Desvio: a cidade posta em cartões
Amanda M. P. Leite [1]
Renata Ferreira da Silva [2]
[…] não é apenas o espetáculo que tende
a extravasar sobre o real,
é o cotidiano que sempre se organiza como espetáculo ambulante […]
(DELEUZE, A imagem-tempo, 1990, p. 14)
Cartepostalizar a cidade é escrever em estado de desvio “pois é justamente a carta desviada que nos ocupa, aquela cujo trajeto foi alongado” (DERRIDA, 2007, p. 484). Alongar e fazer circular cartões-postais é esperar por respostas que, quem sabe, venham, quem sabe não. Em originário estado de desvio, os postais saem de Palmas e são lançados ao vento da errância. Derrida (2007), insiste que é “por poder sofrer um desvio que ela [carta/cartão–postal] tem um trajeto que lhe é próprio” (DERRIDA, 2007, p. 484 – observação nossa). Estamos enviando fragmentos de imagens e imprecisões da cidade de Palmas, capital do Tocantins, como pedaços de singularidades. Estes detalhes estão destinados mais a errância em uma revista on-line do que uma destinação. Seriam legíveis a qualquer um?
Aprendemos com Derrida que o sentido de um bilhete, um cartão-postal, uma carta “não possui um lugar idêntico a ele mesmo” (DERRIDA, 2007, p.484). Tais cartões se resumiriam a um índice de singularidade enviado a um destinatário com um claro e fechado significado? Não. “Seu sentido importa pouco, ele não se resume a isto” (DERRIDA, 2007, p.484). Produzir um cartão postal tem sido um modo intensivo de encontrar a cidade, habitá-la, praticá-la e produzir sentidos.
Na contramão de cartões-postais exuberantes e espetaculares, no sentido de Debord [3] (1997), as capturas revelam um conjunto de fotografias às avessas de um postal, anti-espetáculo, ou mais próximo dos modos de vida que avistamos no cotidiano da cidade. Um modo sensível de (re)ver Palmas, uma cidade planejada, projetada para o futuro e cheia de fissuras no presente. As capturas são também modos de ver e deslocar a paisagem contemporânea a partir de criações artísticas e experimentais. Os cartões-postais são caracterizados por, de um lado, apresentar uma imagem (fotografia e/ou desenho) e, de outro lado, deixar um espaço em branco para que alguém escreva algo a partir do lugar que se encontra, da sensação que lhe atravessa, do ponto de vista que observa, etc. São cartas-imagéticas remetidas sem envelope que, “pegam” e “levam” parcelas de nós mesmos e das cidades que percorremos mundo afora.
Menos interessadas em promover a divulgação da cidade de Palmas como um lugar atraente e encantador, nossa intenção é lidar com a imagem-texto, imagem-movimento, imagem que provoca sentidos não fixados. Não se trata de um cartão postal representativo ou documental, mas sim, de criações que desejam encontrar outros sentidos disparados a partir das capturas imagéticas e textuais. Um movimento potente que sugere deslocamento. Inventamos postais e espalhamo-los ao vento.
Os postais provocam. Podem ativar potentes interlocuções entre aquele que propõe e aquele que vê. Não para conceituar a verdade sobre as paisagens da cidade, na contramão disto, coloca também o espectador à deriva, abre passagem para um tempo Aion [4] (Deleuze, 2009), o tempo da mirada, da eternidade ou de quanto dura o olhar sobre um postal. Pelos postais também viajamos no tempo, entre paisagens e narrativas visuais. Quando remetemos um postal a alguém convidamos outra pessoa a se aventurar, a colocar-se em travessia. O que acontece nesta deriva? No instante em que percorremos as paisagens de um postal, deslocamos nosso corpo, nossa mente, nossos sentidos. Miramos sem finalidade e somos afetados, atravessados, lembramo-nos de coisas vividas, (re)criamos histórias, fazemos conexões. Um postal (na sobreposição de imagens e textos) pode provocar infinitas leituras e a (de)composição narrativas. O que você avista?[5]
Verso[6]
Alho. Pimenta. Cominho. Açafrão.
Tempero desidratado. Raiz forte.
Sal. Gengibre. Colorau.
Ah! Como eu gostaria de te enviar o cheiro…
Estou bem. E você, como está?
Verso
Se tem uma coisa que me chama a atenção neste lugar é a moda.
Preciso te contar uma coisa, mas não espalhe.
Outro dia avistei pessoas entrando no lago assim, acredita?
Uma mulher com vestido “tubinho”,
outra com calça leg, camisão e cinto dourado.
Havia também um homem.
Bermuda jeans e camiseta gola polo.
Quase 40º.
A verdade é que qualquer pessoa gostaria de se atirar no lago.
O cinto reluzia. O camisão boiava.
A gola polo do homem pesava sobre o corpo.
Biquíni para que?
Levará um tempo para eu entender…
Ando tão fora de moda.
Verso
Outro dia caminhei pelo camelódromo daqui.
