Cristiane Guimarães | Incomunicáveis – crônicas do cotidiano
Título | Incomunicáveis – crônicas do cotidiano
Os textos foram produzidos no âmbito do Seminário “Gambiarras e suas asas”, ministrado pelos professores Dr. Leandro Belinaso Guimarães e Dr. Eduardo Silveira, no primeiro semestre de 2018, no Programa de Pós-graduação em Educação, na Universidade Federal de Santa Catarina. Os textos expressam o processo criativo de ler e escutar imagens do cotidiano e com elas compor outros gestos narrativos e poéticos no mundo e com o mundo, narrando e reinventando existências outras: o que lemos, o que escutamos, o que escrevemos em nossas micronarrativas diárias e cotidianas. O que o mundo nos diz, o que nos sussura nas imagens, nos restos de um tempo, nos entre vãos da memória, o que escrevemos, enfim, nos entre espaços de escuta do mundo e nas entrelinhas dos grandes textos e manuais da ciência e da educação. Os textos fazem parte do processo de pesquisa de doutorado da autora que buscou ler, num baú/arquivo de professora, o que as imagens e cenas cotidianas tem a nos contar.
Palavras-chave: Cotidiano. Imagem. Escuta. Leitura. Escrita.
FICHA TÉCNICA
Título: Aquele dia
Texto e voz: Cristiane Guimarães
Título: Incomunicáveis
Fotografia: Cristiane Guimarães
Cristiane Guimarães
E-mail: turmasdacris@gmail.com
I
Incomunicáveis
Há tempos quero tecer uma ode ao insignificante. Existem cenas, imagens de nosso cotidiano que nos capturam, que nos gritam, nos falam algo, basta ouvir, como ensinou belamente o Mestre Manoel de Barros. Basta deixar o tempo dizer em seu tempo. O espaço dizer em seu espaço e dos dois conversarem.
Tais coisices, não são ao acaso, ao contrário, parecem fixar-se na natureza das coisas do mundo como se sempre ali já existissem, como se suas histórias não o fossem verdadeiras ou se suas linhas biográficas não significassem nada ao mundo, porque não dotadas de voz e de espírito. São coisas, coisificantes, coisificadas, coisarada do mundo. Mas se ousássemos pensar que sim, há histórias e muitos artistas já criaram narrativas sobre o mundo das coisas ou os mundos e as coisas.
Pois bem, uma das coisas do mundo que me capturou e pediu essas palavras, ou melhor, pediu a palavra foi esse velho e simpático orelhão da Costa de Dentro, bairro onde repouso meus sonhos e devaneios.
Quantas perguntas ouvi dele, quantos sussuros visuais de sua impotência tardia.
Cá com meus botões, à moda machadiana de ver e dizer o mundo, ouvi seus murmúrios enquanto esperava o chão vibrar com a chegada do ônibus, como faziam os antigos para irem ao centro da capital. Contou-me aflito que sente-se só. Não marca mais encontros, não dá avisos, deixou de reunir pessoas e de conectar mundos.
Solitário, me conta que espia assustado como as pessoas se transformaram em tão poucos anos. Suas orelhas ao mundo, sua escuta grande e ampla já não funciona mais. De perto, ao seu lado, espia multidões que se encontram, mas não conversam. Não entende como foi radicalmente tão deixado, esquecido, ignorado, riscado do mapa, mesmo que ainda o habite. Não entende o que aconteceu, nem como, nem por quê.
Apenas sente-se só e reclama rememorando sua função que tivera nos seu auge juvenil. Suas orelhas abertas ao infinito penderam à força do tempo e do silêncio, quem sabe dos pesos que carregou, das palavras que ouviu, das preces que não atendeu, histórias que se fez plateia e palco: voz. Não trabalha mais, não escuta, não conecta, não conversa. Apenas olha o mundo de maneira tímida para que ninguém o perceba sôfrego…o perceba morrendo de desilusão e desgosto, ou apenas, perceba-o.
Quantos encontros marcou, quantas viagens sonhou, quantas baladas articulou, quantos nãos proferiu. Quantos corpos uniu, quantos baseados encomendou, quantas emergências discou. E quantos sim. E quantos talvez e quantos sussuros e arrepios. Não importa muito.
Um dia fora importante. Não entende ainda porque as pessoas trocaram os ouvidos pelos olhos. Por que as pessoas trocaram a orelha pelos dedos. Que mutação genética acontecera. O que houve afinal com os humanos em tão curto espaço de tempo.
Enquanto isso, continua ali, pendido, torto, cansado, sem lugar no mundo, à espera de um sopro de vida, ou à espera das carrocinhas dos objetos desalmados, não úteis, coisas do mundo que não servem mais.
Quem dera, pensou, houvesse o museu das coisas que não mais falam. Fosse notado, capturado, resgatado. Quem sabe polido pela aura da estética chique dos museus citadinos alguém se interessasse pelo seu veio poético. Suas formas, contornos, seus sentidos, sua orelha. Quem sabe um brinco, um batom, um salto alto, um echarpe desses que está na moda. Ou simplesmente um clic. Um momento de glória, em tempos que as imagens valem muito mais que a voz. Alô. Tem alguém aí?
II
Aquele dia
Ela saiu de casa preocupada com o atraso do marido. Foi ao orelhão mais próximo, mesmo temendo a penumbra da quase meia noite.
Na firma, o colega atendeu a ligação e informou que Jailson saira no horário de sempre.
Não entendeu. Chorou. Calou-se.
O orelhão, sensibilizado, pendeu seus ombros para acalmar mais um coração ansioso, mais um coração partido.
E dizem, que de tantas esperas, hoje pende, pesado de histórias, à espera de um museu das grandes orelhas esquecidas, onde possa, quem sabe, com uma aura recuperada, contar a uma alma escutadora, algumas de suas crônicas de amor.
GUIMARÃES, Cristiane. Incomunicáveis – crônicas do cotidiano. ClimaCom – Povos ouvir – a coragem da vergonha [online], Campinas, ano 6, n. 16. Dez. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/cristiane-guim…s-do-cotidiano/
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SEÇÃO ARTE | POVOS OUVIR – A CORAGEM DA VERGONHA | Ano 6, n. 16, 2019
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