Filosofia do cuidado de si: a força daimoníaca de Sócrates | Tiago Brentam Perencini


 

Tiago Brentam Perencini[1]

 

 Que força demoníaca é essa que se atreve a derramar na poeira a beberagem mágica?

(Friedrich Nietzsche, 1992, p. 85)

 

A força daimoníaca de Sócrates

Quando Déa Trancoso [et al] tocaram o tambor com o chamado para o Dossiê “Exu: arte, epistemologia e método” recordei-me das últimas palavras de Sócrates, após beber a cicuta, que lembra ao seu melhor amigo e discípulo Críton sobre certa dívida para com o deus enfermeiro Asclépio (Esculápio, como ficara conhecido entre os romanos). De acordo com o Fédon de Platão, foram essas as últimas palavras do chamado primeiro filósofo ocidental: 

– Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar certa dívida.

– Assim farei – respondeu Críton – Mas vê se não tens mais nada para dizer-nos.

A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de breve instante, Sócrates fez um movimento. O homem então o descobriu. Seu olhar estava fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a boca e os olhos.

Tal foi, Equécrates, o fim do nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo (Platão, 1972, p. 132, 118).

Procurei descrever pormenorizadamente em Perencini (2020) que a oferenda de um galo ao deus quando Sócrates estava à beira da morte não fora mero delírio sob efeito do veneno, mas sim o seu último gesto de cuidado, que repousa em uma epistemologia onírica, já que Asclépio curava pelos sonhos. O próprio Foucault enuncia que 

Esse sacrifício do galo a Esculápio é um rito de cura, [uma] resposta à cura. Mas na verdade não se deve esquecer que o galo era um animal de origem persa e que, na mitologia persa, o galo é um animal que guia a alma e a protege em sua trajetória para o inferno. E é sem dúvida da importação desse galo persa que temos eco, que temos uma evocação no momento em que Sócrates morre. O que é uma maneira de pedir à mitologia persa que resolva um problema que não parecia (…) totalmente solucionável nos termos do pensamento grego (Foucault, 2011, p. 89).

 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

Recebido em: 15/09/2025

Aceito em: 15/10/2025

 

[1] Universidade de Pernambuco – campus Garanhuns. Email: tiago.brentam@upe.br

Filosofia do cuidado de si: a força daimoníaca de Sócrates

 

RESUMO: O último gesto de cuidado de Sócrates antes de morrer fora o lembrete sobre certa oferenda de um galo a Asclépio, divindade que cura pelos sonhos. Se Michel Foucault tornou visível a parresia na antiguidade grega, resgato aspectos como a erótica, a farmacologia e a psicagogia no modo de vida socrático, elementos esses associados a certa força daimoníaca, que parecem ainda soar um enigma para a contemporaneidade ocidental. Nessa vereda, experimento a hipótese de que tornar visível a filosofia do cuidado de si na antiguidade grega permite uma integração ao campo da magia como possibilidade de ensaiar um tipo de educação filosófica que amplia o conjunto de técnicas de si para além do pensamento crítico e do humanismo como paradigma epistemológico e disciplinar em que fomos forma(ta)dos dentro da instituição educativa na contemporaneidade. A minha contribuição para o presente Dossiê caminha na direção de tomar a força daimoníaca como tecnologia ancestral de construção de saberes existente na antiguidade grega, encontrando em Sócrates uma espécie de mestre infame do cuidado de si, que permite expor as fissuras do arcabouço filosófico ocidental. 

PALAVRAS-CHAVE: Cuidado de si. Daimon. Sócrates. Psicagogia. Erótica.

 


Philosophy of self-care: Socrates’ daimonic force

 

ABSTRACT: Socrates’ final act of care before his death was a reminder of a certain offering of a rooster to Asclepius, a deity who heals through dreams. If Michel Foucault made parrhesia visible in ancient Greece, I revive aspects such as erotics, pharmacology, and psychagogy in the Socratic way of life—elements associated with a certain daimonic force that still seem enigmatic to contemporary Western thought. In this vein, I explore the hypothesis that making the philosophy of self-care in Greek antiquity visible allows for integration with the field of magic as a possibility for experimenting with a type of philosophical education that broadens the set of self-techniques beyond critical thinking and humanism as the epistemological and disciplinary paradigm in which we have been formed within contemporary educational institutions. My contribution to this Dossier moves towards taking daimonic force as an ancestral technology for constructing knowledge existing in Greek antiquity, finding in Socrates a kind of infamous master of self-care, which allows us to expose the fissures of the Western philosophical framework.

KEYWORDS: Self-care. Daimon. Socrates. Psychogogy. Erotic.

 


PERENCINI, Tiago Brentam. Filosofia do cuidado de si: a força daimoníaca de Sócrates. ClimaCom – Exu: arte, epistemologia e método [online], Campinas, ano 12, n. 29., jun. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/filosofia-do-cuidado-de-si/