Por: Daniela Klebis e Carolina Cantarino
Ao longo desse primeiro dossiê, buscamos explorar as potencialidades da comunicação em rede – entrelaçamentos possíveis e improváveis entre artes, ciências e filosofias – na relação com a temática das mudanças climáticas, fazendo sempre ressoar a pergunta: o que pode uma rede? Vimos que a constituição de redes, por vezes, é transpassada pela ideia de consenso, mas não escapa do terreno das disputas e pode se configurar como dissenso. Também observamos de que maneira o maquinário tecnológico desloca e desafia o nosso entendimento do que seja o humano e o natural. Sentimos que a própria ideia de rede nos impõe criar questionamentos e dúvidas em relação às percepções, ações e pensamentos tidos como indubitáveis e únicos, para efetivamente podermos multiplicar as possibilidades do conhecer em rede.
Seguindo com este enredamento, na conclusão desse dossiê, convidamos dois pesquisadores para conversar sobre imagens, narrativas, ciências e comunicação, os modos pelos quais elas podem configurar-se em rede e criar outras abordagens para as mudanças climáticas. Marko Monteiro, da Unicamp, e Joe Smith, da Open University, no Reino Unido, falam sobre as possiblidades que imagens e narrativas trazem para a compreensão e desenvolvimento de ações por um futuro menos alarmista.
Marko Monteiro é antropólogo e professor no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. Monteiro, que pesquisa os aspectos culturais da tecnologia e as culturas visuais da ciência, desenvolveu pesquisas sobre a produção de evidências científicas por meio de tecnologias digitais, analisando as interações entre cientistas e imagens digitais: “Muitas vezes essa percepção de que uma imagem vale por mil palavras acaba escondendo a complexidade de como a imagem pode ser lida de diversas formas”, diz.
ClimaCom – Considerando o conceito de rede, como você pensa o papel da comunicação em relação à produção científica relacionada às mudanças climáticas?
Marko Monteiro – No caso das mudanças climáticas, acredito que o papel da comunicação é absolutamente central, e tem sido desde sempre quando pensamos na emergência dessa questão como um problema. Se formos pensar, por exemplo, na batalha pela opinião pública entre os céticos do clima e os defensores de controles de emissões, já podemos ter uma ideia da relevância que a comunicação da ciência tem nessa arena. Apesar de haver um quase consenso científico de que há alterações do clima causados por variáveis humanas, esse consenso não se traduz necessariamente numa percepção pelo público da importância desses processos, e nem sempre se traduz também em políticas que possam impactar essas variáveis (como emissões de gases estufa). A comunicação aí pode e deve ter um papel cada vez mais central.
ClimaCom – Como a comunicação integra/pode integrar essa rede?
Marko Monteiro – Creio que há esforços muito relevantes no Brasil para enfrentar o desafio científico de compreender as mudanças climáticas e a adaptação a elas, com o estabelecimento de redes de pesquisa e o investimento de somas relevantes de recursos. Mas há talvez a necessidade de integrar melhor o aspecto da comunicação nessas redes, o que não é também nenhuma garantia de que essa questão será necessariamente adotada pelo público nas suas percepções sobre o clima, sobre desastres naturais, sobre a crise hídrica ou sobre o desmatamento. Creio que redes de pesquisa existem, mas talvez elas criem conexões que priorizam muito mais as redes científicas do que a integração e o diálogo com atores de outros âmbitos. Vale dizer que esse é um desafio em muitas áreas, e não se restringe à questão das mudanças climáticas.
Existe um desencaixe que fica visível quando pensamos em eventos bastante próximos de nós, como a atual crise hídrica em São Paulo. Há evidências que sugerem uma relação entre essa crise e as mudanças climáticas ou as intervenções do homem no clima, incluindo o desmate (que ajuda a alterar climas locais e regimes de chuva), mas nem políticos, nem a imprensa, nem a população necessariamente fazem as conexões que boa parte dos cientistas está advogando. Pelo contrário, o que mais se discute são ações de redução do uso doméstico ou o monitoramento dos níveis das represas, salvo raras exceções.
