A nave do cinema em quatro viagens


Durante a Guerra Fria, americanos e soviéticos travaram uma corrida para a conquista do espaço fora da Terra. Em 1957, a União Soviética lançou o primeiro satélite artificial em órbita ao redor planeta, o Sputnik, que transmitiu sinais de rádio, constantemente, para a Terra, durante 22 dias. Em 1961, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin foi o primeiro homem a viajar para o espaço; no mesmo ano, o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, anunciou que seu país realizaria uma viagem tripulada à Lua até o final daquela década, o que Geroge Meliès, em Viagem à Lua, filme de 1902, havia profetizado no imaginário popular através do cinema.

Space Race (2005), documentário em três partes produzido pela rede de televisão inglesa BBC, mostra a disputa entre as duas superpotências pela hegemonia do poder planetário. O documentário é bem dirigido e revela com riqueza de detalhes a trama dos dois lados em busca da soberania tecnológica para a conquista do espaço. No entanto, como é habitual nas reportagens televisivas, a narrativa é linear e dirige-se diretamente ao intelecto do espectador, o qual, assimilando a coerência dos fatos apresentados, termina de assistir aos três episódios com a sensação de ter compreendido o que ocorreu durante a disputa. A referida produção para televisão no formato de reportagem composta por cenas originais de época e por reconstituições encenadas cumpre seu papel de informar, mas as informações, ainda que minuciosas, não esgotam a riqueza dos fatos em todas as suas dimensões, planos e pontos de vista.

Há filmes, porém, que dão ao espectador uma percepção dos fatos sem isolá-los do fluxo do qual emergem e sem a necessidade de ordená-los numa sequência de relações entre causas e efeitos. Filmes que levam o espectador a captar a essência de uma questão com amplitude e profundidade jamais atingidas pela narrativa descritiva. É o que acontece numa exibição de 2001: A Space Odyssey (2001 – Uma Odisseia no Espaço), filme de 1968 que adapta para o cinema o livro de ficção científica escrito por Arthur Clarke (1968).

Em “Aurora do Homem”, primeiro capítulo do filme, a plateia da virada dos anos sessenta para os anos setenta do século XX é levada pelo gancho daquilo que era proeminente na consciência das pessoas naquela época: o osso do esqueleto de um quadrúpede, revelado como instrumento técnico, logo é utilizado pelo símio como arma contra o grupo rival, remetendo o público do filme à corrida espacial durante a Guerra Fria. No filme de Kubrick, o que Space Race parece explicar, ressoa na consciência do espectador pela via da percepção mais sutil, do arrebatamento produzido pela obra de arte.

O filme foi objeto de polêmica na época de seu lançamento, pois a fotografia, os efeitos especiais e a trilha sonora não pareciam entrar em ressonância. No entanto, o filme resistiu à prova do tempo e permanece atual, pois espectador contemporâneo não sai da sala de exibição indiferente à experiência de desterritorialização que se prolonga em sua memória.

Em “Missão a Júpiter”, a questão tecnológica que alinhava o filme do início ao fim através do monólito é encarnada pelo computador HAL-9000. O osso que outrora marcou o encontro entre o advento tecnológico e o poder militar é retomado num futuro distante com a disputa pelo controle da missão entre o revelado falível HAL e os tripulantes da nave, revelando ainda nossa deteriorada relação com as máquinas que ora escravizamos, ora nos escravizam.

O último capítulo de 2001, “Júpiter e além do infinito”, leva a plateia junto com Bowman em sua viagem de volta, de volta a casa, à Terra e a si próprio. Como o de Ulisses, em Odisseia, o retorno de Bowman é narrado numa estrutura não linear de linguagem que remete o espectador à questão nietzschiana do eterno retorno. A trilha sonora do filme contém o poema sinfônico de Richard Strauss, Also sprach Zarathustra, homônimo da obra de Nietzsche (1998).

O clássico de Stanley Kubrick, indicado para quatro prêmios Oscar, apresenta, portanto, uma dupla viagem: a externa, espacial, cósmica, misteriosa, e a interna, a de Bowman ao encontro com ele próprio. A dupla viagem é sugerida também nas ligações telefônicas do Dr. Floyd para sua filha e do Dr. Poole para seus pais, nas quais os assuntos cotidianos e banais, como festas de aniversário e fofocas de vizinhos, curto-circuitam a viagem épica e a vida ordinária terrestre.

2001 nos dá a perceber o que as reportagens televisivas explicam, antes mesmo que possamos elaborar os pensamentos. Alguns anos após a sua estreia, Andrei Tarkovski lançou Solaris (1972), que pode ser tomado como uma espécie de resposta a 2001 no diálogo entre dois dos maiores cineastas da história. Enquanto Space Race explica a disputa pela conquista do espaço, Kubrick e Tarkovski levaram as consciências dos espectadores para fora da miséria humana no jogo da guerra.

Solaris também é uma adaptação da literatura para o cinema: o filme soviético é baseado na novela homônima de Stanislaw Lem (1998). Solaris também apresenta uma dupla viagem: a espacial, exterior, e a viagem interna do protagonista, mas Tarkovski parece ter privilegiado esta última, elegendo a questão da memória como central no filme. O psicólogo, Dr. Chris Kelvin (interpretado por Donatas Banionis), é enviado para a estação espacial que orbita Solaris para investigar estranhos fatos que vêm dizimando a tripulação da estação. Ao chegar, Kelvin depara-se com dois tripulantes sobreviventes e pessoas que não deveriam estar na estação, que surgiram estranhamente. Passado algum tempo, lá aparece Hari, sua mulher falecida há anos por suicídio. Fica claro então que a substância aquosa e amorfa que compõe o oceano de Solaris é, para além de sua composição química, essencialmente um oceano de memórias.

