ASFALTO em intervenções urbanas: imagens em performance e o fabular de um povo por vir


Juliana Soares Bom-Tempo[1]

ASFALTO: do latim ASPHALTUM ou do grego ASPHALTOS, desmembrando-se em A-SPHALLEIN no sentido de “não fazer cair”, “não falir”. Um tipo de aderência que funciona como tessitura segmentarizando e impermeabilizando as transições, construindo bordas opacas. Solo para andar: o tecido da cidade. Um pavimento se constrói enquanto espaço de toques e trocas.  O grupo de pesquisa Asfalto – texturas entre artes e filosofias se constituiu em fevereiro de 2016, vinculado ao Curso de Dança e ao Curso de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, junto a vontade de realizar pesquisas prático-teóricas com a urbanidade, tendo na ideia de “asfalto” as estriagens que direcionam os trânsitos, os modos de perceber, de estar e de viver uma cidade. Assim, somos movidos pelas questões: como se dão as tramas sociais, políticas, linguísticas, arquitetônicas e corporais que organizam os fluxos do espaço urbano? E diante disto, como intervir e ensaiar procedimentos para propor fissurações nos “asfaltos” e nas linhas que endurecem a cidade? Para tanto, nos interessa as concepções filosóficas de Gilles Deleuze, de Félix Guattari, Michel Foucault e Gilbert Simondon, bem como as estratégias ligadas às Artes do Corpo e Artes Visuais.

Lançarmo-nos ao encontro com o que nos provoca as questões supracitada e nos valemos da filosofia no intento de construir ferramentas conceituais e de “transduzir”, utilizando um termo de Gilbert Simondon, conceitos em imagens performáticas, as quais intervém nos espaços da cidade. Diante das proposições performáticas formuladas e executadas pelo Grupo Asfalto entre os anos de 2016 e 2017, vimo-nos diante de um primeiro impasse: do que se trata uma intervenção artística que opere na cidade? Vale ressaltar que, da maneira como tomamos uma intervenção, esta se configura de modo diferenciado em relação a uma “apresentação” artística, já que a última , além de ser, na maioria das vezes, realizada em espaços já legitimados nos campos das artes, tais como museus, teatros, galerias, etc., espaços já estabelecidos e destinados à fruição artística, também se dá de modo a apresentar alguma construção estética que esbarre nos planos do sensível a partir da manutenção de certo status quo da figura do artista e do lugar do espectador.

A intervenção, por sua vez, sob o prisma que adotamos, tem um caráter ruptivo, em que se está lidando a alguma dimensão do cotidiano não propriamente ligada às artes. Uma intervenção, nesse sentido, cria alguma ruptura no que está estabelecido em termos de espacialidade, de discursividade e de visibilidade. Dessa maneira, esta opera desarranjos no próprio espaço, já que este não se configura enquanto um contexto próprio para aquela ação, para aqueles gestos, para aqueles modos de habitação; além disso, as narrativas propostas por uma intervenção não estão dadas ou formuladas a priori e podem ser construídas não estando em acordo e não correspondendo aos enunciados coletivos ali estabelecidos e reproduzidos; e há, ainda, a dimensão de visibilidade em que se produz um tipo de figuração e de paisagem que não são prontamente reconhecíveis como pertencentes àquele ambiente.

