“Ser e não ser. Eis a questão?”: nas dobras de línguas traídas, um pensar educação matemática
Diego de Matos Gondim[1]
Danilo Olímpio Gomes[2]
Este texto convida a uma prática acerca da lógica identitária do ser: ocuparemos o território da identidade no intuito de criar uma dobra, uma ruptura neste solo característico daquilo que é; um fora que permita o vislumbre de uma terra de novos possíveis, onde ser e não ser deixem de ocupar posições binárias em uma lógica existencial e se dissolvam em possibilidades outras de devir. Para tal, realizaremos atos, dissolvidos neles mesmos e sem começos nem fins: ora produziremos ocupações, ora operaremos passagens, nos lançando em um espaço caótico, onde o ser e também o não ser encontram-se com uma tragicidade do caos e são desterritorializados pelos movimentos de invenção e de produção de vidas – agenciamentos.
Sendo assim, operaremos, no mínimo, três traições: a primeira será do texto enviado ao VII Seminário Conexões Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e… “Ser e não ser. Eis a questão?”: (des)licenciaturas em Matemática; a segunda será de alguns educadores matemáticos, aqui nossos intercessores, buscando com eles rastros de uma terra de novos possíveis – seus textos serão traídos, e ela, a traição, será como uma espécie de funcionamento desses textos neste ensaio; e, por último, a terceira trará um exercício de criação de uma linha transversal entre uma traição e outra, a fim de produzir um pensar educação matemática junto ao que foi experimentado no grupo de trabalho do VII Seminário Conexões, Experimento: imediações de uma língua aberrante.
Entendemos que essa prática só pode funcionar estando aquele que escreve – e também aquele que lê – envolvidos por tantas linhas discursivas quanto forem possíveis, de forma que a densidade de cada parágrafo faça com que o leitor e o próprio parágrafo funcionem como nós de uma rede rizomática. E, sendo assim, para podermos mergulhar nas discussões que propomos, para que seja possível nos e vos deixar envolver por essas linhas, é necessário uma abertura, uma entrada pelo meio – em nosso caso, a Educação Matemática e o que possa ser pensado e refletido e concebido e… sobre as conexões destes dois termos semanticamente aglutinados, amplamente reconhecidos e operados em práticas discursivas educacionais, que o tomam como identidade do fazer e do pensar e do agir e do produzir e…
Se aqui exercitamos uma entrada na Cidade (Educação Matemática) produzida por Silva e Miarka (2017), há que se ter em vista que o fazemos para pensar as eDucAçÕeS MAteMátiCAs AefeTIvAs possíveis, como em Clareto e Miarka (2015), como passagens de movimentos em avessos, versos e anversos. Um dos objetivos é operar com uma diferença e não como o(a) diferente, como diz Silva (2002)[3], mas uma diferença como funcionamento.
Se para Silva (2002, p. 66) a “diferença é um movimento sem lei”, Geni em Silva e Miarka (2017) faz-se diferença, pois ela, mais do que uma anormalidade, é uma anomalia para a Cidade, “ela é feita pra apanhar/Ela é boa pra cuspir/Ela dá pra qualquer um…”[4]. Assim como, com Vianna (2016), é possível dizer que educação matemática designa uma coisa (em movimento) enquanto Educação Matemática designa um nome, uma área, e por isto é possível falar de [E]educação [M]matemática, área e movimento, como diz Silva e Miarka (2017) e Clareto e Miarka (2015).
Reflexões traidoras internas – Problema 1
Horácio: Então soarão aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue, expiações, assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por força maior, e para desfecho traições que feriram os próprios auctores; […] (SHAKESPEARE, 1880, p.184)
“Diferença é funcionamento”. Nesta frase, o verbo ser, transitivo direto, demanda um complemento, pois se diferença é, é alguma coisa. Tudo poderia se modificar se a frase fosse reconstruída, dizendo que “diferença funciona”, pois a pergunta em relação ao verbo seria: “funciona como?”. Problema estrutural: Quando se diz “Geni é diferença”, Geni é diferença?
