“Criançar o descriançável” : a transicionalidade da infância e o paradoxo da proteção-liberdade| Maria Cristina Gonçalves Vicentin
Maria Cristina Gonçalves Vicentin[1] [2] [3]
Não é casual que tenha vindo do cinema – esta que talvez seja a arte que mais tenha aberto certos lugares de expressão singulares para a infância – uma arguta observação e umas das mais fortes imagens sobre a infância em nosso tempo histórico. Diz Jean-Luc Godard: “as crianças são prisioneiros políticos” (apud DELEUZE, 1992, p. 55) para se referir a este tempo histórico (o do final do XVIII e mais particularmente o do XIX) que reconheceu a particularidade da infância mas às custas de sua conformidade às normas, de seu assujeitamento a potentes dispositivos de codificação, de natureza sanitária, pedagógica e política.
De fato, o “dispositivo da infância” (CORAZZA, 2000), constituído na Modernidade, instituiu a infância como um problema econômico-político, uma preocupação médico-moral, um encargo pedagógico, um objeto de conhecimento das Ciências Humanas e Sociais, a ser interrogado, investigado, mensurado, classificado e normalizado por um conjunto de mecanismos disciplinares que circunscrevem o âmbito das experiências próprias de cada idade, descrevem os cuidados de que elas devem ser objeto e as operações necessárias para garantir sua transformação em cidadãos úteis e ajustados à ordem social e econômica vigente. (DONZELOT, 1986; CORAZZA, 2000). Nessa combinação das duplas forças de infantilização e adultização, a forma-infantil foi subjetivada “num espelho-simulacro do sujeito verdadeiro adulto” (CORAZZA, 2002, p. 200-201). Além de se orientar por uma “estrutura de racionalização adulta” (JENKS, 2002, p. 212), tal perspectiva adota uma concepção de infância como veículo da reprodução social.
Nesta empreitada, romperam-se os vínculos iniciáticos entre adultos e criança, a transmissão dos saberes práticos, a liberdade de movimento e de agitação que se encontrava quando crianças e adultos andavam misturados no trabalho e diversões, nas festas e cerimônias (DONZELOT, 1986; SCHÉRER, 2002). Daí em diante suas tarefas e brincadeiras terão o único objetivo de construir sua formação. E vigorará a crença de que os adultos é que podem envergar a bandeira da proteção e do cuidado em relação às crianças e adolescentes em função do saber que os qualifica e distingue para traduzir e interpretar o que é interesse da criança e do jovem (CASTRO, 2007). Oculta-se assim ou se minimiza o papel criador de crianças e jovens no processo de transmissão social ou intergeracional. Sob a égide da imaturidade dos mais novos, se invisibiliza e legitima a pulsão de dominação adulta. Prisioneiros políticos portanto na medida em que estão atados a uma espécie de declaração de incapacidade sociopolítica; numa posição de subordinação (MÉNDEZ, 1994; CASTRO, 2001; JOBIM; SOUZA, 2009; MELO, 2011; ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
As críticas a esta concepção se consolidam nas décadas de 1980 e 1990, especialmente a partir dos Estudos Sociais sobre a Infância (na tradição anglo-saxônica), ou Sociologia da Infância (na tradição francófona), que buscam entender a infância como uma construção social; atacar o conceito de socialização da criança como inculcação, até então predominante, e conceber a criança como ator social. (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
Esta brevíssima localização da posição da criança na Modernidade tem como propósito apenas extrair como um legado histórico uma antinomia entre proteção e liberdades. Afinal, a disciplina sempre prevaleceu em relação à liberdade como um a priori da educação e do adestramento da criança, aliás, é ela mesma a condição da infância. Afinal, como sugere Schérer, “quando a disciplina não consegue se impor não é costume dizer que a criança é ou está impossível?” (2002, p. 34).