Tudo isso que não é consonante e correspondente ao que está dado para certo espaço, para aqueles discursos e para determinadas visibilidades, faz de uma intervenção artística uma criadora de problemas. O espaço-tempo que entra no jogo de forças diante de uma intervenção, passa a ter os signos e os corpos desalojados e violentados diante do non sense e do não racional de ações que intervém nos planos ordinários de uma cidade. Tomamos a pergunta de Deleuze (1992, p. 32) para afirmar o que nos interessa: “o que são as tuas máquinas desejantes? Qual é a tua maneira de delirar o campo social?”. Do modo aqui apresentado, a intervenção artística rompe com a dimensão já estabelecida para um espaço, para um discurso, para um visível. Ela cria um tipo de desorganização, de corte nos fluxos desejantes já direcionados para otimizar a performance urbana, para fazer funcionar a máquina de poder que tende à homogeneização, às capturas das heterogeneidades, às palavras de ordem e aos controles. Consideramos que as heterogêneses, as heterotopias e as heteronomias habitam o urbano num paradoxo entre àquilo que tende a uma estratificação pautada na lógica racional e capitalística; assim, nossa aposta é operar junto às forças transgressoras, convocar certo levante das sensibilidades, das percepções e dos sentidos a se mobilizarem e se desalojaram do que tende a estabilizá-los. Buscamos com intervenções performáticas no espaço urbano, pesar as máquinas que tais ações produzem, fazendo variar todo um regime de racionalidades e de previsibilidades.

Na provisoriedade de uma intervenção performática, temos como mote fazer algo funcionar, operar, maquinar em um construtivismo lógico do não racional. “Somos puramente funcionalistas: o que nos interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual é a máquina”.  Quando pensamos as máquinas em suas dimensões desejantes, criadora de devires imperceptíveis, e a performance em intervenção urbana enquanto uma maquinaria desejante que vai fazendo conexões imprevisíveis, apostamos que tal “(…) funcionalismo impera no mundo das micromultiplicidades, das micromáquinas, das máquinas desejantes, das formações moleculares” (DELEUZE, 1992, p. 33).

Criar pequenos desvios, devires mínimos, seria produzir e agenciar minúsculos movimentos aberrantes, nos articulando ao que propõe David Lapoujade, e colocando a questão quid juris? sob suspeita de modo a desalojá-la do correspondente quid facti? e operar junto aos espaços, aos discursos e aos visíveis o que teríamos de mais urgente: Quid vitae?. Isso nos coloca a questão da criação na intervenção artística junto aos signos que esta mobiliza – em Deleuze, e, para nós – enquanto processo que sempre corre o risco de implodir nele mesmo; ou seja, toda potência criativa se dá no limiar de se engatar em um esfacelamento de si e dos próprios territórios que se experimentam construir. Um risco inerente aos processos de criação e intervenção artística que se dá enquanto combate de forças e põe em jogo a urgência por se exprimir modos outros, fazendo vazar os previsíveis e problematizando os possíveis enquanto dados.

Desse ponto de vista, a questão quid juris? não implica apenas determinar o direito próprio a este ou aquele fato, mas a combater, a lutar em prol do que tais movimentos aberrantes exprimem. A expressão é como um grito – e há numerosos gritos em Deleuze. É como que um derradeiro estado da pergunta: que direito esses movimentos aberrantes reinvidicam? Em prol de que novas existências testemunham? (LAPOUJADE, 2015, p. 23 – 24).

Uma intervenção tem um caráter impróprio para o que já está estabilizado e codificado em termos de arranjo espacial, enunciado coletivo, figuração do visível; ou seja, opera na ordem do que não ter o direito de existir enquanto fato. Assim, ela problematiza os regimes de signos, de relações e de visibilidades estabelecidos em algum contexto. Levando em conta, mais especificamente, o recorte espaço-temporal que nos interessa, uma intervenção urbana pretende problematizar o que está dado e o que tem o direito de existir para uma cidade e, além disso, colocar aquilo que está estabelecido em movimento, mobilizando os regimes e os modos que configuram o urbano. Uma intervenção cria uma mobilização dos signos que estão em relação para configurar o que chamamos de cotidiano da e na cidade. É nesse lugar que pensamos a intervenção artística, já que ela intervém, cria um corte, um problema e uma ruptura naquilo que já está dado como plano de possibilidades e para aquilo que tem o direito de fato para os modos de estar e de habitar o urbano.

