Água, mel e caça não podem acabar: a cosmologia do povo Indígena Awá-Guajá e a ameaça do céu cair sobre nossas cabeças | Maria das Glória Feitosa Freitas ou Yeye Oribato Obàtálá Ilé Ifè

Adentrando a cosmologia dos Awá-Guajá, através de várias leituras, é possível perceber como, para este povo, a destruição da floresta é a destruição da vida da Terra e do céu, é uma ameaça real de fome terrestre e fome celestial.

Maria das Glória Feitosa Freitas ou Yeye Oribato Obàtálá Ilé Ifè [1]

 

Falarei aqui de forma muito simples e sem nenhum fundamento pessoal de pesquisa sobre Povo Indígena Awá-Guajá. Lendo alguns autores descobri um pouco sobre a cosmologia do Povo Indígena Awá-Guajá (residente no norte do Maranhão, na Amazônia legal). Tal cosmologia diz que é na floresta que é possível adquirir caça, mel e água. Inclusive para os antepassados mortos que vivem no céu. O fim da floresta é trágico, é o fim da vida aqui na terra e no céu. Há um mundo espiritual onde todos os Awá vão viver depois da morte. Os viventes do céu frequentam a floresta aqui na Terra para pegar água, mel e caça necessários para boas festas no céu. Os Awá-Guajá consideram que três coisas não devem acabar na floresta: caça, mel e água. A floresta é o elo de ligação entre esses dois mundos. Os Awá-Guajá são favoráveis à preservação da floresta e lutam contra o desmatamento por uma convicção relacionada à cosmologia Awá-Guajá. Seres viventes no céu vão morrer de fome, de sede e o céu vai cair sobre nossas cabeças aqui na terra. É possível dialogar/aprender com esta cosmologia e pensar na nossa relação atual com a água e sem a água? Os Guajá se autodenominam Awá, termo que significa “homem”, “pessoa” ou “gente”. As origens deste povo são obscuras, porém acredita-se que seja originário do baixo rio Tocantins no estado do Pará. Formava, provavelmente junto Ka’apor, Tembé e Guajajara (Tenetehara), um conjunto maior, da família linguística Tupi-Guarani naquela região (Gomes 1988, 1989 & 1991; Balée 1994).

Na medida que a expansão colonial foi exercendo uma pressão sobre estes grupos indígenas, houve uma dispersão dos mesmos. Acredita-se que a partir do conflito da Cabanagem, em torno de 1835-1840, este conjunto iniciou uma migração no sentido leste, rumo ao Maranhão. É provável que por volta de 1950 todos os Guajá já estivessem vivendo neste estado, no lado leste do rio Gurupi (Gomes 1989 & 1991).

Segundo Mirian Leitão e Sebastião Salgado, para os Awá, a tragédia do desmatamento atinge a terra e o céu. A perda da floresta é mais que o fim do mundo. É o fim do que está por vir após a morte. O desmatamento ameaça a vida que eles têm e a que um dia terão quando forem “Karauaras”, os seres nos quais os ex-vivos se transformam. Na sua explicação do mundo, os mortos vão para um outro patamar, onde também é a floresta. Lá, eles se transformam em seres duplos: são humanos, mas também parte da floresta e vivem dela. O desmatamento não daria só uma fome aqui, para os vivos, mas uma fome celestial.

Essa explicação quem dá é Uirá Garcia, na sua tese de Doutoramento na USP, defendida em 2010 Karawara – A caça e o mundo dos Awá-guaja: eles fazem um ritual de tocaia na seca (na época que as chuvas desaparecem) para encontrar os que já morreram no que eles chamam de céu. O mundo tem vários patamares. E eles sobem nesse outro patamar, onde os mortos vivem como um novo humano celeste. Esses seres, os Karauaras, são duplos: meio humanos, mas seres da floresta. Há o Karauara Bacaba, por exemplo, uma árvore. Ou o que é Mocoró, uma pomba. Esses seres são caçadores magníficos, caçam melhor que os humanos e são especializados. Cada um caça um tipo de animal. Se um dia a floresta acabar, isso vai significar a ameaça de uma fome na Terra e no céu. Tem um devir, depois da morte — da mesma forma que para nós existe —, mas que para eles pode acabar, se não houver floresta; o universo deles desmorona com o desmatamento. É como se você fosse morrer e, além disso, o mundo para o qual você acredita que vai não fosse existir mais — explica Uirá.

(Leia a coluna assinada completa em PDF)

 

[1] Pesquisadora Colaboradora no Labjor-Unicamp, Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), membro da Casa dos Atoris de Obàtálá e Yemòó. Email: gloriafreitas@alumni.usp.br