Canto aos rios: um relato-manifesto de cura das águas | Clara Jaxuka Mewaki Morgenroth
Clara Jaxuka Mewaki Morgenroth[1]
Só quem se interessa na História das águas é que vê.
Sente a magia das águas, entendeu?
O Xingu é isso, as águas.
(Raimunda Gomes da Silva[3])
Palavras introdutórias
Escolho as palavras belas, AYVU PORÃ [4], como ação mágica de manipulação das matérias, para reverenciar e celebrar às entidades protetoras das águas.
Como direção de leitura, esse manifesto, para sua melhor eficácia, deve ser falado, NHE’Ẽ Y, o som do sopro da palavra com água. As palavras em caixa alta e itálico fazem parte da língua MBYA NHE’Ẽ (som do sopro da fala GUARANI MBYA) que pertence à família linguística Tupi-Guarani. A tradução, habitando a incerteza do equívoco[5], está entre parênteses.
As águas têm memória, que precisam da palavra, das matérias, dos minerais, dos vegetais e do corpo para se perpetuar. Ela fala, sussurra, canta cantos de histórias de antes do tempo do asfalto. Nas margens ocultas, nas veias subterradas com concreto, pulsa a memória líquida do que somos, ou do que ainda podemos ser. A cura das águas não é só uma questão de restauração geofísica, mas um retorno aos acordes ancestrais entre gente e rio, entre o cosmos, YVYRUPA (corpo, leito ou plataforma terrestre) e as YY (águas).
(Leia o ensaio completo em PDF)
Recebido em: 15/05/2025
Aceito em: 15/05/2025
[1] Clara Jaxuka Mewaki Morgenroth é artivista e guardiã da floresta com formação cultural com o Povo Guarani Mbya, Yudja e Yorùbá. Tem formação técnica em arquitetura, urbanismo e diversas áreas das artes, voltada para rios, nas cidades e na floresta. Atua na educação, agroecologia, arquitetura, desenho, artes gráficas e visuais, teatro, dança, performance, vídeo projeção e como documentarista na cidade de São Paulo, Bahia, em NHE’ËRŸ (Mata Atlântica) e Amazônia.
[2] NHE’ËRŸ: aonde os espíritos se banham. Carlos Papa. Ciclo Selvagem de Estudos sobre a vida, Ciclo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uGhezj9TOog
[3] Raimunda Gomes da Silva, nasceu ribeirinha, em Pedreiras, Maranhão, às margens do Rio Parnaíba, em 1959. E seguiu ribeirinha. Transita entre a cidade de Altamira e a Terra Prometida no Território Ribeirinho, Rio Xingu, Pará. É autora da “Cartilha de Mezinhagem”. Para Raimunda, mezinhagem é a combinação de seus conhecimentos sobre plantas medicinais e ervas da floresta e o poder da imaginação como ferramenta de cura. Nas palavras dela, “mezinhagem é quando você imagina que algo funciona e você faz”. No tempo dos cozimentos reflete e filosofa sobre o rio, o respeito, a lua, a justiça, a liberdade, o espírito das águas. Sua luta na batalha de Belo Monte inspirou a reportagem “Vítimas de uma guerra amazônica”, escrita por Eliane Brum, que narra a guerra enfrentada por Raimunda e seu companheiro, João Pereira da Silva, após serem expulsos da ilha que moravam no Xingu devido à construção da hidrelétrica de Belo Monte, e também terem sua casa da “rua” destruída pelos projetos de gentrificação urbana em Altamira. Sua imagem e suas palavras conduzem o espetáculo “Altamira 2042”, dirigido por Gabriela Carneiro da Cunha. Dona Raimunda continua se dedicando à segurar a floresta e fortalecer os saberes e praticas tradicionais.
[4] AYVU PORÃ ( belas palavras ) é um dos conceitos fundamentais na cosmologia do Povo Guarani Mbya. “Cabe destacar que a palavra divina revela a primazia do universo cosmológico sobre o social, do qual é princípio e destino final. Por isso, escutar e entender as palavras divinas são os meios de realização do ser, de construção da história. Como ensina Melià (1989, p. 306), para os Guarani, “a palavra é tudo e tudo é palavra”. Essa afirmação confirma-se nas expressões nhe’e e ayvu, que indicam a palavra, a fala e a língua como porções divinas da alma: alma-palavra e palavra-alma.” (Campo, Godoy e Santo, 2017)
Canto aos rios: um relato-manifesto de cura das águas
RESUMO: O relato-manifesto Canto aos Rios partilha a investigação de Clara Jaxuka Mewaki Morgenorth com os rios, nas cidades e na floresta, desdobrando-se através de fendas e travessias entre NHE’ËRŸ[2] (Mata Atlântica) e Amazônia, compartilhando gestos, que têm como intenção a regeneração dos rios urbanos e que evocam o fortalecimento espiritual de todes os corpos d’água. Desde 2011, através de estudos e pesquisas de campo independente, os gestos confluíram em criações de espetáculos de teatro e dança, obras audiovisuais, instaurações sonoras, desenhos-feitiços, ações performáticas, cantos, adimú (oferendas espirituais) e rituais, tecendo tempos, gentes e rios com objetivo de curar as águas. A espiritualidade, os territórios e os seres femininos, com suas práticas ancestrais, guiam os gestos com intenção direta de manter as águas vivas, saudáveis e livres, nas florestas, restingas, caatingas, tundras, campos e cerrados. Tudo ainda segue em curso, fluindo e confluindo em constante devir XEYVARA RETÉ (o meu corpo verdadeiro água em tempo infinito).
PALAVRAS-CHAVE: Águas. Ancestralidade. Cura. Rios. Sabedorias Tradicionais.
Canto a los ríos: un relato-manifiesto de cura de las aguas
RESUMEN: El relato-manifiesto Canto a los Ríos comparte la investigación de Clara Jaxuka Mewaki Morgenroth con los ríos, en las ciudades y en la selva, tejiéndose a través de fracturas y travesías entre NHE’ËRŸ[2] (Mata Atlántica) y la Amazonía, compartiendo gestos que tienen como intención la regeneración de los ríos urbanos y que evocan el fortalecimiento espiritual de todos los cuerpos de agua. Desde 2011, a través de estudios e investigaciones de campo independientes, los gestos han confluido en la creación de espectáculos de teatro y danza, obras audiovisuales, instalaciones sonoras, dibujos-encantamientos, acciones performáticas, cantos, adimú (ofrendas espirituales) y rituales, tejiendo tiempos, gentes y ríos con el objetivo de curar las aguas. La espiritualidad, los territorios y los seres femeninos, con sus prácticas ancestrales, guían los gestos con la intención directa de mantener las aguas vivas, saludables y libres, en los bosques, manglares, caatingas, tundras, campos y sabanas. Todo sigue en curso, fluyendo y confluyendo en un devenir constante: XEYVARA RETÉ (mi cuerpo verdadero, agua en tiempo infinito).
PALABRAS CLAVE: Aguas. Ancestralidad. Cura. Ríos. Saberes Tradicionales.
MORGENROTH, Clara Jaxuka Mewaki. Canto aos rios: um relato-manifesto de cura das águas [online], Campinas, ano 12, n. 28., jun. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/canto-aos-rios/