A emergência da ecologia das práticas
Felipe Peregrina Puga[1]
CHOY, Timothy. Ecologies of Comparision: an ethnography of endangerment in Hong Kong. Durham: Duke University Press, 2011. 224p.
O fantástico livro Ecologies of Comparision é resultado da pesquisa de doutorado do antropólogo Timothy Choy próximo ao fim dos anos 90 na região de Hong Kong. A temática central do livro se desdobra nas inseparáveis práticas de conhecimento das políticas ambientais e negociações culturais e políticas que permeiam e se articulam ao longo de múltiplas escalas e atores distintos. O livro é dividido em 6 capítulos, contando também com 5 pequenos trechos puramente descritivos, que se intersectam e remontam as cenas relatadas dos cadernos de campo do autor.
Abordando a literatura dos estudos de ciência e tecnologia e da antropologia linguística, Choy constrói sua etnografia descrevendo e comparando diversas escalas de análises associadas às controvérsias envolvendo as práticas das corporações, Organizações Não-Governamentais (ONGs), populações tradicionais, expertises científicas, políticos, plantas, animais e outros atores não-humanos. A importância de abarcar um conjunto múltiplo e diferenciado de práticas conceituais de atores se destaca pelas conexões parciais, por vezes controversa, produzidas entre lugares, formas de vida, espécies e ambientes situados entre o particular e o universal.
Desse modo, uma importante noção, decorrente das práticas descritas e analisadas, é a ideia de comparação e os usos contínuos que são feitos para comparar diversas comparações. Tais usos estão diretamente atrelados com a produção de especificidade e do risco (endangerment) de certas espécies da fauna e flora, bem como questões tidas como ‘culturais’, como a formação da identidade nacional, da autonomia dos estados, dos nichos de mercados e da singularidade dos lugares.
Choy aponta de antemão a centralidade associada ao termo “ecologia” que perpassa o vocabulário dos diversos interlocutores e a própria estrutura do livro. Por atravessar diversas práticas e instâncias, a “ecologia” incorpora sentidos diferentes, mas conectados entre si em algum grau. Segundo ele, ecologia se refere (1) sinonimicamente a ambientalismo e movimentos ecológicos, mas também está atrelado a (2) um conjunto de ciências e subdisciplinas responsáveis pelo estudo das interações de organismos em um ambiente, e (3) a uma ampla gama de relação entre partes constituídas com o todo que é inseparável dos outros dois sentidos mencionados.
Uma das práticas conceituais controversas se apresenta ao leitor logo no primeiro capítulo do livro. A partir da descrição de uma cena de indígenas montados em escavadeiras para a construção de um conjunto residencial e campo de golfe em Hong Kong, enquanto ambientalistas apontavam a ação como uma forma de desmoronar todo o valor ecológico da terra defendido após muitos esforços, Choy apresenta o modo como uma determinada empresa conseguiu encontrar uma brecha na lei para poder construir um conjunto residencial dentro do parque rural com a ajuda de parceiros indígenas.
No segundo capítulo, duas histórias narradas, uma relacionada ao aparecimento de corpos ensanguentados de golfinhos rosas nas praias de Hong Kong em razão da construção de um aeroporto internacional e a outra a um projeto de revitalização do governo num pequeno vilarejo de pescadores, antecipam as considerações analíticas do autor acerca da produção do risco. Ambas as situações controversas, aparentemente desconectadas entre si, proporcionaram a emergência de práticas de resistências. De um lado, a operacionalização de sujeitos políticos e expertises científicas, biólogos marinhos em ONGs e, do outro lado, antropólogos culturais na produção da singularidade dos lugares, das espécies e das culturas.
