Por: Michele Gonçalves, Meghie Rodrigues e Carolina Cantarino
Conectividade e interatividade. Fim das fronteiras, integração dos mercados e das culturas. Conexão planetária. Redes sociais. Cooperação. Compartilhamento e democratização do conhecimento. A palavra “rede” dispara os mais diversos sentidos. Alguns deles são repetidos para caracterizar o mundo contemporâneo e a circulação de saberes possibilitada pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
Muito já se falou a respeito dessa nova forma de acesso e transmissão do conhecimento. Mas o que pode uma “rede” quando se trata de pensar a própria produção do conhecimento? E as problemáticas ambientais?
Pensar a crise ambiental em rede seria uma forma de “buscar caminhos ainda não pensados pela atual racionalidade científica, produzir conexões insuspeitas, inventar soluções inovadoras, criar redes de relações, ver o mundo de outra maneira, viver de outros modos”, afirma Silvio Gallo, filósofo e professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Para ele, a multiplicidade das questões ambientais é produzida por diferentes conexões de problemas locais que ensejam problemáticas globais. É nesse ponto que as redes se tornam profícuas: se tomarmos os problemas como resultantes de uma série de fatores distintos que produzem múltiplas conexões e, portando, múltiplos efeitos.
As mudanças climáticas, nesse sentido, constituem um imenso desafio para o qual pesquisas e estudos compartimentalizados já não surtem efeitos, dadas as complexas interações entre o micro e o macro, o global e o local. A escala torna-se um problema.
Ciência aberta? A rede e o arquivo
O conhecimento científico viu sua lógica de circulação se transformar com o advento das tecnologias da informação e da comunicação, a ponto de Brian Trench, especialista em divulgação científica, em seu artigo Internet-turning science communication inside out?, dizer que os cientistas estão socializados em um mundo em que a comunicação pela Internet é “natural” ou, parafraseando o pesquisador britânico Fytton Rowland, que agora é difícil para os cientistas se lembrarem de como eles trabalhavam sem internet, ou melhor, antes dela.
A transferência de imagens, arquivos e outras informações foi radicalmente modificada com as tecnologias em rede, assim como a colaboração internacional, que acabou por ser favorecida pela maior oferta de meios para comunicação a distância. A lógica de arquivamento se redefiniu e há movimentos, como o Open Science, que preconizam que o acesso ao conhecimento passe, ainda que a passos mais lentos, por um processo parecido com o da indústria musical: as grandes editoras científicas perderiam, assim, a primazia sobre o processo de revisão por pares, a publicação e o acesso a conteúdos científicos. Iniciativas como o repositório ArXiv, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, já caminham neste sentido. A Internet permite, portanto, uma maior abertura e acesso aos conteúdos científicos, aos arquivos.
Segmentação e Multiplicidade
Mas qual seria o potencial da rede para uma efetiva transformação na produção do conhecimento? De que modo ela pode vir a reorganizar não só o acesso aos arquivos, mas o próprio pressuposto de que conhecer é arquivar?
Gallo aposta na transdisciplinaridade como ruptura com o pensamento disciplinar na medida em que considera múltiplas as possibilidades de conexões, aproximações, cortes e percepções, rompendo, portanto, com a hierarquização, tanto no aspecto do poder e da importância, quanto no aspecto das prioridades na circulação dos saberes.
A transdisciplinaridade, segundo formulação feita por Félix Guattari na década de 1970, rompe com as noções de multi e interdisciplinaridade, na medida em que não concebe nem a verticalidade nem a horizontalidade do conhecimento. Em outras palavras, ele abandona as limitações dos campos de disciplinas, buscando conexões múltiplas e multidimensionais, que transitam do local ao global, do micro ao macro, da parte ao todo, por diferentes linhas.
Transdisciplinaridade pode ser concebida, portanto, como uma nova perspectiva para a produção e circulação do conhecimento, levando as discussões ambientais a um patamar mais criativo e menos segmentário. Essa é a aposta de Silvio Gallo, para quem a visão transdisciplinar está vinculada ao abandono da árvore, na produção do saber, e à acepção do rizoma. “Explorar as diferentes perspectivas, construindo redes pensadas como rizomas, permitirá saberes mais completos e mais complexos. Se abdicarmos da necessidade e desejo de uma verdade única, poderemos explorar mais a fundo e de modo mais abrangente os problemas que se nos apresentam”, afirma o filósofo.
