Por: Meghie Rodrigues
A urgência de adaptação exigida pelas mudanças climáticas tem colocado novas perguntas e desafios para a arquitetura enquanto campo de teoria e de ação. Sua condição face ao Antropoceno – definição ainda em debate para designar uma época marcada pela intervenção humana enquanto força geológica – e diante da produção e circulação do capital econômico, são elementos que causam inquietação em arquitetos e urbanistas de filiações teóricas diversas. Perpassada pelo capitalismo e por esta nova época, a arquitetura também torna-se um instigante espaço para repensar os sentidos que a concepção de “sustentabilidade” vem adquirindo, bem como de investimento em novos modos existência que problematizam as noções de função e uso, de precário e instável.
É possível que a noção de Antropoceno, contudo, ainda não seja suficientemente forte para estremecer tão profundamente as bases da arquitetura a ponto de fazê-las ruir. Em uma conversa com o pesquisador Etienne Turpin, registrada no livro “Architecture in the Anthropocene: Encounters among design, deep time, science and philosophy”, publicado em 2013, o arquiteto e urbanista suíço John Palmesino observa que pode ser que não seja necessário reconceitualizar a disciplina em decorrência do advento desta nova época: repensar o conceito de algo é se colocar fora desse objeto sobre o qual se pensa, como se fosse possível enxergá-lo à distância. Não se trata de fazer ou pensar algo sobre a arquitetura, mas de usá-la como campo de pesquisa e prática – como meio de ação. Por isso, o urbanista pontua que, neste caso, “não há lado de fora”. Para ele, mais do que falar em prédios e construções, o campo trata de “uma conexão ativa entre espaços materiais e sua habitação”, estruturando uma relação entre espaço e política. Constante, esta interação cria uma dinâmica: modificações nas configurações materiais e espaciais eventualmente redefinem muitos dos nossos espaços de coabitação e incidem na forma como a vida social é organizada; por outro lado, decisões políticas e ações sociais também modificam profundamente a forma como os espaços são pensados e projetados.
Enquanto campo do conhecimento, a arquitetura se encontra em meio a um hibridismo entre áreas do saber – artes, filosofia, política, ciências – e as forças de criação que os movimentam, de práticas que negociam entre si, e culminam na transformação de ideias e espaços no redesenho da contemporaneidade. E uma disciplina não teria, em princípio, privilégio sobre a outra, ocupando o centro da discussão. “É preciso repensar todas as nossas referências: na filosofia, na antropologia, nas ciências naturais e sociais – precisamos redefinir a epistemologia em geral. Por isso este hibridismo é importante neste momento, para reconstituir nossa visão de mundo”, observa Rainer Hehl, professor do programa de Arquitetura, Design e Inovação da Universidade Técnica de Berlim, cujo foco de pesquisa é o Brasil.
Arquitetura e capital
Não apenas o Antropoceno aparentemente não se mostra suficiente para abalar as estruturas da arquitetura: junto à noção de mudanças climáticas, o conceito tem sido, também, engolfado pelo capitalismo pós-industrial. Em um texto publicado em 2008, quando a crise imobiliária atingia seu auge nos Estados Unidos, o arquiteto e professor da Universidade Federal de São Paulo, Pedro Arantes, chamou atenção para um funcionamento da arquitetura que, absorvido pelo fetichismo do capital, legitima e reforça o establishment que em princípio se propunha a criticar. “No fetichismo do capital, o dinheiro parece gerar mais dinheiro a despeito da produção e do trabalho, como se o valor nascesse da própria circulação”, conta ele. Este funcionamento difere daquilo que o filósofo alemão Karl Marx considerava como fetichismo da mercadoria – quando um produto se torna autônomo em relação a seu produtor, parecendo brotar por geração espontânea, adquirindo um valor que vai muito além do seu valor de uso ou de troca. O fetichismo do capital seria, observa Arantes, “uma abstração sobre outra abstração, uma forma de autonomização da propriedade e de sua representação” – uma abstração que não é inerente à mercadoria, mas a uma geração de valor que depende apenas da circulação do capital para existir. Assim, a especulação torna-se uma forma de rentabilizar não apenas prédios, mas também conhecimentos e informação.