ClimaCom – Em seu artigo, “Representações digitais e interação incorporada: um estudo etnográfico de práticas científicas de modelagem computacional”, você coloca que a comunicação imagética vai além do visual, incluindo gesto, fala, movimento e interações com os artefatos e as visualizações digitais. Você poderia falar um pouco mais sobre esse processo no qual essas interações influenciam a produção de conhecimento e o compartilhamento de sentidos?
Marko Monteiro –No artigo, e em outros trabalhos, eu exploro essa ideia de que a produção de conhecimento que faz uso intensivo de imagens depende de diversos processos que transcendem o estritamente visual. O que busco explorar é que a imagem não simplifica ou torna mais direta a apreensão de quantidades grandes de dados, que é o que muitos cientistas afirmam quando falam da sua atividade. As imagens, para serem compreendidas, dependem de interações, tanto no nível individual (o cientista com seu computador, por ex.), quanto numa equipe, onde um cientista precisa transmitir sentidos para um grupo. Como estudei times interdisciplinares, ficou ainda mais patente a importância desses processos, pois além de ter que compreender a imagem, a equipe precisava navegar por compreensões às vezes divergentes do que a imagem mostra, de como ela geraria resultados relevantes, e de como definir o que era “sentido” e o que era “ruído” em função da formação disciplinar de cada um.
Ou seja, quero afirmar que para construir resultados científicos a partir de imagens, é inevitável lidar com esse processo complexo de interação, que é onde a verdade da imagem ganha corpo, e que não consegue se descolar das complexidades da linguagem, das diferentes formações dos cientistas, das diferentes percepções de cor e textura, ou do nosso próprio corpo que interage com as imagens nos processos de produção de conhecimento.
ClimaCom – De que maneira esse conceito de processo interativo de significação poderia ser transposto para o âmbito da divulgação e engajamento com o público geral, no que diz respeito à questão das mudanças climáticas?
Marko Monteiro – No âmbito da divulgação, acho que é importante pensar na polissemia das imagens, que não traduzem nada por si, mas que dependem dos elementos que a compõem (como são enquadradas numa matéria, de que forma se relacionam com os textos no entorno, e como serão lidas em jornais ou na internet, entre outros fatores). Muitas vezes essa percepção de que uma imagem vale por mil palavras acaba escondendo a complexidade de como a imagem pode ser lida de diversas formas. E na medida em que as tecnologias digitais se tornam onipresentes também na divulgação de conteúdos (computadores, celulares, etc.), é preciso que tenhamos mais fluência em lidar com o digital a fim de produzir matérias e peças de divulgação que falem com esse público mais acostumado a lidar com novas mídias. A multiplicação das imagens e a facilidade da sua circulação coloca novos desafios, e a crescente interatividade dos meios de comunicação (pensando em jogos virtuais, ou no próprio “smartphone” como peça que centraliza nosso acesso a dados, notícias, e redes sociais) se coloca como aspecto definidor da maneira como acessamos conteúdo de divulgação.
ClimaCom – Você toca também na questão da dependência de uma infraestrutura computacional para a representação visual de fenômenos naturais quantificados, observados, analisados pela ciência. A modelagem climática, um exemplo que você traz, pauta-se consistentemente na tradução de dados altamente complexos em imagens para projeção de cenários futuros. Como você analisa essa relação entre homens e máquinas, na construção de sentidos e comunicação?
Marko Monteiro – Um primeiro aspecto é, como você coloca, “infraestrutural”: o deslocamento das pesquisas do analógico para o digital, e em direção a um uso cada vez mais intensivo de imagens e dados (como o já muito debatido big data) demanda um investimento cada vez maior em capacidade de armazenamento e processamento de dados. A compra do supercomputador Tupã pelo Brasil é um exemplo disso: a fim de podermos competir, ou mesmo dialogar com as pesquisas internacionais, precisaremos investir cada vez mais nessas infraestruturas, o que gera questões de política científica importantes.
Gera também a necessidade de investirmos na educação dos profissionais para lidarem com dados e com equipamentos desse tipo, e implica em formas de fazer ciência que são por vezes diferentes das que existem atualmente. Há ainda questões da “geopolítica da ciência” de interesse: quem domina essas capacidades computacionais? E como faz uso dessas vantagens comparativas nas relações com outros países? Quem define protocolos de análise de dados, e como eles circulam?