O conceito de rizoma foi criado pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari em sua obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980), face às tendências organizativas, sequenciais e hierárquicas que compuseram a base predominante do olhar histórico para a natureza e a cultura nos últimos séculos, fenômeno que os autores chamaram de pensamento arbóreo. Tais linhas segmentaram seres, processos e coisas para compreender e melhor explicar seus mais íntimos comportamentos, gerando subdivisões quase infinitas de classificação e domesticando-os, muitas vezes, a espaços limitados e competências pré-definidas. Na história da produção do conhecimento, estes aspectos se traduziram na disciplinarização, ou seja, na divisão do saber em disciplinas e campos distintos.
Face à segmentação arbórea, Deleuze e Guattari propõem o pensamento a partir da multiplicidade. Defendem a suspensão da interpretação que separa e classifica em prol da experimentação de alianças e conexões. Eles definem essa nova lógica como rizoma, termo emprestado da botânica e que caracteriza alguns vegetais cujos caules são imensos emaranhados de raízes no meio das quais se dispõem bulbos armazenadores de energia.
Para Deleuze e Guatarri (1980), os princípios do rizoma seriam os seguintes: em vez da hierarquia, a valorização da heterogeneidade (não há relações intrínsecas, mas entrelaçamentos, multidirecionais e múltiplos, de diversas ordens); não há forças mediadoras e encaminhadoras das relações, tampouco homogeneização; a unidade se subjugaria à multiplicidade: não há pontos ou posições especificadas, apenas linhas; não há sujeitos ou objetos, mas tramas de dimensões múltiplas que aumentam na mesma medida das conexões; há ainda segmentaridade, estratificação e organização, mas também indeterminação e fuga, de modo que as linhas sempre remetem umas às outras e as rupturas, constantes, podem ser retomadas em quaisquer direções.Qual seria, então, a especificidade do rizoma enquanto rede, enquanto um modo de organização do conhecimento? “O rizoma é um tipo de organização, de equilíbrio dinâmico, em permanente relação com o caos. Todo saber é produzido a partir do caos – é ele quem pode ensejar qualquer coisa de criativo – mas é também uma espécie de ordem, portanto é algo que se extrai ao caos opondo-se a ele, mas sem jamais perder esse vínculo. Num rizoma, com seus fluxos caóticos, cada conexão entre diferentes linhas é a criação de ordem. Mas essas ordenações são sempre momentâneas, pois se desfazem em fluxos que produzem novas conexões, a todo tempo”, argumenta Gallo.O caótico aqui, portanto, nada mais é do que outra lógica de organização, que considera a possibilidade de que os fenômenos culturais e naturais possam reger-se também por estados efêmeros e não hierárquicos, organizados segundo múltiplas redes de possibilidades. Tal dinamismo, continua Gallo, faz do rizoma uma forma completamente distinta de organização dos saberes, a qual está sempre ensejando perspectivas singulares, na contramão de uma normalidade que busca perspectivas estáticas, duradouras e universalizantes.
Se não tem intenção de promover a desordem completa, tampouco a ótica transdisciplinar intenta a relativização. Como explica Gallo, a partir do momento em que pensa o real como conexões de multiplicidades, ela não prescinde de uma identidade ou unidade, ou seja, de uma verdade. Logo, se não se baseia em uma, mas múltiplas verdades, porque como são muitas as perspectivas, o risco do relativismo deixa de existir. Há, ao contrário, segundo ele, o perspectivismo, conceito proposto por Nietzsche: as múltiplas verdades que compõem o real.
Da informação à vida
A complexa configuração da crise ambiental e das alterações climáticas tornam urgente o debate acerca de novos modos de produção do conhecimento. As novas escalas e dimensões dos eventos relacionados ao clima, por exemplo, emergem como um problema a ser enfrentado. O impacto das novas tecnologias de informação e comunicação no redimensionamento do “tempo” e do “espaço” também participa dessa configuração, desafiando as percepções daquilo que consideramos como ambiente, paisagem, lugar e, até mesmo, da “vida”.