Os transeuntes, diante dos inusitados das intervenções performáticas que operam problematizando os modos, os gestos, os espaços, os discursos, os visíveis e os dizíveis presentes nos contextos da cidade, são convocados a estarem, a ensaiarem sentidos e a comporem problemas com o que uma intervenção faz maquinar naquele espaço-tempo, fazendo valer o direito a criar seus próprios problemas que, na nossa cultura educacional-midiática-publicitária, já estão dados e se configuram a partir dos direitos que estes têm de existir enquanto fatos, com soluções prontas, significadas e legitimadas. “Como se não continuássemos escravos enquanto não dispuséssemos dos próprios problemas, de uma participação nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gestão dos problemas” (DELEUZE, 1988, p. 228).

No entre das concepções aqui exploradas, nos localizamos em meio aos fluxos que já estão e estavam operando no urbano. Os processos que configuram, mas também os que escapam, se dão co-implicados quando das intervenções performáticas. Estamos no movimento de “inserção numa onda pré-existente” (DELEUZE, 1992, p. 151); não começamos um movimento, não nos colocamos na origem de uma ação, mas buscamos colocar algo em funcionamento para engendrar novos movimentos, outras ações, outras espacialidades, discursividades e visibilidade; buscamos “chegar entre”.

No intermezzo dos fluxos que, numa diferenciação contínua, des-reterritorializam o urbano criamos e efetivamos ações que interviram nas relações de forças presentes na cidade. Entre as intervenções urbanas realizadas pelo grupo em 2016 e 2017, gostaríamos de destacar algumas para tecermos conexões junto ao nosso modo operante de entrar nos fluxos já existentes, construir pequenos desvios e gestar movimentos aberrantes, mesmo que mínimos.

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Figura 1: Jardindigente. Evento: Sala Aberta. UFU. Jul/2017.

Fonte: fotografia de Joabe Romed.

 

Jardindigente foi o título de intervenções que se deram em três contextos: um canteiro que corta uma das principais avenidas da cidade de Uberlândia/MG (abril/2016), no espaço de convivência Jambolão da Universidade Federal de Uberlândia (julho/2017) e no espaço da Prainha na PUC de São Paulo (setembro/2017). A performance consistiu em corpos (cinco na primeira ação, treze na segunda e nove na terceira) que, durante 1 hora e 30 minutos, em horário de rush no trânsito e de grande movimento de pessoas nas duas Universidades, territorializaram um espaço a partir de uma dinâmica de jogo e dança entre homens e mulheres com vestidos coloridos e esvoaçantes e, num certo momento, param em um ponto do espaço suspendendo, lentamente, os vestidos, deixando os rostos encobertos e estando completamente nus por baixo. Nessa intervenção, os passantes; às vezes de carro, ônibus e motos, noutras passando para almoçarem no Restaurante Universitário, ou sentados em bancos conversando; olharam, ignoraram, pararam para fotografar, falaram sobre o PT, disseram que era uma pouca vergonha, deram os parabéns pela ação, postaram cenas da nudez nas redes sociais afirmando que não deveria haver investimento público em cursos de artes para se fazer isso nas Universidades, fingiram não estarem olhando com certo constrangimento, tocaram os corpos nus dos performers. O canteiro da via urbana, o gramado do Jambolão, os bancos e concretos da prainha da PUC passaram a ter uma visibilidade inusitada, uma discursividade que nem imaginamos, uma espacialidade que agenciou novos regimes corporais, gestuais e de signos diante das cabeças viradas para trás nos veículos, dos fluxos que paravam para tentar decifrar o que era aquilo, das falas e dos humores que se divertiam e se irritavam frente ao problema ali friccionado e ficcionado que fez com que o ordinário desses espaços cotidianos, dos discursos ali recorrentes e dos visíveis já percebidos fosse mobilizado e abalado gestando movimento que poderíamos chamar aberrantes, já que convocam o direito de existir e de habitar a certa problematização.

 

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Figura 2: Ata-me em teus braços coletivos. Praça central de Uberlândia/MG. Abril/2016.

Fonte: fotografia de Thiago Crepaldi.