Desse modo: se, por um lado, a arquitetura contemporânea deseja criticar a rigidez e a massificação da forma, por outro, anda de mãos dadas com a financeirização exacerbada, que se utiliza da exclusividade do design para gerar valor – fechando-se cada vez mais em si mesma e ficando progressivamente mais inacessível a quem não dispõe de grandes quantias de capital econômico. Um exemplo interessante que Arantes discute é o design do arquiteto estadunidense Frank Gehry, um dos nomes mais conhecidos da “arquitetura de grife” no mundo, responsável pelo projeto do o museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha. Com suas formas distorcidas e composição não-linear, a obra é aclamada como desconstrutivista e marca da iconoclastia de Gehry; seu aspecto peculiar, único e exclusivo é o que lhe confere valor – que, certamente, seria bastante menor se muito mais cidades no mundo tivessem obras assinadas por ele. A partir da obra de Gehry e da financeirização, a relação entre forma e função, na arquitetura, conclui Arantes, parece estar se desfazendo “para que a arquitetura possa circular mundialmente como imagem de si mesma” – e, sob a égide de uma ação política e preocupação social débeis, estaria se afastando das necessidades reais das pessoas face à escalada da pobreza em todos os continentes.
Das colunas que sustentam o insustentável
Além da própria noção de arquitetura enquanto campo de saber e de ação, outro conceito que pesquisadores apontam como problemático no encontro com a lógica de consumo do capitalismo contemporâneo é o de “sustentabilidade” – que, em arquitetura, vai para além da construção de prédios com painéis solares e de colocar jardins em coberturas para emitir menos dióxido de carbono na atmosfera.
O termo, observa o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie-SP, Igor Guatelli, não se resume apenas a pensar uma relação menos predatória com os recursos naturais – precisa levar o humano como elemento subjacente. “Sem sustentabilidade social fica muito difícil alcançarmos uma sustentabilidade ambiental”, observa ele. O questionamento é interessante quando se pensa nos impactos, não raramente, invisíveis, que as próprias tecnologias ditas “verdes” causam no meio ambiente. Turbinas de vento, por exemplo, se utilizam de neodímio para a produção dos magnetos que as fazem mover. Os processos de extração e refinamento são bastante poluentes e adicionam prejuízos ambientais nos locais onde o metal é processado, como a China – país que é, hoje, o maior produtor de neodímio do mundo. Os restos da produção são despejados em um lago em Baotou, na Mongólia Interior, junto a resíduos da produção de artigos eletrônicos como baterias de computadores e câmeras – conferindo à paisagem o pior dos cenários imaginados por filmes de ficção científica que anteveem a desolação do planeta no futuro.
Além disso, mais do que se projetar edificações com vistas a garantir a sustentabilidade, deveríamos planejar pensando na sobrevivência da espécie humana. A observação é da arquiteta Susan Roaf, que em seu livro “Adaptação de edificações e cidades às mudanças climáticas: um guia de sobrevivência para o século XXI” considera que muito pode ser feito por meio de inovações em planejamento e design, mas que, em última instância, “é fundamental um reordenamento de nossas prioridades, aspirações e sociedades para criar um ambiente social, econômico e físico em que o Homo sapiens seja capaz de sobreviver, em massa e de maneira segura, até o fim deste século”.
Parte desse reordenamento de prioridades poderia passar, também, por uma revisão da própria noção de sustentabilidade, que se mostra insuficiente sob vários aspectos. A tentativa de tornar mais tênue ou esfumaçar a linha que separa o homem do mundo natural tem na tecnologia um de seus motores principais: a técnica seria capaz de nos salvar de nós mesmos, e os algoritmos e códigos binários escondidos em softwares poderiam pavimentar a ponte que nos levaria à reconexão com um suposto mundo natural não-humano, extrínseco à constituição do Homo sapiens. Esta noção vai muito além da tentativa de reduzir impactos no planeta através da construção de painéis solares ou do consumo de energia gerada por turbinas de vento em larga escala. A possibilidade deste “retorno às origens” através da tecnologia está, por exemplo, imbricada no próprio pensamento que funda a cibernética – base da dita tecnologia verde e dos smart grids operados mundo afora. O poeta americano Richard Brautigan, que fez parte do Movimento Beat, em meados dos anos 1950, na Califórnia, exemplifica esta conexão em All Watched Over by Machines of Loving Grace, poema de 1967. Ele desenha, de forma bastante clara, esse “pastoralismo tecnológico” em seu limite:
(…) “Eu gosto de pensar
(tem que ser!)