Temos que dizer, no entanto, que Silva (2002), Clareto e Miarka (2015), Vianna (2016), Silva e Miarka (2017) e outros – já operados aqui – não estão/serão assumidos neste ensaio com o intuito de uma descrição das educações matemáticas exercitadas por eles, mas como disparadores de educações matemáticas possíveis; como intercessores não para dizer o que é ou o que não é, pois, para nós, importa apenas um funcionamento deles num exercício de pensar novas terras possíveis junto a uma filosofia da diferença.
Assim, ocupamos um território, a Cidade, Educação Matemática, em vez de medi-lo. Ocupamos porque somos acolhidos por este território, que nos nomeiam educadores matemáticos. É uma ocupação que envolve, também, um “acordo”, de modo que a entrada seja “pacífica”; somos “desordeiros” com certa cautela, com certo pudor. E não é porque somos membros deste território que não iremos declarar que, do mesmo modo que há em nós um tanto de Geni, há outro tanto de padre, comandante, e outros personagens[5]. Portanto, se objetivamos operar uma diferença como funcionamento de uma experiência, a identidade não será a “não-experiência”, mas apenas um dos estratos que compõem esse processo de ocupação de um território.
Tentaremos vagar nos múltiplos identitários – ser e não ser, saber e não saber, poder e impoder, ensinar e aprender, e… –, junto aos nossos intercessores, repetindo-os até que se tornem diferentes, buscando subtrair desses múltiplos a unidade e produzir uma multiplicidade sempre aberta a agenciamentos.
Deste modo, pretendemos fugir de conclusões – mesmo que a decisão por essa fuga seja já, ela mesma, algo tomado por uma espécie de conclusão. Gostaríamos de pedir para que não tomem este texto como algo pronto, feito, mas, tão somente, como um ensaio com identidade e diferença, uma preparação para um ato, para uma peça – a qual pode nunca sequer ocorrer, devido ao fato de que, a cada ensaio, novas performances surgem e passam a fazer parte da peça principal. Acontecimento preparatório permanente de práticas, de encontros sobre ser, não ser e tudo o que possa estar entre e para além desses dois polos existenciais[6].
Primeira traição: a roda
Entra Hamlet: Ser ou não ser, eis o problema. Uma alma valorosa, deve ella supportar os golpes pungentes da fortuna adversa, ou armar-se contra um diluvio de dores, ou pôr-lhes fim, combatendo-as? Morrer, dormir, mais nada, e dizer que por esse somno pomos termo aos sofrimentos do coração e ás mil dores legadas pela natureza á nossa carne mortal; e será esse o resultado que mais devamos ambicionar? Morrer, dormir, dormir, sonhar talvez; terrivel perplexidade. Sabemos nós porventura que sonhos teremos, com o somno da morte, depois de expulsarmos de nós uma existencia agitada? E não deverei eu reflectir? É este pensamento que torna tão longa a vida do infeliz!. (SHAKESPEARE, 1880, p. 78)
Figura 1: A Roda da Fortuna.
Fonte: http://polaroidesdaalma.blogspot.com.br/2014/04/a-roda-da-fortuna-o-destino-como-uma.html
Não sabemos precisar ao certo em que momento o nome de uma deusa passou a fazer referência ao acúmulo de capital – talvez com a desestruturação do sistema feudal e a ascensão do que conhecemos hoje por capitalismo, donde o sinônimo de sucesso está diretamente relacionado aos bens e valores monetários adquiridos, tenha potencializado isso, mas as cortinas do tempo certamente já esconderam muitas práticas anteriores que poderiam falar muito mais desta naturalização etimológica. Fato é que Shakespeare, na tentativa de elucidar a questão existencial mais célebre, estava invocando Fortuna, a deusa dos destinos, responsável pelo sucesso ou fracasso das pessoas, da cidade, da sociedade. A roda, representada na figura, é girada pela deusa, mudando o sentido de rotação e proporcionado, aos homens que nela estão dependurados, sorte ou azar, sucesso ou fracasso. Os olhos vendados caracterizam um ar de aleatoriedade com que Fortuna gira seu instrumento. Uma aleatoriedade regida pela dualidade, afinal, geralmente não se pode conceber um entre a sorte e o azar ou um outro que não seja nenhum dos dois, ou nos dois em um processo de devir-outro.