A intervenção Ata-me em Teus Braços Coletivos foi realizada três vezes em uma praça central na cidade de Uberlândia/MG (abril/2016, agosto/2016 e agosto/2017), uma vez na XIV Semana de Artes do Corpo da PUC SP (setembro/2017); uma vez na Universidade Federal de Uberlândia ligada ao evento ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) (novembro/2017); uma vez na Praça do Rosário em Campinas/SP (novembro/2017). Tal performance constituiu-se a partir de uma estratégia que teve como procedimento a realização de laboratórios corporais de rolamento e pesquisas de encaixes, abertos a participação do público e conduzidos pelo Grupo Asfalto, para transmissão da técnica que desemboca na performance Ata-me; ou seja, oferecemos em um espaço público uma oficina-intervenção para preparar os corpos, energética e tecnicamente, compartilhando formas de encaixar dois corpos de maneira a dar mobilidade no rolamento de um sobre o outro. Após a oficina-intervenção, deslocamo-nos todos para um espaço aberto próximo, chegamos performando, territorializando o espaço com algumas caminhadas e duplas em ritmos distintos em tempos distintos, param, olham-se, abraçam-se, abaixam-se atados até o chão, deitam um sob o outro e rolam abraçados até encontrarem um obstáculo intransponível, soltam-se, levantam-se separadamente, cada um vai para um lado, voltam a andar, encontram outra pessoa e recomeçam o procedimento de atar-se. As intervenções foram acompanhadas por falas e, também, gestos: disseram que era promessa de casamento, que alguém deveria perdoar, que houve traição, que o amor é lindo, que aquilo era vergonhoso, que tinham que parar, se questionaram: “mas o que está acontecendo?”. Pararam diante de corpos acoplados rolando um sobre e sob o outro; estranhamentos, pausas, olhares acompanharam o deambular rolante tendo o chão como plataforma de encontros, não mais verticalizados, separaram os que estavam abraçados atados e impediram a ação de continuar. Agora na horizontal o rebaixamento dos órgãos, dos rostos, das superfícies que envolvem o corpo; o chão como plano de troca e toques, de suportes e de impulsos. Rolar acoplado, criar um trajeto, fazer valer os pesos e os apoios, incomodar por atar-se e acoplados sentiram o peso de uns sob os outros; um abraço mobilizador.

 

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Figura 3: Multicolors. Evento: IX Semana das Artes da UFOP. Ouro Preto/MG.

Fonte: fotografia de Carla Fernanda.

Multicolors (outubro/2016) – tal ação consistiu em um desdobramento da oficina Ata-me em Teus Braços Coletivos, ministrada pelo Grupo Asfalto junto a IX Semana das Artes da Universidade Federal de Ouro Preto, onde criamos e executamos a performance/intervenção. Esta, teve como procedimento inicial a construção de uma linha de balões multicoloridos e, após a linha criada como mais ou menos 20 balões, cada um dos oito performers presentes foi envolvido pelos balões, se deitou em uma ladeira de Ouro Preto e seguiu rolando até que todos os balões tivessem estourado. A intervenção se deu na cidade turística e haviam as fotos dos visitantes em paralelo aos corpos cheios de balões coloridos rolando pelos morros íngremes de Ouro Preto/MG; diante das composições estrangeiras, paisagens se insinuavam no colorido brincante de corpos descendo ladeira abaixo, fazendo barulhos, criando estouros. Um devir-criança que fazia rir e brincar, coloria o ocre, o úmido, os anos de escravidão virtualmente impregnado e operante naquela arquitetura.

 

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Figura 4: Marcas Profanatórias. Evento: IX Semana das Artes da UFOP. Ouro Preto/MG.

Fonte: fotografia de Carla Fernanda.