em uma ecologia cibernética
na qual estamos livres do trabalho
e reunidos com a natureza,
de volta aos mamíferos,
nossos irmãos e irmãs,
e todos vigiados
por máquinas de uma amorosa graça”
Este “retorno” que, possibilitado pelo avanço tecnológico, funda a noção de sustentabilidade que circula hoje, não foge, no entanto, da lógica do consumo desenfreado, possibilitado e estimulado pela circulação do capital econômico – que tem na tecnologia seu principal motor. Para Igor Guatelli, é importante se perguntar sobre qual sustentabilidade estamos falando. Se trata-se de uma preocupação com a natureza, “a que natureza estaríamos nos referindo? É a paisagem verde, extrínseca ao humano?” Nesse sentido, tal aposta na aceleração tecnológica não deixa de reproduzir a oposição moderna entre humano e natureza – entre parte e todo.
A arquitetura (e o urbanismo) entra na discussão por conta do seu papel de desenhar panoramas e intervir neles, criando espaços sociais de convívio. Para Guatelli, o problema real da sustentabilidade nos meios urbanos, hoje, é algo que foge em muito ao domínio de arquitetos e urbanistas: pode haver boa vontade em projetar cidades e prédios inteligentes com coberturas verdes e materiais leves, recicláveis. Porém, em última instância, as decisões com real possibilidade de impacto são fruto de “ações governamentais em outra escala – e não é o arquiteto que vai resolver isso”. Nanda Eskes, professora auxiliar do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, concorda com a afirmação. Ela organizou, em junto com Rainer Hehl e outros pesquisadores, o seminário “Arquitetura Tropical no Antropoceno”, que aconteceu na PUC-Rio no início de março. “Acredito que tenhamos que mudar nossa legislação e penalizar aqueles que constroem trazendo prejuízo para a natureza (implicando altos índices de gastos de energia, por exemplo) e incentivar quem adota boas práticas. Nosso sistema de legislação é muito antigo e muito pouco criativo”.
Possibilidades de reinvenção e recriação da vida urbana
Se, por um lado, ações governamentais em larga escala poderiam potencializar o sentido de “sustentável” no planejamento urbano, o papel da informalidade pode ter mais importância do que a que normalmente lhe é conferida. Como pontua o arquiteto francês François Roche, em conversa com Etienne Turpin, as favelas em Bangcoc, por exemplo, não precisam de arquitetos. Ele observa que, em aglomerados em Jacarta ou no Rio de Janeiro, as pessoas “têm uma organização social incrível, que não é de cima para baixo, mas tem a ver com a delegação do micropoder em movimento constante, de baixo para cima”.
Esta movimentação, nem sempre visível, acontece enquanto a arquitetura e o urbanismo privilegiados pelo status quo se afastam da vida que acontece às margens do poder vigente. Assim, ocupação e transformação dos espaços urbanos como forma de sobrevivência e resistência à homogeneização das paisagens e à força do capital colocariam em xeque a própria razão de ser do arquiteto. Estes profissionais, observa Roche, não mais agem na sociedade; antes, agem imersos em um campo, “portadores de um conhecimento incrível sobre novas ferramentas e com uma expertise auto-referencial memorável, mas ninguém quer esse conhecimento fora do campo da arquitetura. Então, somos como macacos em uma jaula que desenvolvem uma linguagem incrivelmente sofisticada, mas que ninguém consegue entender fora dela”.