O nobre poeta inglês lança a célebre questão discutindo a bilateralidade existencial de quem pisa sobre os solos do mundo e nele se identifica como alguém apto a nele estar. É estando no mundo, no movimento contínuo de se tornar, que o ser humano fica de frente às duas opções levantadas: ser ou não ser. Inicialmente, é interessante notar que Shakespeare não nos dá uma terceira opção, sendo exclusivo o conectivo ou utilizado na sentença – ou se é ou não se é. Não há espaço para outra possibilidade, o que faz com aquele que se dispõe a responder a questão não tenha outra escolha que não seja pertencer a um dos dois conjuntos e se identificar com seus elementos, de forma que fica clara a aplicação da lei lógica do terceiro excluído em seu último grau para a existência humana: entregamo-nos nas mãos de Fortuna e aceitamos o que for decidido para nossos destinos, ou deixamos que a morte nos leve para um sono eterno? Ser ou não ser, existência ou morte?
E são justamente os sonhos desse sono duradouro que são temidos por aqueles que ainda não se deixaram levar pela ponta da faca a rodear as tripas, que persistem em aceitar as vontades da deusa e permanecem sendo: o que aconteceria a um não ser quando dorme e sonha? Que imagens viriam à mente atormentada daquele que não é? De que sonhos serão acometidos os que negam a dualidade imposta por Fortuna? Seríamos alvejados?
Impertinência 1: “A diferença não tem nada a ver com o diferente. A redução da diferença ao diferente equivale a uma redução da diferença à identidade” (SILVA, 2002, p. 66, grifos nossos).
A questão existencial colocada por Shakespeare, regida pelas mãos de Fortuna, ainda que operada por uma dualidade existencial – ser ou não ser – produz também um movimento “emergente”, uma escolha. Por exemplo, entre ser ou não ser educador(a) matemático(a), a escolha de estar dentro ou fora da Educação Matemática opera um movimento “emergente” que subjetiva um sujeito e produz, também, uma subjetivação. Subjetiva-o enquanto aquele que exerce um saber-poder dentro deste território e produz também uma subjetividade, pois, nesse “exercer” um saber-poder, um modo de vida é singularizado em seus diversos processos de individuação.
Desse modo, antagonizar o ser e o não ser com o conectivo shakespeariano “ou”, o mesmo dos cursos de lógica matemática que estudamos na graduação, é reduzir a diferença à identidade. É dizer que, sendo o ser aquilo que se é (identidade), não ser é aquilo que se não é (diferença). Para nós, junto a Silva (2002), esta é uma proposição falsa. O não ser, nesse caso, pode ser entendido como o diferente e não como uma diferença, certo de que ser é diferente de não ser.
A fuga que estamos tentando empreender, a qual se mostra um exercício muito difícil, traduz-se nesse distanciamento da dualidade, pois ela, diríamos, produz uma abstração; dizer que a Educação Matemática “é” é abstrair aquilo que ela não é, é deixar de fora coisas em virtude da nomeação e da definição. No entanto, temos clareza da necessidade de uma nomeação. Não se trata de crucificar a nomeação em prol de algo sem nome, que seja apenas movimento, mas de perguntar o que fazer com isto: a nomeação, os movimentos involuntários etc. O que isto produz no mundo? O que isto produz de mundos? Portanto, nesse novo ensaio que produzimos, aproveitamos da cegueira de Fortuna, para não nos alvejar, e escapamos desse aleatório destino dual para perguntar: o que isso produz no mundo? O que isso produz de mundos? Assim, ser ou não ser já não é mais a questão, mas ser e não ser como possibilidade de devirem-outro, de serem diferença e não diferentes.
