Covid-19 na voz das crianças: impactos e desafios|Narda Helena Jorosky e Flavia Cristina Oliveira Murbach de Barros
Narda Helena Jorosky[1]
Flavia Cristina Oliveira Murbach de Barros[2]
RESGATANDO A INFÂNCIA, A EDUCAÇÃO E AS ESPECIFICIDADES INFANTIS NA HISTÓRIA
Resgatar alguns pontos importantes do desenvolvimento infantil nesse momento de pandemia é medida fundamental para avaliarmos algumas das principais necessidades que, em meio ao novo contexto social, o grupo de indivíduos compreendidos entre 7 e 11 anos possui. Tratam-se de especificidades as quais é imperioso que reavivemos, ante um cenário em que a preocupação pedagógica é enorme e está focalizada no conteúdo, em procedimentos escolares e na utilização de atividades remotas para as crianças que, muitas vezes, acabam por apresentar dificuldades adaptativas perante necessidades impostas pela condição de ensino à distância implantadas em função da pandemia do novo coronavírus.
A noção do que seja infância, seus modos de abordagem (seja psicológica, seja biologicamente etc.) e o reconhecimento das especificidades infantis tal como conhecemos atualmente é algo historicamente recente. Segundo Postman (1999), a ideia de infância surgiu na Renascença. Foi, portanto, no século XVI que tiveram raízes as discussões sobre a criança e seu desenvolvimento, assim como a infância em seu cárater social, psicológico e histórico. Naquele período, as concepções sobre essas questões ainda eram muito rudimentares. Não obstante, muitos destes tópicos ainda são investigados na contemporaneidade. Baseando-se nos estudos de Postman, Barros & Couto (2019), podemos apreciar um fenômeno histórico relevante nas transformações do modo como a infância e a criança passaram a ser consideradas:
O surgimento da prensa tipográfica, no século XVI, criou uma nova forma de conceber a idade adulta, pois uma nova simbologia se instalava, a escrita, a leitura e a reflexão destinadas aos adultos. Nesse contexto, ler e escrever eram atos exclusivos de gente grande, o que implicou na exclusão das crianças do universo adulto no surgimento de outro habitat, a infância. (POSTMAN; BARROS & COUTO, 2019, p. 2018).
Segundo as autoras, a prensa marca assim uma preocupação maior com as crianças e suas especificidades, o que também, como consequência, motivou a discussão de novos olhares direcionados ao desenvolvimento infantil revigorados pela sensibilidade de diversos artistas retratados pelas diversas formas artísticas e pela literatura. O brincar, atividade particular da criança, também começa a ser visto de outra forma, agora com um sentido de pertencimento à infância.
Temos como destaque as pesquisas históricas realizadas por Áries (1978) sobre o diário do médico Heroard, (século XVIII) material que reconstituía a infância do rei francês Luís XVIII (1755-1824), em evidência das atividades lúdicas utilizando-se de brinquedos além da participação das peças teatrais, de ouvir histórias, de participar de danças e do canto. Áries trouxe em suas obras a primazia e a importância da brincadeira; a presença do lúdico na história da infância, o que mostra que o caráter social, histórico e psicológico específico do desenvolvimento infantil se fortalece e, claro, se complexifica.
Já Kuhlmann (2012) avança nessas discussões e afirma a importância de termos consciência de que a História não se constitui enquanto uma sucessão de fatos lineares. Para ele, é fundamental, destarte, que se compreenda que:
No lugar de postular uma sucessão de fatos que iriam da inexistência à existência de um sentimento de infância, acompanhado do progresso das concepções pedagógicas, a compreensão do passado precisa levar em conta as tensões existentes em torno das relações sociais que constituem os processos históricos (KUHLMANN, 2012, p. 22).
O autor aponta para uma questão fundamental, reiterando que o cenário político e social ao longo da história são o pano de fundo para a construção social e histórica das concepções de infância e das próprias práticas pedagógicas.
Sarmento (2001) também salienta que a infância tal como é entendida hoje em dia acaba por tornar-se uma categoria distinta e universal, compreensão esta que desconsidera suas identidades e especificidades produzidas em cada espaço e tempo, influenciados pela própria globalização e suas relações políticas e a econômicas. Dito de outro modo, a globalização estaria propiciando uma espécie de generalização também do modo como criança e infância são abordadas enquanto conceitos.
