Devir-descarte: habitar transbordamentos
Tamiris Vaz[1]
Algo excede, escapa, vaza, sobra, fica suspenso pela não necessidade de uso. O excesso foge às expectativas, não se encaixa aos recipientes projetados, aos itinerários demarcados. É preciso, então, traçar novos caminhos, inventar novas terras onde o deslocamento seja possível, ou abrir brechas, criar desvios, reorganizar os terrenos de modo a comportar o que não se comporta.
A proposta levada por mim para o Seminário Conexões parte de uma pesquisa de doutorado em Arte e Cultura Visual concluída no início de 2017. Nela foram investigados caminhos educativos possíveis pelo encontro com visualidades de uma cidade, explorando narrativas que trataram de aprendizagens sobre e com a cidade, e também sobre e com a prática de pesquisar. Inúmeras narrativas ditas e ‘interditas’ ao longo dos anos de investigação seguem me fazendo pensar sobre os múltiplos discursos possíveis, postos e sobrepostos em acontecimentos banais flagrados por meus ouvidos e minha câmera fotográfica.
A imagem que movimenta esta proposta emerge de alguns desses transbordamentos narrativos. É uma fotografia de excessos e é também excesso em si mesma, ao passo que, após a conclusão da tese, seguiu se espalhando em pensamentos que não couberam em um percurso de doutorado. É literalmente de um tapete e da sujeira jogada para debaixo dele que venho tratar aqui, ou de algo que, tendo um dia recebido o nome de tapete, adquiriu a função de se estender sobre superfícies e de ser pisado por pés humanos ou mobiliários. Flagrado por minha câmera fotográfica se elevando, se dobrando sobre outros objetos também descartados, resta nele apenas uma semelhança a algo que um dia foi um tapete, pois se abriu em outras possibilidades, virou esconderijo, compôs um universo visual estranho e aparentemente inútil. Expôs, em plena rua, uma nova terra com elementos nada novos. Excessos a se proliferar.
Em diálogo com as ‘filosofias da diferença’, os excessos não são aqui classificados como opostos ao ‘conforme’, não são sobras de algo, mas potências em constante diferenciação. Como destacado por Gallo (2012), trata-se de uma diferença que, ao contrário das filosofias de representação, não constrói suas ideias no âmbito da unidade. Em vez disso, se interessa pelo movimento em vez da comparação, desenvolvendo um pensamento que abala a ideia moderna de sujeito centrado em si mesmo, para pensar o outro em suas diferenças. Excede o que? Excede a si mesmo. Ponto. São devires que, como explicam Deleuze e Guattari (1997), não podem ser confundidos com uma associação de semelhanças graduadas – a se assemelha a b; b se assemelha a c… – ou uma similaridade entre diferentes estruturas – o homem é para outro homem o que o lobo é para o cordeiro –, pois tanto a primeira analogia, de série, quanto a segunda, de estrutura, remeteriam à mimese. O devir, segundo eles, não imita nem é aquele que ele devém. Desse modo, podemos entender que não há descendência, que entrar em devires com excessos na cidade não implica na comparação com aquilo que não excede, mas em alianças pelas quais não assimilamos a cidade enquanto saber. O que fazemos é nos movimentar com ela, rumo à criação de saberes moventes.
Entre diversos devires movimentados em minha investigação de doutorado, o devir-descarte trazido por essa imagem me levou a pensar sobre elementos que, ao mesmo tempo em que pertencem à cidade, incomodam, escapam às lógicas de planejamento do uso dos espaços, provocam desconfortos e abrem brechas para habitantes clandestinos. Esse devir, normalmente negado, recusado pelos moradores de uma cidade, se movimenta pelo anonimato. Ninguém assume a autoria dos amontoados de lixos, entulhos, móveis velhos que aparecem da noite para o dia em qualquer canto do bairro. São descartes que, embora totalmente visíveis, tendem a ser ignorados, negados, pois já não servem para mais nada além de produzir mal estar. É a sujeira jogada para debaixo do tapete, mas que, vez ou outra, acaba sendo exposta e expõe a efemeridade de nossas certezas.