 

Marcas Profanatórias (outubro/2016) ocorreu duas vezes, em Ouro Preto/MG e em Uberlândia/MG, em que, a partir dos apoios do corpo sob superfícies a cidade, fez-se marcas com giz branco e spray de espuma. Uma pichação provisória das marcas que o corpo deixa ao colocar seu peso sob o chão. Estas ações trouxeram a tensão de estarmos profanando o espaço público, com o agravante em Ouro Preto/MG de ser uma cidade histórica e em Uberlândia/MG de estarmos “pixando” a Universidade, um prédio público. Ambas as ações operaram nos jogos de tensões entre “o que vocês estão fazendo?” e a construção de uma marca efêmera, que desaparece em pouquíssimo tempo, mas que gesta a tensão de marcar, danificar e se inscrever na arquitetura que precisa ser poupada das intemperes próprias das ações humanas. Uma inscrição que dura em certa temporalidade do precário, própria de um tempo que marca e que passa e insiste em passar. As reações, frente tal intervenção, foram de certo espanto, de tensão frente a um limite do que é permitido para inscrição das pessoas e do que é proibido diante das construções e pedras e concretos que regem espaços públicos.

 

 

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Figura 5: Espanto e Hesitação. Praça central de Uberlândia/MG. Janeiro/2017.

Fonte: fotografia de Cristiano Barbosa.

 

A ação Espanto e Hesitação (novembro/2016 e janeiro/2017) teve como disparador a concepção apresentada na sinopse: “Não há repouso, microscopicamente é sempre movimento. A transmutação de corpos em paralisia. As peles metamorfoseiam-se pelo passar dos minutos. Cabelos-cabeças rodopiam, pernas se entrelaçam, criam circuitos, desenham poeira. Paradoxos do tempo: ressecamento e paralisia, espanto e hesitação”. Consistiu-se em 9 performers cobrirem-se com argila, ficarem paralisados por cerca de 40 minutos, esperarem a argila secar para voltarem ao movimento, os movimentos, tanto de cobrirem-se de argila quanto de retirar a argila após secar, compuseram uma dança improvisada. Com a proposta que oferecemos ao espaço público, do tempo em que ficamos paralisados com as pernas entrelaçadas, cobertos por argila e deitados no chão, ninguém foi obrigado a ficar ou a parar para ver o que se passava, entretanto, tal intervenção gerou situações de os transeuntes chegarem e pararem diante da performance que teve a duração de 1 hora e 30 minutos, sendo que algumas pessoas ficam ali observando e tecendo comentários a intervenção inteira. Algumas dessas pessoas, na duração da intervenção, começam a produzir e a ensaiar falas como, por exemplo, “isso que vocês estão fazendo não faz sentido algum”; “o que vocês estão fazendo? Vocês precisam explicar”; “vamos jogar água neles para eles pararem com isso”; “vou ficar aqui até que alguém me explique o que é isso!”. Estávamos paralisados, sem nos comunicarmos e nem mesmo abrir os olhos. Os transeuntes pareciam narrar possíveis estórias e situações diante do que se apresentava. Estas falas produziram reverberações e tensionamentos nos nossos corpos, criando encontros e ressonâncias com as narrativas e as ameaças ensaiadas pelos transeuntes, que passaram a compor aquela cena.

 

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Figura 6: Amarrações Coletivas. Evento: Festival de Inverno da UFUlândia. Uberlândia/MG. Jul/2017.

Fonte: fotografia de Carla Fernanda.

 

“Existem 20 mil espécies de aranhas, e cada uma delas tem sua maneira de tecer, da qual a forma da teia depende. Tensionar as relações entre os habitantes e os espaços, criar variações de lugares de trânsito para engendrar outras sensibilidades”. Esta é a sinopse da performance/instalação “Amarrações Coletivas” que foi contemplada pelo edital do Festival de Inverno da UFUlândia, ocorreu em julho e agosto de 2017, nos três campus da UFU de Uberlândia/MG. As ações ocorreram durante três semanas diariamente e teve por objetivo questionar as formas dadas do espaço cotidiano a partir da ação de conectar pontos distintos com barbantes, gerando outro modo de habitação do espaço público, fazendo deslocar as linhas estruturantes de tais arquiteturas, compondo em linhas uma habitação nômade e movente gerada pelo agir. Um trabalho desenvolvido por “arquitetos erráticos”, termo inspirado nas proposições de Peter Pál Pelbart (2016), junto ao trabalho de Fernand Deligny, presentes no texto Linhas Erráticas. A ação proposta, seguiu as concepções da Performance Arte ligadas ao site specific, no sentido de considerar a arquitetura já presente em cada espaço para a realização da intervenção “Amarrações Coletivas”, agindo nessa arquitetura, junto e a partir dela.