Essa produção de singularidade se relaciona diretamente com a temática do livro sobre a construção do risco através de alianças, inscrições, cadeias de tradução, expertises e estabilização dos fatos, de maneira similiar à estrutura de referência circulante da prática científica descrita por Latour (2011). Por meio destas premissas, Choy mostra como tanto os golfinhos cor-de-rosa, que tornaram-se especificados e diferenciados com relação a golfinhos de outros lugares do mundo, quanto as práticas dos vilarejos dos pescadores tradicionais, convertaram-se em importantes práticas singulares a Hong Kong. A ameaça a cada um destes atores, transformados agora em sujeitos de risco, são postas como ameaças aos valores ecológicos e à memória nostálgica do tempo e do espaço de Hong Kong. A nostalgia, ressalta o autor, não se refere apenas a um passado idílico dos pescadores, mas a uma posição de direito à coexistência da vida em relação ao presente e a um futuro distópico e ameaçador.
Nas dezenove páginas que preenchem o terceiro capítulo, Choy apresenta primeiramente o encontro multiespécies entre duas pesquisadoras botânicas e algumas espécies de orquídeas para, em seguida, desdobrar novamente sobre o processo de diferenciação e especiação. Para isso, ele aborda como conhecimento botânicos foram mobilizados para analisar a diferenciação e emergência de novas espécies de orquídea. O interessante é que a denominação das duas espécies pesquisadas, a Spiranthes hongkongensis e a Manniella hongkongensis, diferenciaram-se em relação a outras denominações por associar-se a questões geográficas em detrimento de nomes pessoais, como ocorre frequentemente com outras espécies. A espécie batizada de Spiranthes hongkongensis possuía características morfológicas e condições ambientais de crescimento semelhantes a outra espécie, a Spiranthes sinesis, mas apresentava também diferenças nestes mesmos aspectos.
Posteriormente, um geneticista populacional ficou interessando em saber se, enquanto espécies, estas duas espécies possuíam materiais genéticos distintos. O resultado produzido pelas técnicas de biologia molecular, além de corroborar a diferenciação genética entre as duas espécies de orquídea descritos pelo conhecimento das duas pesquisadoras botânicas, também provou que elas eram diretamente aparentadas. Neste mesmo capítulo, Choy também aponta os discursos sociológicos que demarcavam a criação da identidade e diferenciação de honconguês em oposição à identidade chinesa supostamente por marcadores de influência e riqueza e um sentimento de autonomia política e cultural.
Ambos os fatos, a diferenciação de espécies e a construção da identidade nacional, são conectados pela noção ecológica de vida específica que dá nome a este capítulo. A vida específica está atada tanto ao processo de construção de especificidades em risco como a especiação e o surgimento do discurso sociológico da autonomia cultural de Hong Kong. A identificação de uma nova espécie de orquídea serviu posteriormente como uma tentativa de, nas palavras do autor, “endemizar” a vida natural de Hong Kong, que desempenhou a distinção em relação à China por valores ecológicos.
Retomando discussões atreladas à ideia de tradução, o capítulo 4 apresenta a produção de expertises e contra-expertises na proposta de construção de um incinerador pelo Departamento de Proteção Ambiental, com a intenção de resolver a questão do lixo e gerar energia para a cidade. A formação de contra-expertises iniciou-se com as primeiras colaborações entre funcionários do Greenpeace e um vilarejo que seria afetado diretamente com a construção da usina, em razão da proximidade local. Os primeiros encontros envolveram a tradução de conhecimentos científicos, por meio das figuras dos peritos científicos do Greenpeace e do tradutor da língua nativa, para os possíveis efeitos das dioxinas produzidas pelo incinerador nas cadeias alimentares e nos corpos humanos.
Os encontros realizados não só permitiam a tradução e circulação de conhecimentos, como também possibilitavam as articulações entre conhecimentos situados no particular e no universal. No mesmo espaço de encontro estavam reunidos um químico americano, um ativista do Greepeace, um jornalista, um antropólogo cultural e um conjunto de residentes do vilarejo afetado. Assim, as traduções linguísticas e dos conhecimentos científicos realizados a um público não-especializado provocaram efeitos meta-discursivos específicos na mobilização política, possibilitando “encontros pragmáticos” (ALMEIDA, 2007) entre regimes ontológicos diametralmente distintos. As práticas de tradução foram, portanto, imprescindíveis para a articulação de conhecimentos, pois, além de facilitarem a comunicação e circulação de conhecimento entre grupos diferentes, mediaram as colaborações contingentes para a atuação política contra a construção do incinerador.