ClimaCom – Quanto essas imagens efetivamente colaboram na produção de conhecimento?
Marko Monteiro – Pensando no nível mais micro, do “laboratório” por assim dizer, creio que o uso mais intensivo de tecnologias de imagem traz impactos para a produção de conhecimento que são ainda pouco conhecidos. As limitações em termos do que a imagem mostra, a fidelidade com que ela pode ser interpretada, e de que forma os cientistas lidam com a incerteza mostram o quão pouco ainda sabemos sobre como essas tecnologias ajudam a produzir conhecimento.
Entretanto, o conhecimento que emerge de laboratórios que fazem uso de imagens de alta tecnologia não deixam de lado a complexidade e a incerteza que existiam em outras formas de produção científica; o que ocorre é que essa complexidade ganha novos contornos, como quando olhamos para a própria produção das imagens a partir dos dados, que é um processo laborioso e quase artesanal. Quando ganhamos essa compreensão, perdemos um pouco do ufanismo ligado às imagens e tecnologias digitais.
“A melhor coisa é não ver mais histórias de mudanças climáticas, mas sim de perceber que a mudança climática está incorporada em muitas histórias cotidianas”. Dessa forma, Joe Smith, cientista político e professor de comunicação ambiental na Open University, no Reino Unido, e especialista em Políticas Públicas e Mudanças Climáticas, resume o objetivo do livro no qual ele é um dos editores, “Culture and Climate Change: Narratives” (Cultura e Mudanças Climáticas: Narrativas, sem tradução em português). Lançado este ano e disponível gratuitamente na internet, a publicação reuniu diversos artistas, poetas e comunicadores, para explorar a multiplicação de narrativas como possibilidade de um melhor entendimento e maior engajamento público com as mudanças climáticas.
ClimaCom – Observa-se uma presença intensa da crise climática na mídia, nas artes, na política. No entanto, parece que de repente as pessoas simplesmente se tornam estáticas, como se o problema fosse maior do que as suas possibilidades. Que histórias sobre as mudanças climáticas temos comunicado? E por que essas histórias parecem não ter mais efeito?
Joe Smith – Sondagens de opinião pública mostram que em todo o mundo a maioria das pessoas estão a par das mudanças climáticas. Elas sabem que a pesquisa científica vê os seres humanos como o grande responsável, e estão preocupadas com isso. Este nível de consciência e preocupação é uma grande conquista da mídia. Mas a história torna-se estática quando se trata de ações. E, muitas vezes tentamos motivar as pessoas pelo medo. Mas essa tática não funciona mais. É importante conectar ações sobre mudanças climáticas – seja para mitigar ou se adaptar – a outras preocupações diárias que as pessoas têm. Assim, deveríamos falar sobre como tornar o trânsito mais leve, tirando carros da estrada e apoiando outras formas de ter acesso ao que queremos; deveríamos estar falando sobre como melhorar a habitação e locais de trabalho para torná-los mais confortáveis, utilizando menos energia. Nós deveríamos estar falando sobre como projetar cidades, vilas e edifícios para lidar com condições meteorológicas extremas e como torná-los lugares melhores para se viver em qualquer caso.
ClimaCom – Você poderia falar um pouco do seu trabalho sobre as políticas culturais e as seis características inter-relacionadas que estruturam as histórias das mudanças climáticas? Como podemos “abaixar o volume e trazer todo mundo para conversar”?
Joe Smith – Se vemos as mudanças climáticas como um problema de risco, em vez de um debate sobre os fatos, então podemos todos nos reunir para discutir se estamos dispostos a correr grandes riscos e não fazer nada, ou se vamos dar permissão para os políticos para proteger, a nós e as futuras gerações, de riscos maiores. Para uma cidade como São Paulo existem alguns riscos enormes. As mudanças climáticas e o desmatamento da Amazônia estão interligados. Isso soa abstrato para a maioria das pessoas, mas em São Paulo, significa algo muito real: o abastecimento de água que está sendo cortado numa cidade de 20 milhões de pessoas. As pessoas precisam se engajar com histórias sobre a proteção das florestas, sobre o uso racional de água, sobre ter sistemas de abastecimento de água justos.
