Ciborgues e simbiontes: viver junto na nova ordem mundial | Donna J. Haraway
Donna J. Haraway [1]
Tradução: Fabiane M. Borges, Marilia Pisani e Milena B. Durante [2]
Gaia, a Terra azul, esverdeada, inteira, viva, autossustentável, adaptável e autopoiética, – e os Exterminadores – guerreiros de metal gélido, de formas variáveis e ciberneticamente aprimorados lutando nas paisagens terrenas descampadas e nos vácuos extraterrestres de um futuro terrível – à primeira vista, parecem pertencer a universos incompatíveis. Tais seres aparentam habitar regiões incomensuráveis de espaço-tempo e exigir diferentes cronotopos literários e históricos para serem descritos e narrados. Essas entidades não parecem compartilhar a mesma história evolutiva. Da mesma maneira, o primeiro ser do mundo chamado de “ciborgue” – um rato branco de laboratório no Hospital Estadual de Rockland em Nova Iorque, no fim dos anos 1950, com uma pequenina bomba osmótica implantada em seu corpo, que injeta substâncias químicas em quantidades controladas para alterar seus parâmetros fisiológicos – não parece ter parentesco próximo ao micro-organismo de ocorrência natural chamado Mixotricha paradoxa – um protozoário que habita o intestino grosso de um cupim do sul da Austrália. O rato implantado e o guerreiro de carne-de-metal parecem ser ciborgues paradigmáticos, os garotos-propaganda pós- modernos perfeitos para campanhas publicitárias da Nova Ordem Mundial. Certamente, a Terra inteira [whole earth] e seus descendentes naturais possuem uma outra ontologia. Mas todas essas quatro entidades – a Terra inteira, envolta em nuvens, cujo nome advém da deusa grega que (incestuosamente) deu à luz os Titãs; os guerreiros mecanicamente aprimorados e seu futuro cinemático; o rato ciborgue do hospital psiquiátrico; e o micro-organismo com seu intrigante nome em Latim – são todos membros do mesmo clã pós-Segunda Guerra Mundial. Esse clã também é a família dos humanos em uma Nova Ordem Mundial globalizada. Essa ordem surgiu das reações de fusão entre a Guerra Fria e a corrida espacial, e dos turbulentos fluxos planetários de capital na segunda metade do Segundo Milênio Cristão. As práticas que unem a família global em uma matriz generativa não são meros arroubos metafóricos da imaginação; essas práticas são, ao mesmo tempo, agressivamente materiais e irredutivelmente imaginárias. São processos da tecnociência que destroem e constroem o mundo.
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Recebido em: 20/03/2021
Aceito em: 15/04/2021
[NT1] O texto “Ciborgues e simbiontes” é o prefácio, escrito por Donna Haraway, do livro The Cyborg Handbook, (ou o Manual Ciborgue, numa tradução livre), editado por Chris Hables Gray com assistência de Heide J. Figueroa-Sarriera e Steven Mentor, e publicado em 1995 pela Editora Routlege, ainda sem tradução em português. Agradecemos a Donna Haraway, a Tim Sparker (da editora Routledge) e a Chris Gray (editora da coletânea Cyborg Handbook) que permitiram, às tradutoras, a publicação em português do artigo cujo original é Cyborgs and symbionts: living together in the new world order. Os grifos e as notas são da autora. As notas das tradutoras estão indicadas como NT.
[1] Donna Haraway leciona História da Consciência na University of California, Santa Cruz (EUA).
[2] Fabiane Morais Borges é doutora em Psicologia Clínica. Pesquisadora de Arte, Tecnologia e Subjetividade do PGETE/Inpe – Diversitas/FFLECH/USP. Marilia Mello Pisani é doutora em Filosofia, pesquisadora e professora do Centro de Ciências Naturais e Humanidades da Universidade Federal do ABC. Milena Batista Durante é tradutora, doutoranda em Artes na ECA-USP, mestre em Arquitetura e Urbanismo FAU-Ufba e graduada em Artes pela Faap.