Foi um passeio diferente. Um convite e tanto para a
explosão de cores, formas, texturas, sons…
Fui capturada. A música era tão estranha a mim.
Orgulhoso o dono da loja me disse: pode fotografar.
Tanta coisa passou pela minha cabeça naquele instante.
Fiz a foto.
Verso
Visite Palmas!
Caçula das capitais brasileiras.
Princesinha do Brasil.
Capital da alegria.
Beijo.
Verso
Enganei-me pensando que o céu azul daria conta de tudo. Descobri que o limpo céu azul arde. Pratiquei este cartão postal para você porque os coloridos das vassouras gigantes que são vendidas aqui (pelas ruas e na feira da cidade) são para mim uma espécie de revelação. Quem alcança o infinito e a eternidade? Como a menina que se depara com o medo da eternidade ao mascar chicletes pela primeira vez naquele conto de Clarice Lispector (que amo), eu também estou ficando aliviada sem o peso da eternidade sobre mim. Eu te envio, simplesmente, este pedacinho.
Verso
Aqui, nos nossos cartões-postais,
nenhum detalhe será menos importante.
Eu continuo a me perder por aqui. A sensação de dirigir numa cidade logicamente organizada por quadras e rotatórias não deveria ser uma experiência feliz? Ah! É para ver de cima? Mas, ao chegar em Palmas observa-se que tudo parece familiar, uma vez que se tenha feito um percurso entre duas rotatórias, a cidade se repete e nos confunde como um jogo de espelhos. Avenidas, bolsões e fachadas se duplicam ao infinito, refletindo-se. É difícil criar marcas nesta cidade e,
ao mesmo tempo, é fácil perder-se. Grande curva, retorno.
Verso
Aqui eu pratico uma rotina anual.
Em setembro eu queimo com o cerrado.
Tenho aprendido a renascer com a chuva.
Realmente, você tem razão. Não tem nada mais resistente
do que os brotos verdes no carvão.
Eu quero voltar lá para carterpostalizar isto.
Por hora descobri que em setembro, por aqui,
sempre tem alguma coisa queimando.
Até quando? Até quando?
Verso
Hoje eu passeio. Fortaleço, como um personagem conceitual,
a figura do andarilho, definido pelo seu modo de andar, andar por aí…
Estou mais atenta às ruas. Há furos, fugas.
Estou quebrando os espelhos e tentando (hoje) capturar/produzir diferenças.
Escreve logo.
Bibliografia
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DERRIDA, Jacques. O cartão–postal. De Sócrates a Freud e além. Trad. Ana Valéria Lessa e Simone Pereklson. Civilização Brasileira. Rio de janeiro, 2007.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Recebido em: 30/01/2017
Aceito em: 15/02/2017
[1]Doutora em Educação. Fotógrafa. Professora do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Contato: amandaleite@uft.edu.br
[2]Doutora em Educação. Atriz. Professora do curso de Teatro da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Contato: renataferreira@uft.edu.br
[3][…] Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação […] o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens […] o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis”, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência (DEBORD, 1997, p. 13; 14 e 28).
[4]O tempo Aion é um tempo incorporal que cruza o tempo atual com o virtual. “Aion é lugar dos acontecimentos incorporais, ilimitado como o futuro e o passado, mas finito como o instante […] povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo […] se estende em linha reta e limitada nos dois sentidos […] passado e eternamente por vir” (DELEUZE, 2009, p. 170).
[5]Caso queira dar circularidade a estes postais, cartepostalize sua cidade e nos envie.
[6]Os cartões-postais foram produzidos com fotografias de arquivos pessoais das autoras deste texto.
Desvio: a cidade posta em cartões
RESUMO: Esta escrita estuda a produção de cartões postais a partir de um modo intensivo de encontro com a cidade de Palmas, capital do Tocantins. Acontece um desvio, na contramão de cartões-postais exuberantes e espetaculares, as capturas revelam um conjunto de fotografias às avessas, um anti-postal, ou mais próximo dos modos de vida que avistamos no cotidiano da cidade. Exercitamos um modo de habitar, praticar e (re)ver Palmas, uma cidade planejada, projetada para o futuro e cheia de fissuras no presente. As capturas são também modos de ver e deslocar a paisagem contemporânea a partir de criações artísticas e experimentais e pensar as possibilidades de pesquisa nas cidades.
PALAVRAS-CHAVE: Cartão postal. Cidade. Experimentação.
Detour: the city put into cards
ABSTRACT: This writing studies the production of postcards from an intensive way of meeting the city of Palmas, capital of Tocantins. There is a detour, against exuberant and spectacular postcards, the catches reveal a set of photos in reverse, an anti-postcard, or closer to the ways of life we see in the daily life of the city. We practice a way of dwelling, practicing and (re) seeing Palmas, a planned city, projected for the future and full of fissures in the present. Captures are also ways of seeing and moving the contemporary landscape from artistic and experimental creations to thinking about the possibilities of research in cities.
KEYWORDS: Postcard. City. Experimentation.