Reflexões traidoras internas – Problema 1.3
O Rei: O que deu azo, Laerte, a uma rebellião, que assumiu proporções tão colossaes? Está tranquilla, Gertrudes, por nós nada receies; graças ao caracter sagrado que protege os reis, a traição não lança senão um olhar timido e incerto para o resultado que anhelam os seus desejos, e os effeitos estão longe de corresponder á sua esperança. (SHAKESPEARE, 1880, p. 135)
Diz-se ser e não ser como possibilidade de devir, de serem diferença e não diferentes. Se ser e não ser, bloco aglutinado pelo conectivo lógico e tornar-se diferença, se passarem a ser diferença, terão uma identidade, pois quando se é, é alguma coisa, e todo o resto que poderia ser dissolve-se nos cristais naturalizadores do movimento identitário. Ser e não ser são?
Impertinência 4: “A identidade é predicativa, propositiva: x é isso. A diferença é experimental: o que fazer com x” (SILVA, 2002, p. 66, grifos nossos).
Assim, perguntamos “o que fazer com Educação Matemática? O que isto produz no mundo? O que isto produz de mundos? O que fazer com ser e não ser?” em vez de “o que é Educação Matemática?”. Para não operar com a predicação da Educação Matemática, (que produz o diferente) junto à proposição ser ou não ser, perguntamos: que acontece quando lançamos mão ao experimental?
O grupo de trabalho do VII Seminário Conexões propôs, em vez de uma predicação, um algo experimental para os trabalhos apresentados. Se saímos da predicação, da identidade, e perguntamos do funcionamento desse algo, dessa coisa, operamos com diferença? Que produz no mundo? Que produz de mundos? Para dois educadores matemáticos, também ali envolvidos nessas tramas rizomorfas, produz um pensar educação matemática? Junto aos intercessores, que educação matemática? Que pensar?
Impertinência 12: “A diferença não tem a ver com a diferença entre x e y, mas com o que se passa entre x e y” (SILVA, 2002, p. 66).
Desse modo, não nos importa a diferença entre ser e não ser, mas no que se passa entre ser e não ser; o “e” não expressa a relação do ser com o não ser, mas a conexão… “e… e… e…” como agenciamento. Não se trata da relação entre o que é Educação Matemática (o que a define) e o que não é (o abstraído), do que é ser educador(a) matemático(a) e do que não é ser, mas no que se passa entre um e outro, e por isto afirmamos que estamos a operar é um ato de passagem, do que se passa entre a predicação e o experimental, entre nomeação e movimento.
Estamos entendendo, assim, que esse ato que chamamos de passagem produz movimentos emergentes, movimentos que fazem com que ser educador(a) matemático(a) produz alguma coisa no mundo e produz mundos… Do mesmo modo, pensamos que essas passagens – que produzem movimentos involuntários – fazem com que educação matemática opere diferença: pensamento que produz alguma coisa no mundo e produz mundos.
Por isso, em vez de problematizarmos o que acontece quando se é (Educação Matemática e educador(a) matemático(a)) e quando não se é, ao modo que fizemos no texto enviado ao evento, propomos esse exercício de traição do nosso próprio texto para pensar no que essas passagens, esses movimentos involuntários, produzem no mundo e no que elas produzem de mundos.
Reflexões traidoras internas – Problema 1.4
Hamlet: Para saír salvo dos laços d’esta infame traição, appellei para a minha intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que pude fazer. […] Queres saber o que escrevi? (SHAKESPEARE, 1880, p. 166)
Geni, olha você aqui. Você é você? “Pensamos que essas passagens fazem com que educação matemática seja diferença […].” educação matemática é diferença?
