A boca do mundo: feitiçarias periféricas | Alessandra Tavares e Dandara Kuntê

Título | A boca do mundo: feitiçarias periféricas

O que a boca é? Pode ser grande, aquela que engole tudo? Pode ser aquilo que coloca para fora o que está engasgado? Uma boca antropofágica? Não! Aqui a boca do mundo não traz estes simbolismos usuais e corriqueiros. Entre gritos e silêncios… lá está ela: a boca. Por vezes, seca, outras, molhada. Mas, ela não é apenas o órgão. Ela fala e também cala, canta, grita, beija, come, vomita, cospe, lambe, baba, chupa, respira ofegante. Nestes inúmeros sentidos o corpo é atravessado e afetado. A minha boca ama, a minha boca faz amor. A boca do mundo é aquele hiato/brecha em que se produz sabotagem. É bactéria de corrói, destrói, invisível. O que existe no intervalo entre o espaço/tempo da rotina de mulheres negras trabalhadoras das periferias? Eu te respondo: magia. A boca responde: arte. Nós dizemos: Laroyê! A trama é feitiço – manualidades que produz: comida, limpeza, cuidado, banhos e dengos. Ao mesmo tempo, é astúcia intelectual e política: capoeira. Entre ciladas, arapucas, blefes e artimanhas: o feminino negro. Os emaranhados dos enredos de mulheres negras comuns. Aqui vemos as “doidinhas da rua” que insistem em produzir cidade e sanidade no meio da racionalidade cruel da vida urbana. “Eu não sou doida! Eu sou Padilha das encruzilhadas!”. Levaram mais uma. Como Estamira, Bispo do Rosário, Estela do Patrocínio e tantas outras que desconheço, mas sinto. A sanidade de Estamira que des-silencia apontando os “espertos (só que) ao contrário” e inaugurando uma nova ordem: Não tem inocente, não tem! A inocência é um tipo de privilégio que gosta das pessoas de pele lisa.

Em 2012, os descendentes de povos maias em Chiapas anunciam: “Ouviu? É o som do mundo de vocês desmoronando e do nosso se reerguendo”. Viver a queda do céu cansa, o mundo desmorona devagar e não sei onde encostar. Na rua de baixo, morreram três. Aqueles nasceram para não vingar e marcados para não existir. Nas palavras de Conceição Evaristo, “A certidão de óbito, os antigos sabem, veio lavrada desde os negreiros”. Todo dia antes de dormir eu rezo, peço para vingar e ser velha. Laroyê me acompanha nos meus caminhos!
Lima Barreto escreveu em seu diário: “Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões; sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e responsabilidades. Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande humanidade de que quero fazer parte.” Quem lhe fará justiça? Quem nos fará justiça? Fomos berberes e bantus. Estivemos do outro lado e estamos aqui. Transformar e transgredir tudo: o feminino, negro, insano, favelado e inverter. Essa é a boca do mundo! Já nesse chão de brasis desde 1560. A boca do mundo não para: tem fome. E a fome é amarela, salve Carolina Maria de Jesus. Somos nós o começo, o meio e o começo, gritou lá do quilombo Nego Bispo. Somos quilombo, respondeu Beatriz do Nascimento. Tudo bobagem, disse Dona Mulambo. Somos pretos, vocês estão vivos e ainda acham pouco! A boca do mundo é falatório, a boca do mundo é a imensidão poética do buraco negro, a boca do mundo é a qualidade dos temperos e especiarias na feira e na rua. A boca do mundo que diz forte e alto: “Eu não trabalho aqui”. E causa indigestão em meio ao jantar: “Por que mataram meu filho?”.

Revanche
Vingança
Insubmissa

Indisciplinável

Gargalha, samba, goza e fala alta: “mais uma taça de champanhe, seu moço!”
“Só tem cerveja!”
“Traz que serve.”

Aqui não é exu!
Agô!
Mas aqui não é exu!
“É pombo-giras, seu moço. Tá com medo, menina? Tenha medo não!”
Aqui assumimos nossa própria fala, como já dizia a velha Lélia:
O lixo vai falar, e numa boa: Esse é o som do mundo de vocês desmoronando e do nosso
reerguendo.

Arreda homem que aí vem mulher…
Arreda homem que aí vem mulher…
Arreda homem que aí vem mulher…


| FICHA TÉCNICA |

Título | A boca do mundo: feitiçarias periféricas
Autoras | Alessandra Tavares e Dandara Kuntê
País de produção | Brasil
Ano | 2024
Projeto | Versão adaptada do texto originalmente produzido pelas autoras para a performance do coletivo feminista A Boca do Mundo: entre tramas e feitiçarias periféricas, do Coletiva
Periferia Segue Sangrando, zona sul de São Paulo das quais as autoras são parte.

 

TAVARES, Alessandra. KUNTÊ, Dandara. A boca do mundo: feitiçarias periféricas. ClimaCom – Exu: arte, epistemologia e método. [online], Campinas, ano 12, n. 29 dez. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/a-boca-do-mundo/

SEÇÃO ARTE | EXU: ARTE, EPISTEMOLOGIA E MÉTODO | Ano 12, n. 29, 2025

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