Botannica Tirannica: da genealogia do preconceito às possibilidades de um ecossistema errante〡Giselle Beiguelman
Giselle Beiguelman [1]
O jardim sem espécies
O mais famoso jardim do mundo, o Jardim do Éden, talvez nunca tenha existido. E se existiu, certamente não foi na forma da história traumática que marca a cosmogonia judaico-cristã com a expulsão do Paraíso. Fato ou ficção, o que importa lembrar não é tanto a famosa narrativa do fruto proibido da Árvore do Conhecimento que encantou Eva (viva ela!), mas que o seu centro era ocupado por uma curiosa árvore – a Árvore da Vida – cuja espécie não é definida na Bíblia.
Cientistas, filólogos e religiosos debatem em textos diversos se era ela uma Ghaf (Prosopis cineraria) ou uma Tamareira (Phoenix dactylifera) e contabilizam quantas espécies são citadas no Velho e no Novo Testamento (Dafni; Böck, 2019). Uma empreitada bastante difícil, haja vista que nos saberes tradicionais a planta não é uma coisa em si e seus nomes dizem respeito aos usos, aos grupos, aos momentos e aos contextos. Prevalece nas escrituras sagradas, pelo menos no que modelos de inteligibilidade provisórios” (Lévi-Strauss, 1990, p. 52). Bastante distintas, as duas espécies que a ciência identificou como Ghaf e Tamareira, têm, porém, um ponto comum. Ambas sobrevivem nas situações mais adversas, como a falta de água e os terrenos arenosos. A Ghaf tem uma impressionante capacidade de manter-se frondosa e verde, a despeito do inóspito clima árido ao qual pertence. Seu exemplar mais conhecido tem mais de 400 anos. Com cerca de 9 metros de altura, a árvore está plantada no deserto de Bahrein, onde se especula que ficava o mítico Éden e que recebe dezenas de milhares de turistas passam todos os anos.
Bastante distintas, as duas espécies que a ciência identificou como Ghaf e Tamareira, têm, porém, um ponto comum. Ambas sobrevivem nas situações mais adversas, como a falta de água e os terrenos arenosos.
A Ghaf tem uma impressionante capacidade de manter-se frondosa e verde, a despeito do inóspito clima árido ao qual pertence. Seu exemplar mais conhecido tem mais de 400 anos. Com cerca de 9 metros de altura, a árvore está plantada no deserto de Bahrein, onde se especula que ficava o mítico Éden e que recebe dezenas de milhares de turistas passam todos os anos. (Leia o artigo completo em PDF).
Recebido em: 15/09/2022
Aceito em: 15/10/2022
[1] Giselle Beiguelman é artista, curadora e Professora Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Email: gbeiguelman@usp.br
Botannica Tirannica: da genealogia do preconceito às possibilidades de um ecossistema errante
RESUMO: Este artigo apresenta a pesquisa feita no projeto artístico Botannica Tirannica. O projeto investiga a relação entre a ciência hegemônica, a botânica clássica e o imaginário colonialista elaborado nas formas de dominação da natureza e suas projeções nas tecnologias contemporâneas, em especial a Inteligência Artificial (IA). Para tanto, faz uma genealogia do preconceito e das formas pelas quais se organiza como linguagem verbal e estética. Com foco na nomenclatura (popular e científica) das plantas, parte de um vasto levantamento de plantas com nomes racistas, antissemitas e machistas, em latim e em várias línguas vernáculas, para problematizar suas relações com a eugenia. São exemplares dessas construções nomes que remetem à escravização africana, como Crassula Hottentot e limão kaffir; à violência colonial contra os indígenas, como chá-de-bugre; o popular judeu errante, um dos termos referenciais da propaganda nazista; e libelos misóginos, como costela-de-adão, e flores, geralmente brancas, denominadas virginiana, virginicum e virginica. Ao longo do texto, evidencia-se como a naturalização desses termos consolida desde noções cientificamente infundadas, como “ervas-daninhas”, a métodos ancorados na padronização, centrais para a Inteligência Artificial. Em contraposição a uma possível eugenia maquínica, o artigo apresenta experimentos feitos em Botannica Tirannica, que se apropriam desse repertório para buscar um ecossistema errante.
PALAVRAS-CHAVE: Colonialismo. Nomenclatura botânica. Eugenia. Daninhas. Inteligência Artificial
Botannica Tirannica: from a genealogy of prejudice to the possibilities of a wandering ecosystem
ABSTRACT: This article presents the research carried out in the artistic project Botannica Tirannica. The project investigates the relationship between hegemonic science, classical botany, and the colonialist imaginary elaborated in the forms of domination of nature and its projections in contemporary technologies, in particular Artificial Intelligence (AI). To do so, it makes a genealogy of prejudice and how it organizes as a verbal and aesthetic language. Focusing on the (popular and scientific) nomenclature of plants, it starts from an extensive survey of plants with racist, anti-Semitic, and sexist names in Latin and several vernacular languages to problematize their relations with eugenic coma. Examples of these constructions are names that refer to African enslavement, such as Crassula Hottentot and kaffir lime; colonial violence against indigenous peoples, such as Indian hemp; the popular wandering Jew, one of the terms of reference in Nazi propaganda; and misogynistic, such as Hooker lips and flowers, usually white, called virginiana, virginicum, and virginica. Throughout the text, it is evident how the naturalization of these terms consolidates from scientifically unfounded notions, such as “weeds,” to methods anchored in standardization, central to Artificial Intelligence. In contrast to possible machinic eugenics, it presents experiments carried out in Botannica Tirannica, which appropriate this repertoire to seek a wandering ecosystem.
KEYWORDS: Colonialism. Botanical nomenclature. Eugenics. Weeds. Artificial Intelligence.
BEIGUELMAN Giselle, botannica tirannica: da geneologia do preconceito às possibilidades de um ecossistema errante.ClimaCom – Políticas vegetais [Online], Campinas, ano 9, n. 23, dez. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/ecologiais-indonmaveis/