E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir pra casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre.
Mas – eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim. (LISPECTOR, 1984, p.98)
Segunda traição: passagem como um instante
Impertinência: “O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca o chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc.” (LISPECTOR, 1984, p. 97).
Silva e Miarka (2017) lançam ao exercício de pensar a pesquisa em [E]educação [M]matemática junto à canção de Chico Buarque, Geni e o Zepelim, de 1979. Tendo Geni como uma diferença, a Educação Matemática é a Cidade que joga pedra em Geni por ter uma vida promíscua, ”dando” para qualquer um. No entanto, em outro movimento, que muda o ritmo da canção pela aflição da cidade, Geni deixa de ser “maldita” para ser “bendita”.
Não queremos nos ater em uma problematização que já fazem Silva e Miarka (2017) em torno do movimento de passagem de maldita Geni a bendita Geni, mas nos movimentos emergentes, os quais se dão por aquele átimo de tempo em que a coisa toca o chão e produzem processos de subjetivação, criação de territórios existenciais. Desse modo, Silva e Miarka (2017), aqui, é nossa possibilidade de traição, de funcionamento em vez de referente.
Se Geni-“educações matemáticas”, em Silva e Miarka (2017, p. 755), é uma diferença e não o diferente da Cidade-“Educação Matemática” por produzir um devir-outro daquilo que se espera ser enquanto morador da Cidade, ela, nas palavras de Silva (2002), mais que uma anormalidade, é uma espécie de anomalia, sempre em conexão com uma marginalização: “de tudo que é nego torto/Do mangue e do cais do porto/Ela já foi namorada/O seu corpo é dos errantes/Dos cegos, dos retirantes/É de quem não tem mais nada”[7].
Nesse tocar o chão, o giro livre até tocar de novo é um movimento emergente que faz com que a roda toque, outra vez, o chão… em uma terra de novos possíveis, produzindo outros processos de subjetivação. Nessas passagens em um acontecimento entre ser e não ser Educação Matemática e ser e não ser educador(a) matemático(a), esses x e y passam a funcionar de outros modos, que não os anteriores, eles devêm-outros. As narrativas de Silva e Miarka (2017) salientam o que Vianna (2000; 2016) vem apontando quando diz [E]educação [M]matemática. Com as palavras de Vianna (2016), a com letras maiúsculas designa substantivos próprios, ela evoca uma nomeação, enquanto que a com letras minúsculas designa substantivos comuns, evocam coisas, ela é uma coisa.
Reflexões traidoras internas – Problema 1.5
Hamlet: Que tem a rainha?
O Rei: Desmaiou á vista do sangue.
A Rainha: Não, não! a bebida, a bebida!
meu Hamlet, a bebida! a bebida!
envenenada… (Morre.)
(SHAKESPEARE, 1880, p. 181)
“Ela é uma coisa”. Aqui uma é artigo indefinido. Uma coisa então remete a indeterminação. Mas se é educação matemática é uma coisa, não passaria a ser? educação matemática é?
Impertinência 6: “A diferença não é uma relação entre o um e o outro. Ela é simplesmente um devir-outro” (SILVA, 2002, p. 66).
O que opera no texto de Silva e Miarka (2017, p. 755, grifos dos autores) é “o quanto de área e quanto de movimento suporta uma [E]educação [M]matemática?”, mas ficamos um pouco mais com alguns de seus últimos questionamentos, quais sejam: “em meio a todo esse jogo de pertencimento da área, nos perguntamos “E quanto às Genis?”. O que tem sido feito delas em meio a esse jogo?” (SILVA; MIARKA, 2017, p. 766). E continuamos com, “mais do que buscar a escolha por uma ou outra identidade, perguntamo-nos: Quais personagens já não aceitamos em nome de uma área?” (SILVA; MIARKA, 2017, p. 766).