Devires-descarte que abandonam o ‘ser’, perdem uma utilidade até então segura e única. Não servem para nada. Servem para qualquer coisa. Tornam-se múltiplos, imprevisíveis, desacomodando a ordem. Springgay (2008) escreve que a pesquisa, a escrita e a pedagogia tradicionalmente são práticas que visam conter e regular o excesso. Segundo ela, os excessos podem lidar tanto com o desperdício, a sobra, quanto com invisibilidades e experiências sublimes – tudo depende das relações com eles estabelecidas. A experiência de exceder nos provoca a dizer algo que ainda não foi dito ou dizer de outros modos aquilo que, por excesso, se calou.
A partir de uma imagem flagrada em uma rua qualquer, heterotopias de desvio na cidade e na pesquisa em educação instigam outros modos de ver e dizer sobre a vida urbana. Foucault (2001) chama de “heterotopias” espaços em desacordo com as normas produtivas da sociedade. Ao mesmo tempo em que são lugares intimamente ligados à realidade de uma cidade, elas sobrepõem territórios que por si só seriam incompatíveis. Quando sobre uma calçada de cimento é criado um sítio que permite a proliferação de pequenas plantas, animais e sabe-se lá quais outras espécies visíveis ou invisíveis, surge uma heterotopia. Quando esse mesmo espaço nos permite pensar outros modos de habitação, nos provoca, nos obriga a olhar com mais atenção, a desviar, movimenta nossos pensamentos para outras formas de vida, surge a potência de habitação de uma nova terra no pensamento urbano.
Um tapete, alguns galhos secos, pranchas de armários e elementos que já perderam seus nomes próprios abrigam vidas transbordadas da umidade e proteção proporcionadas por essa combinação improvável. Quando tornado fotografia, nos provoca a curiosidade de não encontrar um ângulo de visão que permita ver o que há debaixo dele. É preciso adentrar não mais o lugar em si, mas as incertezas de uma imagem impressa que segue a se deslocar.
Das Origens
Imagem 1: devir-descarte
Fonte: acervo da pesquisadora
Ao chegar no grupo de ‘imediações aberrantes’[2] junto ao Seminário Conexões Deleuze 2017, fui levada a uma situação de continuidade desses pensamentos. É como se a fotografia que levei tivesse se desprendido do papel impresso e se espalhado pela sala dentro da qual nos encontrávamos. Fragmentos de textos, objetos cotidianos despidos de suas funções originais compunham convites à manipulação. Da mesma forma que quando me deparei pela primeira vez com aquele tapete, foi inevitável a curiosidade de saber de onde vieram todos aqueles elementos.Que pés terão pisado sobre esse tapete? Que móveis eram compostos por essas pranchas? Para quê foram concebidas? O que abrigavam? Quem as descartou? Por que estão ali? Tendemos a buscar explicações para os acontecimentos atuais em memórias que não nos pertencem. Queremos entender a origem, como se houvesse um ponto neutro de partida capaz de esclarecer todas as nossas dúvidas, de justificar todo o percurso até o ponto aonde chegamos. Acreditamos que ao obter essas respostas acharemos o sentido da vida, as explicações para todas as nossas indagações, até o momento em que percebemos que cada percurso é único (em relação aos outros) e múltiplo (em relação a si mesmo) e exige que reconheçamos que nosso olhar e nossos repertórios são parte compositiva das possíveis verdades produzidas sobre os acontecimentos vividos.
Tijolos, papéis, cadeiras, objetos compõem paredes, mobiliários e atividades de qualquer sala de aula, mas não da maneira como foram dispostos, não deslocados de suas funções utilitárias, não como descartes resgatados e expostos em suas desrazões de uso.
Se fôssemos à busca de supostas origens daqueles elementos não precisaríamos ir muito longe: restos de alguma construção (tijolos, areia, luvas,…), documentos descartados através de uma máquina de picar papel, fragmentos de textos submetidos ao evento pelos participantes, fotografias de elementos da natureza. No entanto, essas informações pouco influenciariam no impacto da presença deles durante o encontro. Não foi o passado individual de cada elemento que importou naquele momento, mas suas potências de deslocamento, de reordenamento temporário e fugidio, exigindo atenção ao presente para que algo se atualizasse pelas fricções entre elementos heterogêneos.
