recorte didático!) que ao menos três adensamentos conectivos aí sejam possíveis, a saber:
– a história, os elementos sociais, materiais, psicossociais, as ideologias… que impregnavam a terra-sala-de-aula;
– o plano de imanência que se procura estender em demanda do Novo;
– a riqueza da vida, expressa de alguma forma no estudo da Ecologia.
E quem fará a tentativa de estabelecer miríades de conexões possíveis, quem fará o convite para as conectividades, que quiçá atualizem o Povo Novo? O Anarquismo, ou, como se queira, uma pedagogia anarquista, que desdenhe da normatização escolar, que permita certas liberdades, instile a crítica à dominação, qualquer dominação, inclusive a que vem do mestre, que se abra à aventura, revolva a terra e a esboroe. Mas não se trata, convém dizer, de uma busca do caos, senão da mais cuidadosa construção: o Anarquismo não advoga a anomia, mas uma outra disciplina, a coletiva, solidária, talvez por isso mesmo mais exigente.
Mas é uma construção que admite fazer barro da terra, deslizando perigosamente sobre ele, manchando a pretensa alvura da Ordem; falemos de populações, da tremenda complexidade do movimento de populações, falemos da inebriante riqueza da flora e fauna de um local, de sua biogeografia carregada de movimento e de sobreposições, atravessamentos de fronteiras, desterritorializações frequentes, a Ecologia não é, não pode ser, uma ciência que fale apenas de ordenações e decalques, mas que também fale de caos, de microexplosões e de mapas – a vida, como se apresenta à intuição (é de Bergson, essa intuição da qual falamos).
Certo, é preciso dizer da fila indiana e da hierarquia do formigueiro, mas também sói dizer do caos que se instala quando o toco com uma vara e revolvo, explosão de movimento, caos, dir-se-ia a natureza em microrrevolução, assim o texto, façamos uma conexão, dos autores discutidos em nosso presente escrito, ele corre também em fila indiana, mas uma palavra, uma sugestão, um gráfico… e eis que o movimento se instala no leitor, no pensamento do leitor, formigas em debandada por todos os pontos, terremoto no cérebro, harmatã no pensamento.
Ares anarquizantes, contingência, a história da terra-dala-de-aula, suas culturas próprias, o mundo exterior e as ideias, uma aula de Ecologia… quem poderá dizer que daí não nasça um Povo Novo, ainda que efêmero?
E por que seria efêmero?
Por se encontrar imerso no sistema capitalista, no sistema de ordenações e costumes da escola, num habitus de controle e disciplina, de dissimulações e de receios; quase certo que o Povo Novo que surgiu na sala de aula voltará à Velhice (mas existirá uma Velhice?…), eis que finda a aula, ou a novidade, ou o interesse… nada a recear ou a lamentar! É preciso estar pronto para a volta ao terreno estriado, à terra temerosa de trepidações, corre-se o risco, conscienciosamente.
O Povo Novo… quem o despertará? Não o professor, não é ele o herói, mas antes, qualquer elemento pode despertar esse Povo, uma palavra, uma aula, um filme, um olhar, um trejeito, bem difícil serial procurar “encontrar” um disparador e dele dizer: “certamente daí advirá a diferença”…
O que vimos sugerir neste escrito é que todas as condições para uma filosofia de linhas “anarquizadas”, ainda que seja uma filosofia efêmera, já estão dadas de antemão; e o que nos cabe, então, fazer? Ora, tentar atualizá-las; isso equivale dizer que possivelmente o Povo Novo já exista dentro de uma sala de aula, sendo preciso então abrir tocas e rasgos, convidar linhas de tensão a atravessarem o tecido do costume e do hábito, permitir o asselvajamento sem temê-lo. Mas não se trata de convidar o caos: a anomia não é uma opção, em nenhum momento, nem no rico pensamento dos dois autores discutidos neste texto, nem no universo da teoria e práticas anarquistas. O que nos ensinará, assim, a convidar a diferença e a namorar com suas possibilidades sem resvalar para o assustador do Caos?
A experiência; o ousar tentar e o ousar aprender com as quedas pelo caminho que, inevitavelmente, virão. É bem possível que carreguemos cicatrizes das quedas por toda a vida, de modo que é preciso, também, não temer as marcas e saber conviver com a dor enquanto ela se faz presente. De fato: qual será o maior erro que o de, a força de sofrimentos sem par, procurar navegar sempre em águas plácidas, felicitando a nós mesmos dizendo: “eis que mais um dia findou… sem nenhuma aventura!…”…
Que autoengano seria mais terrível? Mais triste?
Deixar advir, ainda que pelo tempo de uma hora, um dia, um mês, um Povo Novo! Que extravase, crie rizoma, pela adsorção da terra-sala-de-aula… deixar surgir! Deixar que venha, e, desejando, ou pelas contingências do mundo, se vá. Havendo as portas abertas, os rasgos e as tocas nas paredes, é possível que retorne…
Mas esse [eterno] retorno é uma outra, vastíssima, discussão.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
PASSETTI, Edson. Anarquismos e Sociedade de Controle. 2000. Disponível em: <http://historiacultural.mpbnet.com.br/pos-modernismo/Edson_Passetti.pdf>. Acesso em 15/03/2017.
SANTOS, Zamara Araújo dos. A geofilosofia de Deleuze e Guattari. Tese de doutoramento, 2013. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000917481>. Acesso em 17/03/2017.
Aceito em: 15/03/2018
[1] Doutorando da FE-UNICAMP, professor da rede particular de Campinas. E-mail: a_sgobin@hotmail.com
Geofilosofia, anarquismo e o povo novo: uma sugestão
RESUMO: Queremos neste texto sugerir uma conversa entre o conceito de Geofilosofia de Deleuze e Guattari, o anarquismo e a sala de aula, considerando que ambos os três elementos carregam consigo um asselvajamento, uma potência de movimento que extravase os limites do ordenamento, do pensamento representativo, declarando esse asselvajamento possível de ser convidado para que se experimentem suas possibilidades e se assuma os riscos – em busca de pensamentos vigorosos, curiosos, potentes, pensamentos-criança, cujas linhas de fuga sejam bem-vindas, seja qual for a natureza que assumam.
PALAVRAS-CHAVE: Anarquismo. Geofilosofia. Ecologia.
Geo-philosophy, anarchism and the new people: an idea
ABSTRACT: In this paper, we want to suggest a conversation among the concept of Deleuze and Guattari’s Geophilosophy, anarchism and the classroom, considering that both three elements have the potential to be “wild”, a power of movement that goes beyond the limits of ordering, declaring this “savagery” worthy of being invited, to experience its possibilities, taking all the risks – in search of strong thoughts, curious, powerful thoughts, child-thoughts, whose lines of escape are welcome, whatever nature they take.
KEYWORDS: Anarchism. Geophilosophy. Ecology.
SGOBIN, Alexsandro. Geofilosofia, anarquismo e o povo novo: uma sugestão. ClimaCom [online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8975