ClimaCom – Como podemos fazer uma comunicação que seja capaz de gerar novos afetos e problematizar a importância dada a conceitos como a adaptação e mitigação quando se trata de mudanças climáticas?
Joe Smith – A mudança do clima está mudando os limites da ética e da política: pela primeira vez na história da humanidade estamos começando a desenvolver políticas e leis que representam as gerações futuras, e o mundo não-humano. Mas as políticas e leis são apenas a expressão visível do que eu acredito que seja um processo muito mais profundo, pelo qual estamos convidando os seres humanos do futuro e também habitats naturais e espécies em nossa comunidade ética e política. Obviamente, não podemos fazer isso literalmente, mas eu vejo sinais de que estamos começando a fazer isso de outras maneiras – inclusive nas artes e na mídia popular.
ClimaCom – Os relatórios publicados pelos governos e instituições científicas – o IPCC é o exemplo mais conhecido -, deveriam ser considerados como um elemento relevante para as redes de pesquisa sobre mudanças climáticas; e a sua divulgação ao público em geral gera expectativas, pois recebem muito espaço na mídia. Como pensar neles em termos dos seus efeitos e as potencialidades de comunicação e engajamento com a questão?
Joe Smith – Relatórios de ciência não trazem boas notícias – mesmo estes resumos importantes do melhor conhecimento disponível sobre as mudanças climáticas lutam para capturar a imaginação. Mas eu acho que nós precisamos agora reconhecer que a ciência tem feito o seu trabalho: ela emitiu uma avaliação sobre os riscos (e a avaliação não mudou sua manchete por 25 anos). Agora, as histórias precisam se concentrar em gestão de risco. E essas histórias não devem ser “histórias sobre as mudanças climáticas”, mas sim histórias sobre habitação, impostos, sobre se as empresas ou os líderes políticos estão fazendo seu trabalho ou falhando em termos de ter boas políticas de energia, água, transportes ou de biodiversidade. Neste sentido, a melhor coisa é não ver mais histórias de mudanças climáticas, mas sim de perceber que a mudança climática está incorporada em muitas histórias cotidianas.
ClimaCom – A ciência da modelagem climática é uma história de incertezas, uma ciência que tenta encontrar algumaordem para explicar um momento em um mundo em constante mudança. Por que é tão difícil de comunicar estas incertezas, como parte de um processo de compreensão do nosso meio ambiente?
Joe Smith – As mudanças climáticas são um dos desafios intelectuais mais complexos que humanidade se propôs. No entanto, as respostas da comunidade científica têm se mostrado notavelmente consistentes. Devemos permitir que a ciência seja apenas interessante – não deveria ser vista como controversa. As decisões políticas já são uma coisa diferente: precisamos de controvérsia em torno de tudo o que se apresenta. Precisamos de muito mais pessoas dispostas a debater e desafiar se nossas ações para descarbonizar, para reduzir o metano da agricultura, para tornar os nossos ambientes mais resilientes são as corretas.
ClimaCom – Nós gostaríamos de fazer a mesma pergunta que você propõe no início da publicação “Cultura e Mudança Climática – Narrativas”: quais novas narrativas sobre as mudanças climáticas precisam ser alimentadas? Como podemos enquadrar as mudanças climáticas e envolver o público com o que é efetivamente real no mundo, sem apelar para certezas dramáticas e drásticas imagens de ursos polares morrendo sobre geleiras derretidas?
Joe Smith – A coisa mais importante, na minha opinião, é a de convencer as pessoas de que a ação sobre as mudanças climáticas nos levará a um lugar melhor do que o lugar que estamos agora. Os combustíveis fósseis nos fizeram preguiçosos na nossa maneira de viver com a tecnologia. Em 60 anos, os combustíveis fósseis nos deram: o congestionamento do tráfego; uma indústria alimentar que resulta em obesidade; casas mal projetadas, escritórios, fábricas e cidades. Edifícios, cidades, sistemas de transporte e de alimentos sustentáveis podem dar a todos nós uma qualidade de vida muito melhor. O que está nos impedindo?!