O desafio colocado ali estava em aprender com o outro aquilo que ele não nos ensinou (GALLO, 2012), voltando-se ao aprender inventivo (encontro) mais do que ao aprender ensinado (transmissão). Não havendo muito o que fazer com as funções anteriores dos elementos ali expostos, seria preciso adotar uma postura de aprender não reprodutiva do já dito, mas exploradora de potencialidades singulares e transversais com o que estava disposto. Somei a esse território minha imagem (e os pensamentos disparados a partir dela) e passei aos perigos dessa investidura.
Dos Perigos
Adentrar um novo território, ainda não pavimentado, ainda não nomeado e institucionalizado, implica riscos. Os galhos que protegem possuem espinhos que podem nos machucar, a umidade que permite a proliferação de plantas pode se tornar foco de mosquitos e nos contaminar com doenças. Aranhas, escorpiões, plantas venenosas… avançar para uma terra estranha exige coragem para enfrentar os riscos do desconhecido. Nesse caso, vale se prevenir, calçar botas longas, mangas compridas, vacinar-se, escolher as ferramentas adequadas e se jogar nas fendas escuras do aprender.
Poderia ter levado para esse evento o resultado de minha pesquisa de doutorado e apresentado alguns resultados obtidos ao final desse percurso. No entanto, minha escolha foi de levar um transbordamento, uma imagem ainda pouco explorada, quase como um resíduo de uma obra onde nem toda a matéria-prima pôde ser aproveitada. Uma imagem como provocação, como pergunta e não como resultado de uma investigação. Imagem ferramenta a partir da qual me lancei em um território em construção, transformado a cada momento por objetos, falas e movimentos das pessoas que ali se encontravam. Ao falar sobre essa fotografia, ao lançar perguntas, rasgá-la e oferecer algumas outras ferramentas exploratórias como uma lupa, um binóculo, um barbante e uma tesoura, minhas narrativas foram se tornando parte do que ali se construía. Aos poucos ele deixava de ser um território estranho. Devagar, me despia do hábito de querer apresentar ao outros meu território investigativo individual. Uma nova terra poderia ser gerada na cumplicidade coletiva do momento.
Sentei-me no chão, aguardei um momento propício e li manipulando as ferramentas que dispunha. Minhas palavras já não cabiam apenas nos limites da imagem levada, elas já estavam, literalmente, espalhadas pela sala em pequenos papéis impressos, bem como nos textos dos outros participantes. Estavam também naqueles objetos, alguns já quebrados, desorganizados, sujando o espaço e nossos pensamentos. Uma sujeira que, de onde vinha, era inútil e descartável, e que precisou ser deslocada para um novo lugar que pudesse lhe possibilitar um porvir. Pardo (2010) nos provoca a pensar sobre o que fazer quando para essa sujeira que busca um porvir já não há esperança de reciclagem ou regeneração. De uma maneira um tanto pessimista, o autor enxerga a sociedade atual imersa em um fenômeno degradativo alimentado pela descrença em um equilíbrio ambiental e social, passando a aceitar o lixo (basura) como inerente ao seu cotidiano. Empregos-lixo, famílias-lixo, cultura-lixo comporiam uma globalização esvaziada de identidade. O lixo, para ele, seria a classificação de práticas genéricas que não se ocupam em deixar legados. Uma ‘coisidade’ fluida, sem qualidade.
A partir do medo demonstrado por esse autor com relação à fluidez contemporânea podemos constatar o quanto o descarte carrega consigo a potência provocativa de ser impreciso e efêmero. Em vez de nos chocarmos com a impossibilidade de retorno a uma tradição até então intocada, um caminho possível é o de nos aproveitarmos dessa provocação para arriscar a criação de caminhos singulares, mais criadores que recuperadores ou descartadores, experimentando combinações inesperadas.