Nesse contexto, a rede deixa de se restringir à circulação de conhecimentos possibilitada pelas novas tecnologias da informação e da comunicação, e a própria noção de “informação”, aliás, também é reconfigurada.
Manuel Castells tornou-se um pensador bastante associado à ideia de “rede”, a partir da publicação da trilogia A era da informação: economia, sociedade e cultura, publicada entre 1996 e 1998. Com o primeiro volume, A sociedade em rede, o sociólogo foi um dos primeiros a problematizar o papel das tecnologias da informação e da comunicação na configuração de novas relações sociais e de poder, e o processo de reestruturação do capitalismo a partir da década de 1980 que, segundo ele, culminou no chamado informacionalismo.
Com ele, as economias globais passam a interagir de uma forma diferente da que faziam durante o industrialismo: o foco passa a ser não tanto a produção de bens no sentido da transformação industrial de matéria-prima, mas a prestação de serviços e a flexibilização (e consequente precarização) do trabalho.
Daí o porquê de a “sociedade em rede” ser considerada, também, como a “sociedade do conhecimento”: a fonte principal de produtividade na economia torna-se o conhecimento, a informação e as tecnologias utilizadas em seu processamento, baseadas na microeletrônica. Ao invés de ser um meio para dominar determinada técnica, o conhecimento passa a ser o próprio fim, adquirindo valor (comercial) por si mesmo.
A proeminência das novas tecnologias da informação e da comunicação que caracteriza a “sociedade em rede” apresenta, portanto, intensas implicações sociais, culturais e políticas. Também nomeada como “terceira revolução industrial” ou “virada cibernética”, seu impacto na própria configuração das tecnociências também tem sido destacada por autores que enfatizam como a democratização do conhecimento, no mundo contemporâneo, não passa unicamente pelo acesso à informação possibilitado pelas novas tecnologias, mas diz respeito à sua produção, ao seu processamento.
Laymert Garcia dos Santos, sociólogo e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca como a “informação” deixa de se restringir ao campo da comunicação: com a virada cibernética, elabora-se uma linguagem comum para além das especificidades dos diversos ramos do conhecimento científico, baseada na ideia de que plantas, animais, humanos e máquinas são passíveis de codificação e recodificação, ou seja, de que todo o mundo é passível de ser transformado em dado, em informação.
“Ora, a possibilidade de se conceber um substrato comum à matéria inerte, ao ser vivo e ao objeto técnico apaga progressivamente as fronteiras estabelecidas pela sociedade moderna entre natureza e cultura”, escreve Garcia dos Santos, num artigo que busca, portanto, pensar a importância da nova configuração da informação para que se possa problematizar as relações entre tecnologia e política na sociedade contemporânea.
Em Politizar as novas tecnologias – O impacto sócio-técnico da informação digital e genética (livro publicado em 2011), Garcia dos Santos irá alertar para o fato de que o próprio capitalismo, em seu entrelaçamento com as tecnociências, instrumentaliza esse apagamento de fronteiras entre natureza e cultura para apropriar-se da própria vida, caso da biodiversidade transformada, pelas biotecnologias, em patrimônio genético a ser patenteado pela indústria (caso, por exemplo, dos transgênicos).
Nesse contexto, caberia investir em outros devires para a própria noção de “rede”: não se trata de pensar a rede como a criação de conexões entre conhecimentos já dados. Mas de investir na invenção de novas articulações, composições, aquelas que relacionam para alterar, para transformar, para fazer com que temas e saberes – a filosofia, as artes, as ciências, a comunicação, a informação e as mudanças climáticas – saiam dos seus lugares pré-determinados e fixos, dos arranjos disciplinares.
Podemos, por fim, esboçar algumas linhas de força da noção de rede. Ela pode nos fazer repensar a organização do conhecimento em disciplinas, espaços e tempos definidos como sendo de competência única de determinadas ciências. Diante da insuficiência da atual estruturação de saberes para responder à complexidade inerente às relações contemporâneas que prolifera em diversos campos do conhecer, do fazer e do sentir, as articulações das e nas redes podem surgir com outra imagem para o pensamento, a partir das potencialidades de um novo descobrir, quiçá mais caótico e descontínuo. As linhas podem nascer incertas e criar novas assertivas para, mais que interpretar, entender e compor com a vida.