Ciborgues e simbiontes: viver junto na nova ordem mundial [NT1]
RESUMO: O presente artigo foi publicado por Donna Haraway como prefácio à coletânea The Cyborg Handbook, em 1995. O livro é composto por diferentes textos de ciência, medicina, engenharia, literatura e ficção, artes, antropologia e política, oferecendo uma abordagem interdisciplinar sobre a cibernética e os seus derivados ciborgues. As primeiras palavras de Haraway, no início do livro, abrem a uma perspectiva que permite olhar para aquilo que haveria de mais surpreendente na complexidade híbrida, engendrada, perigosa e potente dos mundos ciborgues. Tensionando quatro figuras – a carne-de metal do soldado da ficção científica; a biosfera Gaia de Lynn Margulis e de James Lovelock; o pequeno protozoário Mixotricha paradoxa que vive no intestino do cupim australiano; e os ratos implantados do laboratório de Rockland –, Haraway articula as linhas intrincadas que fundam ontologias que por sua vez são politicamente implicadas e comprometidas. Dessas quatro figuras que nos apresenta, uma delas teria a potencialidade de ir além do sonho transhumanista do corpo ampliado, que funda as utopias tecnofixas, assim como de ir além das acusações tecnofóbicas que incidem sobre os ciborgues e todo tipo de trânsito, fusão e hibridismo entre humano/máquina, humano/natureza, técnica/natureza, como uma deturpação da natureza natural. O ciborgue que emerge com Haraway quebra as fronteiras que constituem os discursos binários e ainda as noções de origem e evolução de todos os tipos. Colônias de bactérias e protozoários, essas pequenas criaturas associadas em uma espécie de confederação obrigatória, todas oportunistas, aninham-se entre os tecidos uma das outras dividindo-se e multiplicando-se, de forma a inspirar outras metáforas para além das simplórias dicotomias entre competição e cooperação ou individual e coletivo. O ciborgue então é essa associação criativa, a meio do caminho, que pode se tornar qualquer coisa, mas que principalmente tem a função de tornar a Terra viva. É nesse sentido que ela expressa o lema que fecha o artigo “Ciborgues para a sobrevivência da Terra!”, o que para as tradutoras parece ser o germe que se desdobra, em sua escrita posterior, na geração de Camilles que se acoplam às tecnologias, à compostagem da Terra, à revivificação de seres extintos, ou seja, à ciborguesia intermolecular e interespécie como forma de fazer co-gerar mais e mais vida.
PALAVRAS-CHAVE: Ciborgues, Simbiontes, Donna Haraway.
Cyborgs and symbionts: living together in the new world order
Cyborgs and symbionts: living together in the new world order ABSTRACT: The present text was published by Donna Haraway as a preface to The Cyborg Handbook, in 1995. The book is composed of different texts on science; medical science; engineering; literature and fiction; arts; anthropology and politics. It offers an interdisciplinaryapproach about cybernetics and its cyborg derivations. Haraway’s first words, in the beginning of the book, open a perspective that allows a look into what is most surprising in the hybrid, engendered, dangerous and potent cyborg worlds. Tensioning four figures–the metal-flesh warrior from science fiction; Gaia’s biosphere by Lynn Margulis and James Lovelock; the tiny protist Mixotricha paradoxa living in the gut of the Australian termite and the implanted rats of Rockland’s lab–, Haraway articulates the intricate lines that establish ontologies, which in turn, are politically invested and committed. From the four presented figures, one of them would be potentially able to go beyond the transhumanist dream of a extended body that founds techno-fixed utopias. It would also go beyond the technophobic accusations involving cyborgs and all kinds of transit, fusion, human/machine, human/nature, technique/nature hybridism as distortions of the natural nature. The cyborg that emerges with Haraway breaches the boundaries that constitute binary discourses and the notions of origin and evolution of all kinds. Congeries of bacteria and protists, all of them opportunists, are small creatures associated in a kind of obligate confederacy, nested in one another tissues, dividing and multiplying themselves in a way that inspires different metaphors, beyond simple dichotomies between competition and cooperation, or individual and collective. The cyborg then is such creative association, in midstream, that may become anything, but whose main function is to make the Earth alive. In this sense, for the translators, the motto with which she closes the text–“Cyborgs for Earthly Survival!”–seems to be the germ that, in her subsequent writing, unfolds into the generation of Camilles who attach themselves to technologies, to Earth’s compounds, to the enlivenment of extinct beings, that is, to the intermolecular and interspecies ciborguesia seen as a confederacy and a possibility of co-generating life, more and more.
KEYWORDS: Cyborgs, Symbionts, Donna Haraway.
HARAWAY, Donna J. Ciborgues e simbiontes: viver junto na nova ordem mundial. ClimaCom – Coexistências e cocriações [Online], Campinas, ano 8, n. 20, abril.2021. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/ciborgues-e-simbiontes/