O risco de invasão de territórios alheios nas experimentações compartilhadas durante o seminário era superado com pedidos de licença, palavras medidas, exercícios cuidadosos entre silêncios, interrupções e continuidades. Sem estipular um tempo de apresentação nem regras de interação, foi necessário tatear possibilidades, observar a reação do outro, escolher o tempo propício para encaixar um ruído, um movimento, um conceito pesquisado. O ritmo foi quebrado com a chegada de uma pessoa que não acompanhou os primeiros passos. Ela trouxe outro tom, fez perguntas formais e um novo ritmo passou a se construir, nos levando a ampliar falas anteriores, desfazendo a linearidade tomada no início dos compartilhamentos. Ellsworth (2012) fala de um processo de aprendizagem a partir das relações entre nossos corpos, os lugares e os outros – um processo no qual podemos nos comprometer corporal e espacialmente com experiências sem uma função pedagógica implícita. Podemos entender isso como a criação desses ritmos, expostos à instabilidade de não saber exatamente o que há para aprender, pois não há um conhecimento pronto a ser repassado, mas uma construção colaborativa e única.
Trocar apresentações por presenças implica riscos. Haveria lógica? Teríamos repertório? Chegaríamos a resultados seguros? Em caso negativo, como chegaríamos a inventar novas lógicas, novos repertórios e suportar a instabilidade de resultados provisórios?
Tal qual a imagem do tapete sobre galhos na calçada, lidávamos com habitantes incertos, utilidades questionáveis, perigos de uma imediação. Essas imprevisibilidades características das aprendizagens ali ocorridas exigiram de nós aprendizes uma postura ativa para que o encontro acontecesse. Nenhum produto pronto foi exposto. O que levamos foram ferramentas exploratórias. Ferramentas estas dadas tanto por objetos quanto por nossos corpos e desejos. O risco de erro estaria em esperar por respostas já projetadas a priori, buscando resultados específicos sem permitir-se envolver-se em novos processos.
Talvez seja esse um grave erro da educação tradicional, confundir aprendizagem com reprodução, e querer aprender o que já se sabe. Foi preciso ocupar não como preenchimento, mas como criação de territórios habitáveis.
Das Ocupações
Imagem 2: fotografia integrada às ‘imediações às imediações aberrantes’
Fonte: acervo da equipe
Plantas, animais, seres que também excedem, que não são domesticados. Onde encontramos abrigos para nossos pensamentos não domesticados? Aqueles pensamentos que nascem fora das normas da ABNT, que não se encaixam em metodologias já existentes, que não encontram passagem nos itinerários já traçados?
Muitas vezes eles nascem e se escondem ou se disfarçam. Damos-lhes nomes para que sejam aceitos, mesmo que se tratem de nomes provisórios, de lugares temporários. São abrigos não muito seguros, que a qualquer momento podem ser desmontados por ações de despejo. O que fica são as marcas da experiência vivida em territórios nômades.
Buscamos, então, outros lugares para reativar essa vontade de movimento. É preciso abrir brechas, cavar vazios que permitam ao excesso ser algo que ainda não é, viajar, encarar situações novas que exigem de nós atenção para coisas que, pelo hábito, já se faziam invisíveis e automatizadas. Ao escapar de uma tese, por descarte, transbordamento ou desejo de continuidade, uma imagem ocupa novas visibilidades, interage com novos pensamentos e encontra novas combinações.
A imagem levada por mim ocupa, depois de rasgada, um pote de vidro que reflete em suas superfícies partes distorcidas dos acontecimentos ao seu redor. Rolando pelo chão, ela se torna novamente tridimensional e ainda mais indefinida. O vidro a protege e, ao mesmo tempo, a submete ao movimento instável. Ela compõe território junto ao silêncio de uma meditação, ao susto de um chute e tijolos quebrados, ao som contínuo do desenrolar de um rolo de barbante que amarra elementos distintos. Ocupa, com passos e vozes, territórios temporários sem com isso despir a potência do indeterminado. Sua sutil presença impressa, dentro de um vidro, me conecta ao pensamento sobre o ‘comum’ e o ‘estranho’ ou ainda, sobre nossa capacidade de produzir estranhamentos sobre o comum, extraindo novas possibilidades dele. A instabilidade do vidro rolando pelo chão a qualquer movimento próximo a ele faz com que a imagem nunca seja a mesma. Assim somos nós em nossas tentativas de constituir um território fértil ao longo do encontro, explorando a potência de cada material ao ser empilhado, amarrado, quebrado ou apenas observado por um ângulo diferente.