Um dos pontos mais interessantes levantados pelo autor neste capítulo específico é o enquadramento e emergência de categorias de “universalidade” e “particularidade” dentro de arenas ambientais controversas. O exemplo mais claro disso é o encontro realizado entre peritos do Greenpeace e autoridades oficiais de políticas ambientais de Hong Kong. Em um determinado momento, o diretor das instalações de resíduos de Hong Kong recusa os relatórios produzidos pela ONG, pois utilizavam dados das dioxinas provenientes da realidade dos Estados Unidos, supostamente universalizáveis, para comparar e explicar questões particulares da realidade honconguesa. Paradoxalmente, para validar os dados da realidade local de Hong Kong, o próprio diretor afirmou que deveria ser um consultor internacional capaz de descolonizar o ambientalismo honconguês e equilibrar a particularidade e a universalidade. Por essas razões, Choy afirma que a crítica e o questionamento da universalidade, uma pauta originalmente provinda dos estudos e sujeitos pós-coloniais para denunciar as configurações do poder universalizante, foram levados a cabo pelo Estado, que exigiu a adequabilidade os dados ambientais às questões locais.
As trajetórias de dois profissionais atuantes no ambientalismo, ou mais precisamente o modo como eles tornaram-se “conscientes” das questões práticas envolvendo o meio ambiente, tomam o foco do capítulo 5. As “vocações terrenas” destes sujeitos transladaram por situações e lugares claramente distintos, mas foram justapostas por uma causa comum: a defesa de cosmopolitismos ambientais. Os relatos dos ambientalistas apresentados pelo autor se incorporam explicitamente numa dimensão afetiva compartilhada de experiências e encontros envolvendo comidas, trilhas de caiaque, práticas de escalada e reuniões de trabalho. As situações são marcadas por relações que os interlocutores abarcaram com os espaços habitados e as mudanças de perspectivas ocorridas pelo deslocamento a Hong Kong.
O primeiro entrevistado, Rupert, se mudou com seus pais de Vancouver para Hong Kong em 1993. Antes de começar a trabalhar diretamente como arrecadador de fundos para o Greenpeace, Rubert trabalhava para uma família de amigos, vendendo computadores. Já William, nativo de Hong Kong, realizou sua graduação como engenheiro civil no Reino Unido, mas acabou se mudando para trabalhar como consultor ambiental numa empresa multinacional na sua cidade natal. Diferentemente de Rupert, William não teve, em sua formação como engenheiro e como cidadão na Inglaterra, contato direto com questões associadas à sustentabilidade, estilo de vida ecológica e ativismo ambiental. A tomada de consciência da “preocupação ambiental” e a própria atuação como engenheiro ambiental somente surgiu quando William foi fazer seu mestrado em gestão de água na Austrália e teve contato com o movimento ecológico emergente na época, deixando explícito em seu discurso o privilégio incorporado a esta experiência. Desde então, William atuou para a incorporação de “questões socioculturais” nas arenas de consultoria para o planejamento e desenvolvimento de políticas públicas ambientais.
O que há de comum em tais relatos é a mediação da experiência de habitar Hong Kong pelas lentes das diferentes organizações em que ambos trabalharam, seja pela empresa de consultoria internacional seja pela ONG. A ocupação de Rupert com o Greenpeace ou de William com a empresa de consultoria, contudo, não se destacaram somente pela atuação de forma harmônica e apaixonada com os pares, mas também foram cerceadas por conflitos envolvendo colegas próximos e o mundo externo às organizações. As similaridades também evocam os contrastes experienciados acerca dos estilos de vida e do modo como a “consciência ambiental” emergiu em tais práticas em comparação com os diversos países vivenciados.