A grande viagem cósmica do homem não fica de forma alguma subestimada em Solaris: a perda da nossa relação reativa com o cosmo é sutilmente apontada no filme como chaga que, a partir do triunfante coroamento da ciência moderna pela lei da atração gravitacional de Newton, deu ao homem a pretensão de domesticar a natureza, para o que foi preciso dela se apartar e observá-la de um ponto vista supremo. Como afirmaram Ilya Prigogine e Isabelle Stengers (1984, p. 37),

[…] a descoberta da gravitação universal é o sucesso aparente do projeto de fazer a natureza confessar de uma só vez a sua verdade, de descobrir o ponto de vista de onde, num só golpe de vista dominador, se pode contemplá-la, oferecida e sem mistério.

O escritor inglês D. H. Lawrence assim traduziu o drama da separação homem-cosmo em Apocalipse:

Não pense que vemos o sol tal como o viam as antigas civilizações. Tudo o que vemos é uma pequena luminária científica, reduzida a uma bola de gás incandescente. Nosso sol é coisa muito diferente do sol cósmico dos antigos, muito mais trivial. Ainda vemos aquilo que denominamos sol, mas perdemos o Hélio para sempre. Perdemos o cosmo porque perdemos a nossa relação reativa com ele, e esta é a nossa maior tragédia. O que é nosso mesquinho amor à natureza – à Natureza!! – em comparação com esta magnífica convivência dos antigos com o cosmo que tanto os honrara? O homem convivia com o cosmo e sabia que o cosmo era maior do que ele. […] Nós e cosmo formamos uma unidade. O cosmo é um imenso organismo vivo do qual ainda fazemos parte. (LAWRENCE, 1999, p. 34-35).

Em Solaris, o isolamento cósmico do homem aparece no estranhamento entre o que restou da tripulação da estação espacial e as propriedades físicas da matéria que compõe o imenso oceano ao seu redor.

Em Solaris e em 2001, a percepção do espectador é despertada para a dimensão cósmica da vida humana e a consequente abertura à grandiosidade das escalas de tempo e de espaço que a idade e o tamanho do Universo nos revelam quando, ainda que por um instante, nos damos conta da efemeridade de nossas vidas e da insignificância da porção de espaço que ocupamos. A efemeridade e a insignificância não têm aqui, no entanto, traços de carga negativa; ao contrário, representam a dissolução do ego na ressonância entre a pulsação do ser e as radiações de fundo do cosmo.

Out of the present, de 1999, dirigido por Andrei Ujica, capta de maneira singular o duplo movimento que observamos em Solaris e em 2001: o movimento rumo à interioridade e à amplitude do universo. Os dois filmes são claramente referenciados na obra de Ujica. O cineasta romeno filma durante seis meses o cotidiano da estação orbital MIR, tomando o cosmonauta Sergei Krikalev como protagonista análogo aos protagonistas de Solaris e de 2001. Repetindo incessantemente o movimento de uma volta na Terra em pouco mais de uma hora, Krikalev vive o distanciamento do seu cotidiano ao mesmo tempo em que recebe notícias da superfície do planeta, onde se dissolve a antiga União Soviética no fervor da política global. Este filme tem, no entanto, um refinamento artístico capaz de levar a percepção do espectador às questões presentes nos dois referidos filmes e às questões que sucederam a Guerra Fria, enquanto exibe com incrível simplicidade as situações banais do dia a dia de Krikalev na estação orbital. Out of the present é vídeo-arte que sutilmente incorpora características de documentários e de filmes de arte.

As quatro produções aqui abordadas aqui abordadas dão a perceber que, em última análise, o universo criou o homem, embora haja constantemente a tentação de adaptar forçosamente esta obviedade à hipótese que a contraria.

 


Referências

CLARKE, A. 2001, A Space Odyssay. London: Hutchinson, 1968.

DELEUZE, G.: A imagem tempo. Cinema – II. São Paulo: Brasiliense, 2005.

LAWRENCE, D. H. Apocalipse, seguido de O Homem que morreu. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

LEM, S. Solaris. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PRIGOGINE, I.; STENBERG, I. A Nova Aliança. Brasília: Editora universitária UnB, 1984.

TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

 

Filmografia

SPACE Race (Corrida Espacial). Christopher Spencer e Mark Everest. Inglaterra, 2005.

OUT of the present. Andrei Ujica. Alemanha, 1999.

SOLYARIS (Solaris). Andrei Tarkovsky. URSS, 1972.

2001: A Space Odyssey (2001 – Uma Odisseia no Espaço). Stanley Kubrick. EUA, 1968.

LE VOYAGE dans la lune (Viagem à Lua). Georges Méliès. França, 1902.


 

[1] Docente da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Programa de Mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, vinculado ao Instituto de Estudos da Linguagem (Labjor/IEL/Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe/IFCH/Unicamp) e do Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHS/(FCA/Unicamp).

A nave do cinema em quatro viagens


Márcio Barreto[1]