Isto posto, cabe a pergunta retórica: qual a relevância desta retomada a propósito do momento atual marcado pela pandemia do novo coronavírus?
A História, como se sabe, proporciona reflexões importantes em relação ao processo de conquistas e desafios sobre a construção da infância, lembrando que atividades específicas das crianças passaram a ser reconhecidas como fundamentais para o desenvolvimento infantil, tais como o brincar, o ouvir histórias, o fomento da imaginação, da capacidade de fabular, a participação em atividades lúdicas e de construção e a relação coletiva nos espaços – discussões que se fortaleceram no Brasil, no início dos anos 1980, por meio de pesquisas em diversas áreas do conhecimento como a psicologia, a educação, a filosofia, a antropologia, a neurociência e a sociologia.
No momento atual, o que é possível observar, por meio de relatos e da situação social generalizada pelo contexto pandêmico, é uma grande preocupação com as atividades escolares e seus cumprimentos diante das normativas estabelecidas. Entretanto, é possível implantar tais modificações cotidianas tão drásticas sem se levar em conta o cuidado e a atenção fundamental que de as crianças carecem num momento de crise tão delicado?
Referimo-nos, claro, ao cuidar de suas emoções, sentimentos e afetos em um momento conflituoso para todos, mas sobretudo para as crianças que viram, repentinamente, perdidas muitas das garantias cotidianas que lhes geravam a importante sensação de segurança. Tiveram, assim, suprimidos seus espaços de brincar, o contato físico com o outro, o movimento de aprender coletivamente e de expressar seus afetos.
Em nenhum momento, todavia, este artigo pretende tecer qualquer crítica ao uso de tecnologias para que as crianças possam realizar suas atividades escolares, dada a evidência do quão imperioso é este processo de adaptação e não interrupção total do processo pedagógico. Não obstante isso, a preocupação refere-se ao modus pelo qual o uso dessas ferramentas se dará. Será que as crianças pertencentes especificamente à educação infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental possuem desenvolvidas as capacidades plenas de concentração ante a necessidade de estarem de três a quatro horas diárias sentadas, “sozinhas” diante de um computador, ao invés do contato interpessoal estimulante da sala de aula? Como responder tais questões e driblar eventuais obstáculos que neste contexto se coloquem?
Considere-se, também, que tais crianças estão em momento de apropriação dessas funções psicológicas superiores[3]. Como está sendo para elas terem de realizar atividades (ou tarefas) que muitas vezes perdem o sentido fora de seus contextos e tempos? Então, o que significa “atividade” para a escola? Coloca-se aqui a importância da distinção entre a quantidade das lições solicitadas e a especificidade da tipologia do que é pedido, isto é, a pertinência que a lição possua em relação à adequação desta com o novo meio em que o aprendizado dar-se-á. São novos questionamentos que o advento da crise vem impondo, urgindo para que tais reflexões se teçam no calor do momento.
Nas definições de Leontiev:
Chamamos atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho de transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento (LEONTIEV, 1988, p. 122).
Segundo o autor, atividade é aquilo que a criança realiza em um determinado tempo e espaço e que realiza mudanças significativas em seu desenvolvimento, ou seja, a atividade precisa ter sentido e significado para a criança. Autores do ensino à distância também destacam questões fundamentais para refletirmos sobre a apropriação do conhecimento pelo ser humano em seu processo de ensino-aprendizagem. Em destaque, a pesquisadora e professora da UEG, Mirza Seabra Toschi, salienta que é necessário dominar algumas questões sobre os alunos em relação ao ensino à distância:
Estão motivados à auto-aprendizagem? Possuem habilidades de estudo autônomo? A educação à distância é adequada a qualquer geração de alunos? Os jovens conseguem conviver com a distância de grupos de estudo presenciais e possuem disciplina para o estudo individualizado? Estão aptos a gerir seu próprio processo de aprendizagem? (TOSCHI, 2008, p. 36).