Mas não vamos aqui nos ocupar exatamente de analisar estas heranças da Modernidade. Tomamos a figura da tensão entre proteção e liberdade para ressaltar que a utopia ativa da construção ainda recente dos direitos da criança e do adolescente (que data do Pós segunda Guerra e que se institui em nosso país em 1989 com a assinatura da Convenção Internacional dos Direitos da Criança) parece sugerir um caminho nem antinômico, muito menos dicotômico entre estes dois termos. Tal caminho nos convida a pensar na proteção não apenas como prática de governo da vida ou como prescrição mas como afirmação da dimensão libertária da vida e como condição de cuidado de si e dos outros. De fato, na esteira dos movimentos minoritários e das lutas transversais do pós-guerra (e mais especialmente nos anos 1960/70) foi possível forjar um tipo de direito interessado no diálogo com a singularidade de certos modos de vida (Leia o ensaio completo em PDF).
Recebido em: 30/06/2020
Aceito em: 30/07/2020
[1] Professora doutora do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP. E-mail: mvicentin@pucsp.br
[2] O título “Criançar o descriançável” não é original. A “fórmula” compõe, ao contrário, um conjunto de outros textos das quais sou autora ou co-autora, dirigidos a diferentes interlocutores (profissionais da saúde, educação e assistência) e sustentam uma estratégia de difusão de um ethos criançável na relação com crianças e adolescentes, retomando alguns elementos indicados anteriormente em outra perspectiva e com outros desdobramentos. (VICENTIN, 2016a; 2016b; VICENTIN, M C G; GRAMKOW, G., 2018).
[3] Este texto foi originalmente apresentado no Seminário Museus, infância e liberdade de expressão, proposto pelo Museu de Arte Moderna, na semana de x a y , na mesa “Liberdade de expressão e infância: proteção dos direitos das crianças e restrições à liberdade de expressão se completam ou se repelem?” realizada no dia 4/10/2018. A apresentação está disponível no https://www.facebook.com/watch/live/?v=497790020701905&ref=watch_permalink. Pequenas modificações foram introduzidas na passagem para a forma escrita.
“Criançar o descriançável”: a transicionalidade da infância e o paradoxo da proteção-liberdade
RESUMO: Os novos direitos de crianças e adolescentes, assim como as experiências de democratização das relações entre crianças, adolescentes e adultos em curso desde a segunda metade do século XX, têm produzido uma importante inflexão em torno do direito à autodeterminação e aos direitos de liberdade de crianças e adolescentes. Tal inflexão não se fez sem tensões relativamente aos direitos de proteção, estes últimos assentados muitas vezes numa suposta incapacidade sociopolítica de crianças e adolescentes e na posição de subordinação das infâncias – sua vulnerabilidade estrutural – nas sociedades contemporâneas. Neste texto, em diálogo com as produções dos Estudos Sociais da Infância, consideramos as relações entre direitos de proteção e liberdade como um paradoxo e não uma contradição. Com base na noção de transicionalidade da infância em Winnicott, apresentamos algumas pistas para uma posição ético-política para o mundo adulto interessado em habitar este paradoxo.
PALAVRAS-CHAVE: Infância. Direitos. Autonomia.
_________________________
Childing what was unchilded: childhood transitionality and the protection-freedom paradox
ABSTRACT: The new rights of children and adolescents, as well as the experiences of democratizing the relationships between children, adolescents, and adults that has been occurring since the second half of the twentieth century, have produced new ways regarding the right to self-determination and the right to freedom of children and adolescents. This inflection has not transpired without tensions relative to the rights to protection, which are often based on the supposed sociopolitical inability of children and adolescents, and the subordinate position of childhood – its structural vulnerability – in contemporary Society. In this text, in dialogue with the productions of Childhood Social Studies, we consider the relationship between rights of protection and freedom as a paradox and not a contradiction. Based on Winnicott’s notion of childhood transitionality, we present some indications for an ethical-political position for the adult world interested in inhabiting this paradox.
KEYWORDS: Childhood. Rights. Autonomy.
VICENTIN, Maria Cristina Gonçalves. “Criançar o descriançável”: a transicionalidade da infância e o paradoxo da proteção-liberdade. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7, n. 18, Set. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/criancar-o-descriancavel-a-transicionalidade-da-infancia-e-o-paradoxo-da-protecao-liberdade-maria-cristina-goncalves-vicentin