Ainda gostaríamos de expor um tipo de ocupação que também provocou intervenções no ordinário da rua. Piquenique no canteiro tratou-se de encontros realizados em espaços públicos para viabilizar um grupo de estudos. Realizado uma vez por semana (das 17:00 às 19:00 horas), desde fevereiro de 2016 até julho de 2017, o grupo se propôs a estudar filosofia contemporânea com temáticas ligadas a arte, ao corpo e a cidade, principalmente com base nos conceitos de Deleuze e Guattari, e aconteceu em canteiros e praças da cidade de Uberlândia/MG. Por ser uma ação que se repetiu muitas vezes, em algumas delas, pessoas se sentaram conosco tentando entender nosso movimento de estudos, alguns se indignaram dizendo que estávamos ocupando o espaço público, alguns paravam de carro e moto na avenida e tentavam conversar um pouco sobre o que era aquilo, sobre política ou apenas dizer “isso mesmo, temos que ocupar as ruas”.

As intervenções operadas pelo Grupo Asfalto, na maioria das vezes, geraram estranhamentos e desconfortos diante de ações que não têm mensagens a transmitir e que não querem comunicar algo. O que está em jogo e em questão é a criação do que chamamos imagens em performance; ou seja, a “transdução” de outras imagens que não estão configuradas nos regimes de relações que organizam os ordinários da cidade; outras imagens que se individuam e modificam o meio  abrindo os sentidos e mobilizando os signos para que os transeuntes, as arquiteturas, as palavras de ordem, os modos, os gestos, os corpos que operam junto à cidade sejam convocados a gestar novos regimes nos entremeios das construções espaciais, dos dizíveis e dos visíveis que, com as rupturas criadas por intervenções, são violentados e entram em movimentos de experimentação. Um tipo de convocatória desta ordem incomoda, principalmente em um mundo em que os signos, os sentidos e as imagens já estão prontas e dadas; as palavras de ordem, as mídias, as publicidades fazem um trabalho intenso de já fixar os dizíveis e os visíveis do que está dito e do que é visto; afirmam, assim, o que é para ser entendido de um enunciado e o que deve ser captado de certa imagem, de certo signo, de certa ação. As forças operam para responder as questões quid juris? e quid facti? e para efetuar uma inquisição diante daquilo que não tem direito de existir enquanto fato para os ditames que regem o cotidiano. A performance em intervenção urbana está na contramão disto, já que justamente vai criar um tipo de procedimento e de imagem em que os signos não estão fixados em significações e significantes pré-concebidos e em que o espectador é convocado a construir sentidos. O que nos interessa é servir de disparadores aos delitos de fabular, de delirar, de inventar discursividades e visibilidades que não têm o direito de existir. Flagrar alguém cometendo o delito de inventar um povo que não tem o direito de fato.

O que é preciso é pegar alguém que esteja ‘fabulando’, em ‘flagrante delito de fabular’. Então se forma, a dois ou em vários, um discurso de minoria. Reencontramos aqui a função da fabulação bergsoniana… Pegar as pessoas em flagrante delito de fabular é captar o movimento de constituição de um povo. Os povos não preexistem. De certa maneira, o povo é o que falta, como dizia Paul Klee (DELEUZE, 1992, p. 157).

Fazer falar um povo que não tem o direito de existir, fazer funcionar um tipo de produção desejante e delirante que abre o urbano e o ordinário aos encontros com o que não existiria se fossem outras condições. Um tipo de encontro que opera entre singularidades ao agenciar de forma precisa cada ponto de conexão, de fabulação, de discurso indireto livre, de outridade que passa a existir desvanecendo as questões quid juris? e quid facti? para fazer proliferar uma junção da arte com o existente que convoca forças para o problema que mais interessa aos modos de habitar o urbano e o cotidiano: quid vitae?