Esse movimento de traição opera um exercício de tentar produzir um outro no fazer-com ser e não ser Educação Matemática e educador(a) matemático(a), no que passa entre esse movimento de maldita Geni a bendita Geni que traz Silva e Miarka (2017), isto é, na Geni enquanto anomalia, cuspe da Cidade, e na Geni enquanto bendita e salvadora da mesma. Queremos operar junto ao Zepelim, aquele que mata a “força” esse movimento de produção de subjetividades e faz Geni devir-outra, do diferente à diferença; uma repetição produz uma diferença. Então, em vez de perguntamos juntos com Silva e Miarka (2017) o que tem sido feito das Genis nesse jogo, perguntamos: que movimentos produzem um Zepelim em sua passagem pela Cidade? Que movimentos emergentes são criados? Entre ser e não ser, como operam movimentos que deslocam subjetividades e as subjetivam?
Vejamos o trecho da música de Chico Buarque: “Um dia surgiu, brilhante/ Entre as nuvens, flutuantes/ Um enorme zepelim/ Pairou sobre os edifícios/ Abriu mil orifícios/ Com dois mil canhões assim”. A Cidade estava no seu ritmo normal de vida, tudo acontecendo como sempre aconteceu, Geni em sua errância, a deitar-se com que (e quem) tivesse vontade, a planar em sua existência nômade, e os moradores a vê-la como sempre a viram, a tentarem imprimir um ser naquilo que apenas acontece – a imprimir o freio identitário a algo que é puro movimento. Se tudo permanecesse da forma como estava, Geni seria sempre a puta da cidade, a amiga dos marginais, dos loucos e dos errantes, e a cidade permaneceria com seu território estabelecido, com Geni sempre fora de suas linhas, em seu movimento nômade e desterritorializado. Para a cidade, Geni seria sempre puta. Para Geni, Geni aconteceria a cada movimento.
No entanto, a chegada do Zepelim faz operar um funcionamento de uma outra coisa que ainda não estava lá. O medo pela destruição em massa, pelo fim catastrófico e avassalador oriundo das balas de canhão operou um movimento até então desconhecido no interior dos muros da cidade. E que ruptura desencadeia esse movimento?
“Mas do zepelim gigante/ Desceu o comandante/ Dizendo: “Mudei de ideia!”/ Quando vi nesta cidade/ Tanto horror e iniquidade/ Resolvi tudo explodir/ Mas posso evitar o drama/ Se aquela formosa dama/ Esta noite me servir” (grifo nosso).
Inicialmente, poderíamos pensar que o desejo que faz com que Geni vá para a cama com o capitão do Zepelim advém da cidade, pois, após essa observação do comandante do aeróstato, os cidadãos veem em Geni a única possibilidade de salvação, e usam todo o seu poder persuasivo para fazer com que ela, a puta da cidade, se deite com aquele que poria fim em tudo. Inicialmente ela nega, pois não gosta de cheiro de brilho e cobre, mas após medidas persuasivas, da romaria em que o prefeito fica de joelhos, o bispo beija sua mão e o banqueiro lhe enche de dinheiro, Geni, agora a dama bendita, deita-se e livra a cidade de todo o mal.
Mas, novamente, tudo isso se deu pela chegada do Zepelim. Vem de outro lugar, de um não se sabe onde, talvez de um não-lugar. Pode ser outro errante, pode ser de outro território, pode não ser nada disso, pode poder coisas outras que não se caracterizam pela identidade e o diferente. A chegada do Zepelim opera uma diferença. Com ele acontece diferença. Funciona uma subjetividade, uma subjetiviação… Deitar com o comandante, ainda que para a Cidade parecia ser a mesma coisa, para Geni era diferença:
“Acontece que a donzela/ E isso era segredo dela/ Também tinha seus caprichos/ E ao deitar com homem tão nobre/ Tão cheirando a brilho e a cobre/ Preferia amar com os bichos”
Impertinência:
Anjos do céu, poderes misericordiosos, protegei-nos. Genio bemfazejo, ou demonio infernal, que exhalas os perfumes celestes, ou as emanações do averno; que sejam sinistras ou caridosas as tuas intenções, appareces-me debaixo de uma fórma tão grata que te quero fallar. Interrogo-te, Hamlet, senhor, meu pae, rei de Dinamarca, oh! responde-me, não me deixes, na ignorancia, morrer de emoção; mas dize-me, porque teus bentos ossos encerrados no ataude romperam os sellos; porque te levantaste do tumulo em que te haviamos depositado; porque se ergueu a lapide sepulchral para te lançar a este mundo?. (SHAKESPEARE, 1880, p. 30).
