Por Tainá de Luccas
Enquanto o desafio das mudanças climáticas cria demandas para a participação de governos e instituições internacionais nas formulações de medidas de mitigação e adaptação a níveis globais, crescem as discussões em torno da necessidade de se buscar iniciativas locais e integrações com outros tipos de conhecimentos acerca do tema. Na semana de setembro em que aconteceu a 69ª sessão da Assembleia Geral da ONU e a Cúpula do Clima, foi realizada também em Nova Iorque, nos Estados Unidos, a primeira Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas, que reuniu mais de mil delegados indígenas e não indígenas para pensar sobre a crise atual e debater questões como os direitos e melhorias nas condições de vida dos povos indígenas no mundo.
O evento culminou com o lançamento de um documento final sobre a Conferência,composto por 40 itens que tratam dos compromissos e diretrizes a serem seguidas em relação à questão indígena. Entre eles, o esforço de fortalecer os direitos desses povos à terra, o apoio às atividades de subsistência e o respeito aos conhecimentos e práticas culturais. O documento resgata a contribuição dos coletivos indígenas para a conservação e o uso equilibrado dos recursos naturais.
Saturação de pensamentos
Entre os tópicos que propõe, o item 36 aponta que os conhecimentos dos povos indígenas para a conservação do meio ambiente devem ser considerados na definição de estratégias nacionais e internacionais para mitigar e adaptar aos efeitos das mudanças climáticas. Estas reflexões também permearam o Colóquio Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra, realizado no Rio de Janeiro na semana que antecedeu a Assembleia Geral da ONU.
Para a socióloga e ativista indígena Silvia Rivera Cusicanqui, professora emérita da Universidad Mayor de San Andrès (UMSA), em La Paz, e palestrante do Colóquio, a crise ecológica contemporânea evidencia uma saturação de pensamentos frente à homogeneização dos discursos vigentes: “junto à acidificação dos oceanos causada pelas mudanças climáticas, há um processo de acidificação da atmosfera discursiva que está em curso, uma acidificação de nossas ideias”, afirma.
Cusicanqui propõe o conceito de microclimas para pensar sobre os desafios atuais, mais próximos às ações de pequenos coletivos, grupos indígenas, urbanos, rurais. De acordo com ela, esses movimentos trazem outras perspectivas de conhecimentos e nos impulsionam a sair da crise por meio de outros pensamentos, criações e possibilidades de habitar o mundo. “Os microclimas dependem de como você vive, não há monitoramento de GPS de onde estão esses microclimas, é preciso fazê-lo acontecer”, ressaltou a ativista.
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos organizadores do colóquio, argumentou que a crise ambiental e climática é uma crise “civilizatória”, que nos faz atentar para um possível fim do mundo. Segundo ele, um mundo que estaria em colapso em decorrência de um projeto de civilização em ruínas, no qual é preciso repensar nossa forma de viver, buscando outras possibilidades de existência nesta Terra.
“Os índios são especialistas em fim do mundo, pois o mundo dos índios, por vezes, já acabou e precisou ser adaptado, reinventado”, observa Viveiros de Castro. De acordo com ele, os índios sobreviveram mantendo uma relação essencial com a terra, constitutiva do seu modo de vida, da concepção de mundo e seus sistemas culturais, religiosos, parentais e político. Apesar de perderem por volta de 95% de sua população com a chegada dos brancos e, consequentemente, epidemias, conflitos e escravidão, os indígenas brasileiros, ainda assim, conseguiram sobreviver em um mundo que não era mais deles.
Mundo flutuante
Para Carlos Mondragon, antropólogo do Colégio Del México – que no colóquio, apresentou a pesquisa que desenvolve com os povos indígenas das ilhas do pacífico sul (Las Islas Torres) -, o conhecimento indígena deve ser concebido como possibilidade de troca, subversão e construção de diferentes pontos de vistas sobre a crise climática mundial.
A região que estuda é apontada pelos pesquisadores climáticos com um dos locais que serão mais afetados pelas consequências das mudanças climáticas. Essas ilhas convivem constantemente com problemas relacionados à interferência na dinâmica dos ciclos hídricos, a acidificação dos oceanos, o branqueamento dos corais e o risco de desaparecimento em decorrência da elevação do nível do mar.
Nessas pequenas ilhas localizadas em uma região de encontro de placas tectônicas e intensa atividade vulcânica, além da preocupação com terremotos e erupções, suas populações também enfrentam, não raramente, ciclones, maremotos e furacões. Apesar da vulnerabilidade a tantas intempéries climáticas, a população local tem mostrado boa capacidade de adaptação frente a esses fenômenos extremos, baseada na prática da agricultura de subsistência, na pesca e no intercâmbio com outras ilhas vizinhas.
Mondragon aborda a relação dinâmica que os povos de Las Islas Torres (Vanuatu) têm com a terra. As ilhas em que vivem “flutuam” sobre o mar. Para eles, a vida se desenvolve como se o mundo em que habitam fosse uma espécie de canoa sobre o oceano, que se mantém em movimento seguindo o balanço do mar. Os territórios instáveis e flutuantes compõem relações complexas que passam por um outro entendimento de mundo e de possibilidades de habitá-lo, que é diferente, por exemplo, de uma concepção de um mundo fixo baseado em infraestruturas estáticas e grandes construções.
E é nesse mundo no qual os territórios são instáveis e flutuam, que podemos encontrar novas perspectivas sobre vida e existência, espaço, ambiente e, especificamente, sobre as questões climáticas. Um outro entendimento de mundo e de possibilidades de habitá-lo.