Por: Daniela Klebis
As mudanças climáticas são uma realidade. Realidade que exige repensar as formas de conviver, de se relacionar, de conhecer e de dialogar. Promover novos encontros, buscar outros saberes. Assumir incertezas, mas conscientes dos riscos. Consciência também de que vivemos em um mundo finito, compartilhado globalmente. “Este é um momento de oportunidade para repensar o estilo de desenvolvimento e decidir mudar ou não”, alerta Benjamín Ortiz Espejel, engenheiro agrônomo e diretor do Instituto de Pesquisas Interdisciplinares em Meio Ambiente, da Universidad Iberoamericana Puebla, no México.
Desde 1983, Espejel trabalha com pesquisa etno-ecológica e paisagens agrícolas entre os índios Nahua, Popolucas e Totonacos, de Puebla e Veracruz, e os Nahua, da Serra de Zongolica, estudando a gestão, conhecimento e percepção dos recursos naturais nestes coletivos indígenas. Em dezembro, esteve no Brasil para ministrar o workshop “Patrimônio Biocultural: a experiência do México”, na Unicamp. Durante sua visita, tivemos a oportunidade de entrevistá-lo, e conversar sobre as possibilidades de viver em um mundo no qual as mudanças climáticas demandam cada vez mais ações e reflexões: “temos a necessidade de construir relações novas”, diz.
Repensar o desenvolvimento
Creio que estamos em um momento muito importante da história da civilização humana, porque as mudanças climáticas representam um fenômeno inédito na história. Por serem de caráter sistêmico e global, as mudanças climáticas acabam exercendo um efeito amplificador sobre processos sociais como imigração, pobreza, corrupção. As mudanças climáticas são um problema muito recente na história da humanidade – eu me refiro às mudanças climáticas antropogênicas. Porque as mudanças sempre existiram, mas a de origem antropogênica é novidade. No ano passado, o IPCC indicou claramente, com 95% de certeza, que se trata de um fenômeno desencadeado por ações humanas. Essa foi uma declaração muito importante porque chama a atenção para um tema de economia e governança global. As mudanças climáticas, que poderíamos também chamar de crise civilizatória, é um momento de oportunidade para repensar o estilo de desenvolvimento e decidir mudar ou não.
Vislumbrar ações
Até pouco tempo atrás, o protocolo de Quioto, os acordos internacionais, não haviam sido realmente eficientes como instrumentos para vislumbrar transformações. Porém, com a COP20, em Lima, podemos ver propostas interessantes. Pela primeira vez na história do Painel Intergovernamental e das COP, temos um acordo. É um acordo muito básico, mas é um rascunho para todos os países. Isso foi consequência das informações científicas. Os cientistas demonstraram que as mudanças climáticas são uma realidade. E isto exigiu um novo posicionamento dos países, das empresas. Obviamente, não podemos dizer que agora estará tudo bem. Esse é apenas um primeiro acordo no qual se tem notícias importantes. A primeira diz respeito ao fundo verde, o fundo de ajuda mundial que aumentou de 10 bilhões para 10,2 bi de dólares. Outra coisa, inédita e muito importante, é que os países que se comprometeram a informar o estado de suas emissões de gases de efeito estufa. Os Estados Unidos não quiseram fazer isso anteriormente. Porém, por meio desse novo acordo, todos devem fazê-lo agora.
Gênero e crise climática
Outro acordo interessante definido no COP20 refere-se ao papel das mulheres. Pela primeira vez, se incorpora o tema das mulheres na liderança. Contudo, eu preferiria falar sobre o tema de gênero, que tem a ver com a relação entre homens e mulheres. É muito importante que nesse nível tão alto de discussão mundial se tenha conseguido chegar a uma discussão da relação de gênero. Eu sou convicto de que a crise climática, a crise ambiental, tem sua origem na passagem do matriarcal para o patriarcal, na história da sociedade humana. Durante muito tempo na civilização humana, tivemos uma relação muito estreita com a natureza. E esta relação estava dada pelo papel da fertilidade feminina. As mulheres eram as que davam a vida. Porém, com a domesticação dos animais, com a aparição da agricultura, desenvolve-se uma consciência do papel do homem na criação. E essa consciência teve por resultado, tristemente, uma relação de poder, de dominação. E é a história que vivemos hoje. Não acredito que as discussões do Painel Internacional estão pensando isso. Lá, as discussões giraram em torno de como ampliar a presença das mulheres. É uma visão mais condescendente, mas já é um bom começo. Será uma discussão longa, porque vivemos, majoritariamente, em uma sociedade patriarcal. No México, 95% dos postos de cientistas doutores são homens. Não quero dizer, no entanto, que a mulheres devam tomar o papel dos homens. Queremos empoderar as mulheres, mas não dentro da lógica dos homens. Teremos que aprender a conviver de uma maneira diferente. Desde o núcleo familiar, da relação homem-mulher.
