Por Meghie Rodrigues
Um espírito livre, diria Nietzsche, se “despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e, mesmo diante de abismos, dançar ainda”. Assim o filósofo alemão sugeria, em A Gaia Ciência, a possibilidade de uma relação criativa com a morte: produção e criação de forças, ao invés de destruição. A morte como transmutação, não como aniquilamento. Encontrar este ponto de inflexão é um problema que atravessa não apenas o pensamento, mas também a escrita – e ainda não sabemos lidar com ele de forma a conseguir enxergar o fim aquém e além da aniquilação.
“O Ocidente é incapaz de pensar para além do fim do mundo ao passo que diversos povos indígenas passaram por vários fins de mundo, tendo sido invadidos e violentados ao longo dos séculos”, avalia Renzo Taddei, professor do Departamento de Ciências do Mar, da Universidade Federal de Sâo Paulo. O antropólogo lembra que, se na Europa não se consegue pensar a morte para além da aniquilação, em culturas como a mexicana, morrer é um modo de existência. No México, o “día de los muertos” é uma data celebrada anualmente nos dias 1 e 2 de novembro. Acredita-se que, nestes dias, os espíritos dos finados têm permissão de visitar a terra e passar tempo com seus entes queridos. Para recebê-los, as pessoas acendem velas coloridas, fazem festas nas ruas, visitam cemitérios levando as comidas prediletas dos entes falecidos, acompanhadas do tradicional “pan de muerto”, um pão doce bastante colocado, durante este feriado, nos altares dedicados aos que se foram. Desta forma, os mexicanos acreditam não apenas honrar a memória de seus mortos, mas, também, estar mais próximos deles, fazendo-os sentir-se espiritualmente bem-vindos à vida física da qual não mais fazem parte. Esta continuidade como forma de conceber a morte, diz Taddei, é uma outra forma de escrita, de pensamento, de vida. E maneiras diferentes de lidar com a morte têm um alcance do qual provavelmente ainda não nos damos conta. “Nosso medo da morte é o que nos torna a civilização mais mortífera da história. Esse medo nos impede de escrever de uma forma produtiva para o Antropoceno e para os muitos fins de mundo que virão pela frente”, afirma Taddei, um dos participantes da mesa-redonda de abertura do I Encontro da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas, da Rede CLIMA no dia 07 de maio no Museu da Imagem e do Som de Campinas (MIS-Campinas).
Ao evocar a pluralidade destes “fins” de mundo, Taddei chama a atenção para a variedade das noções de “fim” e de “mundo”: não se trata de tomar o fim como um acontecimento apocalíptico único que destruirá a Terra por completo em um ato de ira dos deuses. Um relatório recente da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em Inglês) calcula que estejamos não apenas vivenciando, mas, também, protagonizando, algo como uma sexta grande extinção em massa do planeta, colocando sob risco de desaparecimento 41% dos anfíbios, 26% dos mamíferos e 13% das aves vivos hoje. Os riscos são ocasionados principalmente pela exploração destas espécies e pela degradação, mudança e perda nos diversos habitats – razões pelas quais protagonizamos este cenário sem a necessidade do advento de uma nova era do gelo ou da queda de outro grande asteroide na península de Yucatán. Para os animais que estão se extinguindo, o mundo está prestes a acabar – e já acabou há mais tempo para espécies como o dodô, extinto no século 17, ou para os dinossauros que circulavam pela Terra há mais de 65 milhões de anos.
O fim não acontece para todas as espécies de uma só vez, mas implica o desaparecimento de um mundo para que a possibilidade do surgimento de outro emerja. A ficção, tanto no cinema quanto na literatura, trabalha com esta dança entre fim e recomeço há tempos: ora imaginando (nas expressões de Eduardo Viveiros de Castro e Débora Danowski) um “mundo sem humanos”, em cenários pós-apocalípticos como os da literatura cyberpunk, também presente em séries televisivas como The Walking Dead ou no mundo ciborgue do Blade Runner de Ridley Scott; ora imaginando “humanos sem mundo” nas ficções espaciais ou mesmo na aridez da biodiversidade que desapareceu em Mad Max. A ficção seria, segundo Rafael Evangelista, antropólogo e pesquisador do Labjor (Unicamp), uma forma nova e potente de escrever e imaginar esta aderência entre fins e recomeços, ou descontinuidades e continuidades: “quando falamos de fim de mundo, nos referimos ao fim do mundo como o conhecemos. Tanto a figura do ciborgue quanto a do zumbi representam uma espécie de continuidade da vida humana – mas em uma existência pós-humana radicalmente diferente daquilo que somos enquanto espécie. Eles venceram o problema da morte, mas para uma outra vida que não é a nossa”.
Se a ficção consegue fornecer alguns instrumentos para se deixar levar por esta fina dança, por vezes em desequilíbrio, entre fins e recomeços, a escrita não-ficcional, como a acadêmica e a jornalística – ainda precisam encontrar formas de inventar seus próprios passos. Para Ana Godoy, doutora em Ciências Sociais e pesquisadora da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas o discurso jornalístico, frequentemente, consegue o efeito contrário ao que se propõe: acaba dessensibilizando as pessoas através da proliferação de palavras, imagens e signos. Isso, no entanto, não significa que encontra seu antípoda exato no rigor da escrita científica. Pelo contrário, como lembrou Godoy, tanto na academia quanto no jornalismo, “escreve-se rápido e escreve-se muito” – não raramente, “sem se saber o porquê”. Assim, a escrita ainda não nos possibilitaria exprimir o fim do mundo de uma forma diferente. Não é uma escrita que consegue contornar o fim porque luta, o tempo todo, contra ele – e talvez esta impossibilidade esteja no cerne da dificuldade na comunicação das mudanças climáticas, que colocam à nossa frente, em todo o tempo, a possibilidade de um fim: dos recursos naturais, da espécie humana, do próprio planeta.
A escrita ainda, a pesquisadora observa, deveria seguir a velocidade do pensamento – que é lento e precisa de tempo para ganhar consistência. Daí a violência do choque com a linguagem jornalística, que prima pela velocidade, e com a linguagem acadêmica, que também se fia na quantidade. “Escrever”, ressalta ela, “não é uma questão de prazo, é uma questão de vida. Não é para sobreviver, resistir a morte, impedir o fim. É para não ter medo de que as coisas acabem, é para se morrer mais vezes”.
Tal como metaforiza a celebração mexicana de finados, o fim é marcado por uma possibilidade de continuidades e recomeços – por isso, a escrita pode ser um instrumento interessante para possibilitar este “morrer mais vezes”, o que significaria, também, a contingência de múltiplos começos ou de múltiplas continuidades. Seria a coragem mencionada por Nietzsche para se dançar à beira do abismo – e a de continuar dançando, para contraefetuar a queda.