Por fim, o capítulo que encerra o livro aborda o processo de substanciação do ar e como ele é, segundo Choy, essencial para compreender e experenciar a vida em Hong Kong, relatando o impacto sobre a saúde das pessoas, os dados científicos mensurando a qualidade do ar e as mediações políticas e mercantis envolvidas. O esforço etnográfico de agir analiticamente nesta realidade, de modo a experienciar o cotidiano da má qualidade do ar de Hong Kong, fez com que o autor procurasse ignorar o incômodo que passava pela sua garganta a todo instante nas áreas mais movimentadas da cidade.
Apesar da célebre e recorrente citação metafórica de Marx em relação ao ar como o resultado das contradições das relações e formas da sociedade burguesa diante de um mundo sólido que progressivamente se desmancha, Choy aponta que o ar, enquanto substância presente em todo lugar, ainda não é levado a sério na teoria social, mesmo que seja constantemente mobilizado por ativistas. Embora não seja sólido como outras materialidades, o ar está para além de um universalismo ou um particularismo, sendo orientado para uma multiplicidade de entrelaçamento de eventos, discursos e práticas.
A fim de dar conta da substanciação do ar, Choy analisou um conjunto heterogêneo de práticas que tornam o ar difuso em algo substancializado. Dessa maneira, ele verificou como o ar aparece como uma preocupação médica local e global em relação ao número de mortes por causas respiratórias, como emerge nos engajamentos corporais dos “respiradores”, como engloba um arranjo de diferença e como se torna um índice mensurável e global de bem-estar, risco e habitabilidade. Da mesma forma que o ar, a estrutura deste capítulo foi propositalmente escrita de forma difusa, justapondo estas quatro categorizações por relatos parciais que se conectam entre si.
Quando o ar se torna uma substância, pelas diversas práticas descritas no capítulo, ele aparece como um indicador de perigo constante e difuso no espaço. Porém, ao mesmo tempo em que o ar atravessa as barreiras previamente constituídas, ele também é utilizado para a demarcação de fronteiras que reforçam as distinções de classe, raça e nacionalidade nos lugares. Assim, Choy, em discussão com alguns autores da literatura pós-marxista, coloca o ar tanto como condição quanto resultado da ação do capital, entrelaçando todas as relações sociais e situando as particularidades e universalidades.
Apesar da inovação da forma estilística, em determinados momentos a leitura do livro acaba se tornando trabalhosa e repetitiva, deixando os leitores confusos acerca das relações de um mesmo capítulo. Esta avaliação também pode ser colocada na forma como são conectadas parcialmente as notas etnográficas das situações presenciadas pelo autor que antecedem os conteúdos analíticos dos capítulos. Outro problema associado à escrita do livro se dimensiona no uso do presente etnográfico em certos momentos do texto como estratégia persuasiva de narrar as histórias de produção da singularidade.
Ressalta-se, entretanto, a inovação do livro em situar as controvérsias permeadas sobre uma multiplicidade de escalas, atores e práticas articuladas, permitindo uma descrição etnográfica de um quadro geral e particular do ambientalismo honconguês e os esforços empreendidos para a produção da diferença situada entre o particular e o universal. O autor consegue deixar isto claro pelo modo como conduziu a etnografia, posicionando-se em todos os episódios narrados e nas relações produzidas com os lugares, as organizações e principalmente com os interlocutores.
A leitura do livro é recomendada não apenas para aqueles que já estão acostumados com a literatura dos estudos sociais de ciência e tecnologia, mas para todos os pesquisadores que estão direta ou indiretamente envolvidos com as questões de mudanças climáticas e catástrofes ambientais.
Bibliografia
ALMEIDA, Mauro. Caipora e outros conflitos ontológicos. R@U Revista de Antropologia da UFSCar, v. 5, n. 1, p. 7-28, jan./jun. 2013.
LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
Recebido em: 28/02/2019
Aceito em: 28/03/2019
[1] Mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: felipeperegrina@gmail.com
A emergência da ecologia das práticas
CHOY, Timothy. Ecologies of Comparision: an ethnography of endangerment in Hong Kong. Durham: Duke University Press, 2011. 224p.
PUGA, Felipe Peregrina. A emergência da ecologia das práticas. ClimaCom – Fabulações Miceliais [online], Campinas, ano 6, n.14, abr. 2019. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=10905