Um mundo em crise
Temos duas opções: uma, é mudar por convencimento; a outra, é mudar por padecimento. A primeira seria uma mudança por conscientização e educação. Mas eu não acredito que conseguiremos isso. Muitos autores assinalaram as tendências de indicadores sobre a capacidade da Terra, a pobreza humana, suicídios, injustiças…Tudo isso nos está levando a um ponto de crise generalizada. Crise de recursos energéticos, crises de governanças, crises de movimentos sociais. Possivelmente, essas crises estourarão entre 2040 e 2060. Chegaremos a um ponto de quebra, no qual o sistema global possivelmente entrará em colapso. Eu gostaria que tomássemos o caminho da consciência, mas não vejo isso. Eu acredito que continuaremos a caminhar cegos.
Comunicar experiências locais
Eu acredito que precisamos de uma comunicação de experiências de sucesso. Em um mundo cheio de crises e más noticias, precisamos dar visibilidade às experiências exitosas. Experiências de usos inteligentes da água, de construções de casas. Mas essas experiências locais não são difundidas. O problema está lá, não podemos ignorá-lo. Mas precisamos criar uma nova comunicação, gerar sites locais, trabalhar em comunidades, bairros. Divulgar comunidades que têm modelos alternativos de viver mais sustentável, incentivá-las a desenvolver projetos de comunicação cidadã a serem apresentados ao mundo. Criar uma rede de projetos locais que, aos poucos, vão se interconectando com outros projetos locais de sucesso. Existe uma teoria, a teoria dos sistemas complexos, conhecida também como teoria do caos, que diz que um sistema organizado pode mudar por duas ações: uma condição de contorno que influencia o sistema e o muda; ou, menos provável, novas interações dentro do sistema, capazes de provocar alterações. Nesse sentido, é possível que pequenas mudanças, dentro do sistema, causem grandes mudanças em todo o sistema. Eu acredito que as pequenas mudanças possam ser esses sites de comunicação ambiental. Isto é um sonho para mim: um projeto de comunicação ambiental que forme cidadania, não com discursos, mas com experiências reais.
Patrimônio biocultural
Acabamos de concluir no México um projeto de patrimônio biocultural, no qual passamos dez anos registrando experiências de sucesso, no meio rural. Registramos 2280 projetos que têm uma larga continuidade histórica, alguns de mais de 60 anos, com uma vocação sustentável. Todas são ações comunitárias e todas têm origem indígena. É um projeto de resgate do conhecimento com relação à existência de grupos sociais que construíram novos caminhos de desenvolvimento.
O patrimônio biocultural deve ser entendido como um conhecimento em permanente evolução. É um pensamento que requer informação, habilidades, crenças em relação à natureza do passado, mas colocando-o atual e projetando-o num futuro. O patrimônio biocultural, diferente do patrimônio arquitetônico, ou do patrimônio natural, é um patrimônio vivo, em evolução. O caso mais importante, no México, é o milho. O milho é o centro da cultura mexicana. Porém, é um cultivo em coevolução com os seres humanos. A domesticação do milho aconteceu no México há cinco mil anos, e isso resultou em mais de 50 variedades de milho, adaptados aos diferentes ambientes do país. A comida gira em torno do milho. E no México, a comida é muito importante, culturalmente. Isso é um patrimônio biocultural. Mas o que acontece hoje? Empresas transnacionais, com milhos transgênicos, estão querendo contaminar geneticamente os milhos mexicanos que levaram cinco mil anos para se formar. Então, o patrimônio cultural torna-se uma discussão biológica, antropológica e também política.