Uma imagem fotografada em outra cidade, outro contexto, explorada e transbordada de uma investigação acadêmica, se torna parte de uma conversa entre corpos, objetos e conceitos. Ela não é apenas uma visitante, não é algo que saiu de um território e se colocou em outro. Ela compõe intervalos de força, expressividades de ritmo composto coletivamente (DELEUZE; GUATTARI, 1997). É constituidora, portanto, do próprio território que se diferencia por meio do encontro, gerando conexões que jamais existiriam da mesma maneira na ausência de seus pensamentos. Ocupa-se o movimento.
Das invenções
Inventar não é partir do zero, de algo totalmente novo e estranho. Inventar é recombinar, tramar novas possibilidades a partir do mesmo. Quando algo excede podemos descartar, considerar que seu uso atingiu o limite, ou podemos gerar novos mundos com os mesmos elementos, olhar por outros ângulos, duvidar do óbvio, descascar sua superfície para gerar novas camadas de saber.
Criar uma nova terra para a pesquisa em educação não é abandonar tudo o que já foi produzido, negar todos os poderes e saberes que envolvem ensinar e aprender. Trata-se mais de explorar outros atalhos, inventar desvios que nos permitam ver diferente.
O que pode um tapete quando elevado sobre galhos em uma calçada? O que pode uma planta quando brotada das rachaduras do concreto? O que pode a cidade quando pensada enquanto pesquisa? O que pode a pesquisa quando produzida de banalidades cotidianas? Enfim, que aprendizagens deixamos brotar dos transbordamentos de nossos percursos?
Não se trata apenas de uma imagem ou de um evento acadêmico, mas da criação de uma postura investigativa exposta a riscos e atenta às imprevisibilidades. Mais do que preparar-se para o imprevisível, de modo a amenizar possíveis erros, essa postura deseja o inesperado, acredita no desviante como um espaço potente, desde que trabalhemos para isso.
Ellsworth (2012) afirma que nenhuma narrativa pode antecipar o trabalho do conhecimento, que é inteiramente da ordem da surpresa, do encontro com o novo. ‘Novo’, aqui, não se confunde com original, mas trata da produção de sentidos singulares para os saberes. Nunca os sabemos de antemão, mas precisamos estar preparados, atentos às possibilidades e aos encontros passíveis de produzir diferenças a partir de nossos olhares inventivos.
Pesquisar com imagens de um ponto de vista não representativo nos traz o desafio de mirar nas conexões presentes, atuando por contaminações e produzindo novos pensamentos a partir da experimentação. Sem nos despir dos referenciais, os tomamos como campo fértil, pois maleável, sujeito a interrogações, transferências e provocações. Eis um dos papeis sociais da arte.
Habitando novas terras
Que ferramentas podem ser necessárias para enfrentarmos os perigos de criar novos mundos? Quem ocupa esses territórios e por quanto tempo? Quais lugares cada um de nós percorre dentro dele? Quais nossas relações com seus tempos e espaços? Como abrir brechas para que esses novos mundos existam em nossos cotidianos atuais? A fotografia que levei para se integrar ao cenário do Seminário Conexões compôs com as experiências coletivas daquele grupo um tecido híbrido, intenso e inacabado. Empilhar e desempilhar objetos, quebrá-los, conectá-los, falar, calar, ouvir, caminhar, sentar no chão, falar sobre pesquisas anteriores e sobre presenças atuais fizeram com que aquela fotografia-descarte se agigantasse no encontro com desconhecidos dispostos a compartilhar vivências ao longo de um dia.
