Achados do Rio Tietê
Título: Achados do Rio Tietê
Resumo: Com o objetivo de pensar a problemática da poluição, da falta d’água e as mudanças climáticas, mergulhando nas conexões entre Arte, Literatura, Filosofia e Ciência, propusemos criações que trouxessem possibilidades novas para enfrentar as lógicas dominantes existentes a esse respeito. Coletamos imagens e objetos nas margens do Rio Tietê para inventar/compor escritas e imagens potentes, poesias, que posteriormente foram apresentadas na exposição Aparições. Para tanto, fizemos imagens fotográficas com tablet nas margens do Rio Tietê, no estado de São Paulo, Brasil, passando pelos municípios de Salto, Porto Feliz, Itu, Cabreúva e Pirapora do Bom Jesus durante o mês de maio de 2015, ocasião em que também coletamos vários objetos que foram descartados naquele local ou arrastados pelo rio. Procuramos produzir escritas no/com o encontro das imagens, objetos e mesa, numa disposição que teve como objetivo oferecer aos visitantes um banquete para novas criações.
Para esta experimentação, nos propusemos um mergulho no rio. Levamos olhos com seus cérebros arrastados, olhos-onda que serpentearam secos por suas beiras, margeando encontros inusitados que não paravam de parir des-objetos. Enquanto os carrapatos sugavam-nos o sangue, enferrujávamos; desatinamos a gravar imagens da prole aquática e a pescar palavras que voavam em seu entorno e, por não caberem na imagem, resolvemos colocar na sacola. Assim, lá estavam eles, Aparições, achados, descuidos e desimportâncias a serem degustados sobre a mesa, ao lado das fotos do rio da “água verdadeira”. Seriam eles menos verdadeiros?
Despropósito humano, não ter por onde correr lágrimas. Vimos um Rio que diminui pelos nossos excessos, aprendemos isso com a lima encontrada em sua margem. Inuntensílios, como uma caneta que não escreve, mas nos fura. Quantos seres cuspidos pela gente, pelo rio?
Contaminação.
Máquina de produzir desimportâncias funde água e chão, bola e pena, acaso e beira, seixo e linha, gesto e peixe, ave e lama, rio e homem, transborda vísceras e insensatez.
Enxergar o descuidado e gostar das sobras nos possibilitaram inventar imagens, escritas e um rio de descuidos, inspirações com Manuel de Barros, que coloca a poesia como um inutensílio potente: “[…] tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para a poesia” (BARROS, 1999), tudo ao chão e sem importância. Com Deleuze “O devenir é uma captura, uma posse, mais valia, jamais uma reprodução ou imitação” (DELEUZE, 1977, p. 21-22 ), assim o devir nunca (l)imita, mas arrasta para outra direção, escapa às ordens impostas e co(r)pula em encontros imprevisíveis, vemos não seres e o imperceptível, conspiramos com o Universo e deixamo-nos afetar por futuros menos áridos, onde correm lágrimas, gente-racho de rio.
[…] sou água que corre entre as pedras: – liberdade caça jeito.
Manoel de Barros. Matéria de Poesia
Referências
BARROS, M. O guardador de águas. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
______. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
______. Matéria de Poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
______. Gramatica expositiva do chão. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Conversações. Ed. 34: São Paulo, 2013.
______. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Julio Castanon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
Concepção: Waldirene de Jesus (Unicamp) e Antônio Almeida da Silva (Unicamp/UEFS)
A poesia dos achados
(por Antonio Almeida da Silva)
Enferrujar
É o dom para pouca gente
alguns
nem amadurecem
Quem dera empodrecer
Sou mais o entulho que gruda pelo vento
gosto dessas incrustações.
Costumo arrastar algumas coisas pelo chão
corrompê-las, envergando-as
Me aprofundo nos desobjetos como
alguém que mergulha sem perceber.
Enfiei o que pude dentro de uma cochacocha,
Quase não sobrou espaço para mais nada.
As folhas e as penas ficaram por fora
Dentro ficou o acaso
Fora ficou a beira
Na beira d’água,
Na beira do rio,
Na beira do acaso
Eu me completo
Com a margem do rio eu me alinhavo
Com suas pedras e seixos eu me lavo
Com suas águas meu descompasso
Sou um apanhador de ciscos
gravetos, folhas, besouros entre outros inuntensílios
Dou mais crédito àquelas que encontro quase grudadas vão chão
Tenho abundância por coisas que não existem.
Toda vez que o rio me encontra
Eu caso com ele
Ele me apresenta suas vísceras
Coisas cuspidas para margem
Cospe tudo que um dia o homem lhe deu de comer
Penso que dentro do rio não cabe a insensatez.
Um rio que margeia encontros
Coisas que se acham e se perdem
Tenho um ermo por margear o rio
O rio produz em mim seus encontros
pedra, pau, porcaria se permitem margear o rio,
que rio é esse que se contamina pelos nossos descuidos?
Vejo que é o rio, está à beira de seus descuidos.
Eu tenho um dom para encontrar o descuido.
Encontre à tarde de um rio coisas que lhe foram emprestadas
coisas que não servem para nada, a não ser para aumentar o volume
do rio.
Encontrei na costa do rio sabugos, ciscos, resto de gente, e um
monte de utensílios.
Quis colecionar as coisas que vi.
Com os desobjetos do rio aprendi muitas coisas
Aprendi a ver que no rio se diminui pelos nossos excessos.
tenho dons para enxergar o descuidado
aprendi nessa manhã ver o imperceptível
descobri em mim o gosto pelo que sobra
transbordou do rio para mim seus restos humanos.
agora mesmo valorizo o ínfimo,
valorizo ainda mais quando permanece à beira,
quando é capturado por seus despropósitos.
O rio hoje lagrimou entulho em suas encostas.
Ficou seco de tanta lagrima
aí eu chorei
Máquina de produzir desimportâncias
(por Waldirene de Jesus)
água-chão
água-pão
água-grão
bastarda hidríca, hibrída
des-propósito humano
viver de excedentes
o rio-lima
leva excessos
leva mortos
gente-coisa
sem lugar
restos singulares
que fazer da bota?
da camisa?
da concha?
odorizantes
canos
pedaços de torneira
involuções de um líquem
simbiose abiótica
alga-pedra-fungo
seres
cuspidos
pela gente, pelo rio
pela lesma?
palavras que não cabem
palavras que não preenchem
in-significâncias
grânulos-margem
imã-gens
verbos sem rotina
penear
bolear
comer
todo dia temos que ter fome?
Garfo, colher, colher
colher pedras
galhos
restos de jornais
centrifugar a caixa alta
libertar sopros
i s o p o r i z a r
solver letras
sol – ver
so – lv – er
decompor palavras
espumar sensações
des-cuspir
tornar o rio dentro da gente