Poder e nova gestão de conhecimento
As universidades e os centros de pesquisa precisam olhar não apenas para as grandes promessas das tecnologias, mas para a criação de um diálogo entre as comunidades locais, suas experiências e as novas ciências. Mas não podemos nos equivocar e acreditar que somente um ou outro conhecimento é possível. Temos que buscar um novo estilo de gestão de conhecimento. E, dessa forma, voltamos ao tema do poder. Infelizmente, o conhecimento científico tem sido motivo de imposição cultural em todo o mundo. Porém, se não há um reconhecimento da necessidade de uma justiça cognitiva, não poderemos avançar a uma justiça social e climática. Parece fácil, mas alcançar essa equivalência de valores é muito difícil. Temos 300 anos de método científico, que é a origem mais próxima da crise climática. Seguimos ensinando aos estudantes a mesma lógica que deflagrou as mudanças climáticas. Estamos reforçando os mecanismos das mudanças climáticas. Precisamos de uma reformulação do desenho curricular, considerando o contexto.
Ciência e incerteza
Existe um movimento de cientistas que propõem uma ciência pós-normal. Vem de um conceito de Thomas Kuhn, que diz que a ciência já não é mais o campo das certezas. Diante de fenômenos complexos, como as mudanças climáticas, a ciência não têm certezas. O que temos é uma ciência que, com elementos de conhecimento que estão ao alcance, se aproxima de outros conhecimentos e, com critérios de responsabilidade, de segurança, toma decisões. A ciência precisa passar a um nível de diálogo com outros saberes, que tampouco nos darão certezas, mas a novidade é uma tomada de decisão com consciência de risco. No momento, vivemos em um mundo globalizado, no qual poucas pessoas decidem o destino de todos. Aquilo que buscamos é um sistema globalizado de informação e de consciência para tomar a decisão de seguir um caminho outro. Um caminho que poderá ser bom ou não. Porém parte de consciência.
Colapso global
As evidências da crise social que vivemos, as diferenças sociais, deveriam ser suficientes para tomarmos consciência de uma mudança de caminho. Estamos em queda livre. Mas é também possível que depois do colapso ressurja uma civilização. Isso já aconteceu antes. Com os maias, os egípcios, na Europa da Idade Média. Porém isso aconteceu localmente. Esta será a primeira vez, na história da humanidade, que teremos um colapso global. Teremos, provavelmente, ilhas de sobreviventes. E elas deverão ser motivo para uma nova oportunidade, talvez a partir de 2100. Isso levará muitos anos.
As pequenas adaptações que estamos fazendo agora poderão ser o início de novas estratégias em transporte, cidades, alimentação; elas podem resultar em um novo conceito de mundo. Mas eu não sei. É um terreno especulativo, um pouco como as ficções científicas.
Uma outra humanidade
Precisamos de uma nova identidade, mas precisamos buscá-la no outro. Essa nova relação tem a ver com um deixar-me convencer do outro, abrir-me ao outro, e a primeira barreira é a barreira do gênero. Construir uma nova relação de identidade de ser humano consiste em compreender que cada relação que temos, é uma relação de construção humana, de identidade. Uma identidade que se constrói na intersubjetividade, na coletividade e na consciência do tempo. É uma cronoconsciência e uma consciência de espécie. A consciência individual se constrói em uma consciência coletiva, mas também de espécie e dentro de um planeta finito. Precisamos aprender que uma economia ilimitada não é possível. Temos que plantar uma vida seguramente mais austera, mas, termos em mente que, ao mesmo tempo em que vivemos localmente, podemos estar conectados globalmente. É uma metáfora: não preciso sair de casa para conhecer o mundo. Mas a nova consciência humana tem que passar por, ao menos, quatro elementos: uma consciência de que vivemos em um entorno finito; uma consciência de que vivemos em comunidade com outros seres como nós; uma consciência de valores compartilhados, localmente e com diálogo com outros valores compartilhados – um mundo diverso, mas com capacidade de diálogo; e, por fim, um conhecimento respeitoso de outros conhecimentos. Esses seriam, para mim, os quatro elementos de uma nova identidade de ser humano. E já existem experiências interessantes no mundo, que mostram que esse caminho é possível.