Desde os elementos heterogêneos que se colaram acidentalmente no sapato de uma participante até a areia que se espalhou na sala e fora dela e os objetos intencionalmente conectados por um barbante, foi possível perceber criações estéticas (na manipulação dos elementos), corpóreas (na postura dos participantes), narrativas (nas continuidades e descontinuidades dos diálogos), que geraram pensamentos sobre fazer pesquisa no mundo e com o mundo, entendendo as diferenças como aquilo que nos aproxima do ato criador, sem romantismo ou assepsia, mas com flexibilidade, desejo e coragem de não conter os vazamentos e acasos.
Ao final desta escrita não pretendo trazer afirmações ou resultados, mas algumas perguntas que nascem desses encontros e seguem transbordando para outros mundos criados pela combinação de descartes com objetos, ideias e repertórios, a fim de que novas regras, usos e possibilidades de habitação sigam mobilizando a ocupação dos territórios movediços da pesquisa e da vida. E, afinal, o que aprendemos de nós e do mundo pela exploração daquilo que transborda?
Bibliografia
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 54, 1997.
FOUCAULT, Michel. Outros espaços: heterotopias. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos – Vol. III. Trad. Inês A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 410-416.
GALLO, Silvio. As múltiplas dimensões do aprender… In anais do Congresso de Educação Básica: aprendizagem e currículo. Florianópolis: Unicamp, 2012. p.1-10.
PARDO, José Luis. Nunca fue tan hermosa la basura. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2010.
SPRINGGAY, Stephanie. Body Knowledge and Curriculum. Pedagogies of Touch in Youth and Visual Culture. New York: Peter Lang Publishing, 2008.
Aceito em: 15/03/2018
[1] Docente do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. Mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Email: tamirisvaz@gmail.com
[2] O Seminário Conexões Deleuze de 2017, ocorrido na Unicamp, teve como proposta de compartilhamento de pesquisas a composição de sessões chamadas de ‘Imediações Aberrantes’ onde os participantes eram convidados a compor experiências coletivas, deixando-se contaminar pelas pessoas e pelos espaços sem apresentar algo ensaiado e acabado.
Devir-descarte: habitar transbordamentos
RESUMO: A partir de uma fotografia, transbordada de uma investigação sobre aprendizagens inventivas e visualidades urbanas, venho traçar um breve itinerário de pensamentos e encontros com mundos habitados por excessos. Recombinando palavras, imagens, objetos e pensamentos heterogêneos, experimento as imprevisibilidades da ocupação e criação de novas terras junto a encontros dados na sétima edição do Seminário Conexões Deleuze, na Unicamp. Sem a busca frustrada por origens do saber, é criada uma postura investigativa exposta a riscos e atenta às imprevisibilidades, abrindo brechas para que novos mundos existam no cotidiano atual. Invisto, assim, na cartografia de percursos gerados a partir dos descartes que nos atravessaram e que atravessamos com imagens, inclusive as de pensamento. Este texto não traz o conteúdo apresentado em um seminário, mas acontecimentos transbordados entre pessoas e movimentos.
PALAVRAS-CHAVE: Devir-descarte. Excesso. Aprendizagens.
Becoming-discard: dwell overflows
ABSTRACT: Starting from a photograph that overflowed from an investigation of inventive learnings and urban visualities, I draw a brief itinerary of thoughts and encounters with worlds inhabited by excesses. Recombinating words, images, objects and heterogeneous thoughts, I experiment with the unpredictability of occupation and the creation of new lands together with meetings that are given in the seventh edition of the Seminário Conexões Deleuze at Unicamp. Without a frustrated search for the origins of knowledge, an investigative stance is created. It is exposed to risks and alert to unpredictability, and it opens gaps so that new worlds can exist in the current day-to-day life. I invest thus in the cartography of paths that are generated from the discards that have crossed us and which we have crossed, with images, including those of thought. This text does not bring content presented in a seminar, but overflown events between people and movements.
KEYWORDS: Become-discard. Excess. Learnings.
VAZ, Tamiris. Devir-descarte: habitar transbordamentos. ClimaCom [online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8992