Ainda assim, é possível oferecer resistência à descaracterização das cidades e à diluição homogeneizante das paisagens. Ou, como conta Igor Guatelli, é possível “re-existir” em meio a tanto barulho – e não é preciso usar a dita “arquitetura de grife” para tanto. Ele considera que uma das saídas se apresenta por meio de “dobras” no espaço urbano, das quais a Jacarta citada por Roche é um exemplo. O conceito, do filósofo francês Jacques Derrida, caracterizaria uma arquitetura do “entre”, que estaria entre o inteligível e o ininteligível, “entre o nomenon, o mundo dos conceitos, da razão universal, e o phenomenon, o que aparece e que se apresenta diante de nós como questão”. Isto se caracterizaria, em termos práticos, em obras arquitetônicas e espaços que “não induzem nem pré-determinam uma ocupação e abrem a possibilidade de as pessoas os interrogarem”, gerando assim uma abertura para que o usador, termo de Lígia Clark para caracterizar quem “recebe” uma obra, se perceba como força atuante e se aproprie do espaço em um gesto criativo, deixando de ser apenas o “para quem” a obra é feita.
A arquiteta Lina Bo Bardi, que coleciona obras famosas na cidade de São Paulo, como o vão do MASP, a marquise do Ibirapuera e o SESC Pompéia, já pensava em termos do não-confinamento de um espaço, resumindo-o a um uso predeterminado. “Esse vazio de pré-significações e de pré-determinações abre a possibilidade de invenção, de apropriação”, conta Guatelli. O prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, bem como espaços espontâneos como a área vazia da favela de Paraisópolis (SP), são outros exemplos de locais que não condicionam as pessoas a um uso sugerido: tanto na USP quanto em Paraisópolis, os transeuntes se utilizam do vazio para criar relações e espaços de diálogo com vários usos possíveis. Em Paraisópolis, por exemplo, este campo vazio “é onde tudo acontece: o lazer, o bate-bola, todo tipo de festa. Precisamos começar a olhar para esses movimentos espontâneos”, observa Guatelli. O não-condicionamento presente na ideia da arquitetura do “entre” ganhou expressão em seu projeto para a academia de boxe Cora Garrido, feito a pedido do ex-boxeador amador Nilson Garrido, que ocupou o Viaduto do Café, no bairro paulistano da Bela Vista. O projeto, que integra a ONG Cora Sol Nascente, tem mais duas filiais em São Paulo e recebeu apoio do poder público por sua função social. É um lugar onde o ringue de boxe divide espaço com uma biblioteca infantil e uma brinquedoteca. Juntos, esses heterogêneos, segundo o pesquisador, desacoplam uso e função em um espaço que, à primeira vista, não é a matéria-prima sobre a qual arquitetos normalmente trabalham: viadutos são espaços esquecidos na paisagem urbana. “Minha intenção foi mostrar que o arquiteto pode trabalhar no precário, estruturando-o, e que é possível uma ação que também não deixa de ser estética. Ela é, também”.
Este tipo de ação, que se manifesta em projetos como o premiado Jakarta Bersih, dos holandeses da Nunc Architecten, ou em iniciativas de planejamento participativo, no Rio de Janeiro, são exemplos de reinvenção urbana levando em consideração os contornos das relações entre as pessoas que habitam estes espaços trabalhados. A informalidade desta aparente desestruturação encontra lugar também na obra do artista espanhol Dionisio González, que, em criações como seus protótipos ou “Dauphin Island”, enxerga a arquitetura como uma possibilidade de enfrentamento não apenas da homogeneização da paisagem urbana, mas da devastação iminente do planeta em decorrência de desastres climáticos e ambientais. Ele faz isso sem, contudo, denunciar e julgar as lacunas do campo arquitetônico nem resvalar para a sua super-estetização; antes, brinca com linhas e formas de modo a tornar a noção de “desastre” uma força criadora. Obras como a do artista nos ajudam a perceber que o jogo entre habitar, existir e re-existir no Antropoceno exige mais que soluções bem-intencionadas: requer inventar possibilidades de se colocar no espaço onde estão as “dobras” da paisagem urbana, a fim de recriar um “entre” possível de ser habitado.