 

Bibliografia

DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

______. Conversações, 1972 – 1990. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.

______. L’Image-Mouvement. Cinéma 1. Paris: Les Éditions de Munuit, 1983.

______. L’Image-Temps. Cinéma 2. Paris: Les Éditions de Munuit, 1985.

______. Deux Régimes de Fous: textes et entretiens 1975 – 1995. Édition préparée par David Lapoujade. Paris: Les Éditions de Munuit, 2003.

LAPOUJADE, D. Deleuze: os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: N – 1 edições, 2015.

PELBART, P.P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. 2ª ed. São Paulo: N – 1 edições, 2016.

SAUVAGNARGUES, A. Écologie des images et machines d’art. En: Pourparlers: Deleuze entre art et philosophie. Reims, França: Épure; Édition de Presses Universiteire de Reims, 2013a, p. 169 – 186.

SIMONDON, G. L’individuação psychique et coletiva à la lumière des noções de forme: informação, potentiel et métastabilité. Paris: Aubier, 1989.

 

Recebido em: 15/02/2018

Aceito em: 15/03/2018


[1] Professora Adjunta do Curso de Dança da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutora em Educação pela UNICAMP. E-mail: ju_bomtempo@yahoo.com.br

ASFALTO em intervenções urbanas: imagens em performance e o fabular de um povo por vir

 

RESUMO: Como se dão as tramas sociais, políticas, linguísticas, arquitetônicas e corporais que organizam os fluxos do espaço urbano? Como intervir e ensaiar procedimentos para propor fissurações nos “asfaltos” e nas linhas que endurecem a cidade? Estas são questões que mobilizam sobremaneira o Grupo Asfalto e este propõe enfrentá-las criando intervenções performáticas no meio urbano e cotidiano. Tais intervenções têm como mote desalojar as espacialidades, os dizíveis e as visibilidades que configuram o ordinário da cidade, criar imagens em performances que abram os signos e os sentidos a proliferações. O espaço-tempo que entra no jogo de forças diante de uma intervenção, passa a ter os signos e os corpos desalojados e violentados diante do non sense e do não racional de ações que intervém nos planos ordinários de uma cidade. Tudo que não é consonante e correspondente ao que está dado para certo espaço, para aqueles discursos e para determinadas visibilidades, faz de uma intervenção artística uma criadora de problemas. Assim, tais procedimentos problematizam as questões quid juris? e quid facti?, enfatizando o que temos de mais urgente frente ao contexto urbano, afinal Quid vitae?.

PALAVRAS-CHAVE: Grupo Asfalto. Intervenção Urbana. Quid vitae?.


ASPHALT in urban interventions: images in performance and the fabulate of a people to come

 

ABSTRACT: How do the social, political, linguistic, architectural, and corporeal patterns organize the flows of urban space? How to intervene and test procedures to propose fissures in the “asphalts” and in the lines that harden the city? These are issues that mobilize the Grupo Asfalto and this one proposes to face them by creating performance interventions in the urban and daily environment. Such interventions have as a motto dislodge the spatiality, dizibles and visibilities that make up the ordinary of the city, to create images in performances that open the signs and the senses to proliferations. The space-time that enters the game of forces face to face an intervention, begins to have the signs and the bodies displaced and violated in front the non sense and the non-rational of the actions that intervenes in the ordinary planes of a city. Everything that is not consonant and corresponding to what is given to a certain space, to those discourses and certain visibilities, makes of an artistic intervention a creator of problems. Thus, such procedures problematize the Quid juris? and Quid facti ?, emphasizing what we have of most urgent in front the urban context: Quid vitae?.

KEY WORDS: Asphalt Group. Urban Intervention. Quid vitae?.


 

BOM-TEMPO, Juliana Soares. ASFALTO em intervenções urbanas: imagens em performance e o fabular de um povo por vir. ClimaCom – Ecologias Radicais [Online], Campinas, ano 5,  n. 11,  abr.  2018 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8814