As crianças pequenas estão preparadas para responder tais perguntas? As famílias estão preparadas para respondê-las por seus filhos pequenos, em busca de melhores escolhas? As crianças da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental estão motivadas à autoaprendizagem considerando que suas funções superiores, levando em conta a teoria de Vygotsky, estão em processo de formação? E será que as crianças estão em “atividade” na perspectiva de elevar o nível de desenvolvimento psíquico diante de tantas mudanças repentinas de rotina, espaços e tempos?
Todas essas preocupações têm afligido aos educadores e, diante de tantos estudos e pesquisas ao longo do tempo, evidencia-se cada vez mais a necessidade de cuidarmos de nossas crianças, de suas dúvidas, sentimentos e afetos. É necessário construir com elas e não para elas, um caminho a seguir.
Para isso, ouvi-las é fundamental, e é nessa perspectiva que o presente trabalho foi pensado; ouvi-las para tentar interpretá-las em suas angústias, dúvidas e aflições para que possamos ajudá-las nesse momento árduo que todos estamos vivenciando.
Assim, a infância, a criança e suas especificidades necessitam ser respeitadas, pois “também devem ser consideradas as relações que essa criança estabelece, bem como suas expectativas frente ao mundo que se descortina” (COUTO & BARROS, 2019, p. 224). E é a partir da voz das crianças em tempos de isolamento social que tentaremos descobrir como elas estão “descortinando” o mundo nesse momento (Leia o artigo completo em PDF).
Recebido em: 30/06/2020
Aceito em: 30/07/2020
[1] Mestre em Educação. Docente do Centro Universitário das Faculdades Integradas de Ourinhos – UNIFIO-SP. E-mail: hjorosky@hotmail.com.
[2] Doutora em Educação. Docente do Centro Universitário das Faculdades Integradas de Ourinhos – UNIFIO-SP e professora substituta do Instituto Federal – Campus de Presidente Epitácio. E-mail: flaviacomurbach@gmail.com.
[3] Ver: VYGOTSKY, L. S. El problema del desarroollo de las funciones psíquicas superiores. In: Obras Escogidas. Madrid: Visor, 2000a. v. III: 11-46.
Covid-19 na voz das crianças: impactos e desafios
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar reflexões sobre o momento atual vivido em relação à pandemia do vírus, Covid-19, procurando observar pontualmente a situação das crianças nesse processo e perscrutar a escuta de suas vozes como principal fonte de análise. Os dados analisados foram colhidos em pesquisa realizada por alunos do 7º termo do curso de Pedagogia da Unifio – Ourinhos por meio de entrevistas organizadas e gravadas com crianças de 7 a 11 anos em meio à pandemia. Para elucidar essa questão, propusemos um breve resgate sobre o desenvolvimento infantil e os caminhos percorridos em torno das especificidades da criança para, na sequência, empreendermos a discussão acerca destas “vozes” em período de isolamento social. Do mesmo modo, foi levada em conta a relevância da sensibilidade, da escuta e do reconhecimento das crianças e suas necessidades específicas nesta nova conjuntura.
PALAVRAS-CHAVE: Infância. Pandemia. Escuta.
Covid-19 in children’s voice: impacts and challengs
ABSTRACT: This paper aims to promote a reflection on Covid-19 pandemic at the current moment, and children’s situation in this process, being the listening to their voices the main source of analysis. The analised data are those from a survey made by senior Education students from Unifio – Ourinhos, through organised and recorded interviews with children ages 7 to 11, in the midst of a pandemic. In order to enlighten this matter, it was brought at first a brief retrieval about the history of childhood and the paths taken regarding their particularities and afterward, a discussion about children’s voice in a time of social isolation, as well as the importance of the sensitivity, listening, and awareness of children and their particularities in this process.
KEYWORDS: Childhood. Pandemic. Listening.
JOROSKY, Narda Helena; BARROS, Flavia Cristina Oliveira Murbach de. Covid-19 na voz das crianças: impactos e desafios. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7, n. 18, Set. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/covid-19-na-voz-das-criancas-impactos-e-desafiosnarda-helena-jorosky-e-flavia-cristina-oliveira-murbach-de-barros