Neste trecho da obra de Shakespeare, Hamlet, o príncipe da Dinamarca, após ouvir das sentinelas do castelo sobre visões acerca do espírito do rei Hamlet, seu pai, que fora morto tempos atrás, decide ir, à meia noite, ao local onde as aparições haviam ocorrido, e para sua surpresa vê, com os próprios olhos, a figura paterna em forma de aparição. Ele implora ao pai para que diga de que forma ocorreu seu óbito, e o espectro revela que foi o próprio irmão, sucessor ao trono, que o mata. A partir disso, Hamlet passa a fingir-se louco e a arquitetar um plano para que seu tio seja desmascarado.
Sem adentrarmos no que poderia ser um riquíssimo exercício hermenêutico acerca da obra shakespeariana, gostaríamos de chamar a atenção para as relações existentes entre o espírito do rei Hamlet e o capitão do Zepelim. Vejamos algumas coisas: na história, o fantasma começa a fazer aparições no castelo, às sentinelas, e após levarem ao conhecimento do filho, este vai ao seu encontro. Não é Hamlet que conjura o espírito do pai morto, este aparece pela sua própria vontade, e é a partir desta aparição que tudo muda – Hamlet passa a conhecer uma verdade sobre o assassinato do pai, passa a ser louco, passa a ser traidor, passa a ser assassino, passa a ser cadáver sob uma salva de canhões.
Mas, de onde vem esse espírito? Porque ele aparece naquele momento, não antes, nem depois? O que é aquele espírito? Que lugar ele habita? Para onde ele vai depois das aparições? Ele aparece e some, vem de um não-lugar e volta para um lugar-outro. Entendemos, assim, que ele não se encaixa na lógica identitária do ser, residindo exatamente no conectivo e, de ser e não ser. Ele acontece no entre as polaridades identitárias, paira livre para acontecer, sem ser ou não ser.
Com o Zepelim acontece coisa semelhante, pois repentinamente aparece para acabar com a Cidade. De onde ele vem? Para onde vai após usar e abusar de Geni? O que o levou a estar ali e em nenhum outro lugar? Vejamos que estava tudo preparado para a aniquilação total da Cidade, mas é no momento em que o capitão fala “Mudei de ideia” que tudo acontece. O que o fez mudar de ideia? Algum sentimento de pena por aqueles pobres coitados sob a mira de seus dois mil canhões? Desejo visceral por Geni e pela vida que levava? Se assim fosse, bastaria que levasse Geni em seu dirigível tornando-a sua escrava sexual. Porque decidiu ter relações com ela ali, na Cidade, e a deixar ali, na Cidade, poupando todos os seus cidadãos? Se seu desejo de destruir a cidade era por ver nela tanta iniquidade, por que Geni tornar-se-ia aquela que salvaria a Cidade? Oras, porque assim desejou. Um movimento desejante que nem é nem não é, uma vontade potencializada pelo desejo de que assim fosse. Zepelim é uma pulsão de um movimento emergente… sua passagem faz com que Geni passe de maldita a bendita. Nesse entre Geni não produz apenas processos de individuação, mas é também individuante de uma Cidade, de um comandante e…
Dentro desta perspectiva, pensamos que uma conexão – um e –, que sempre está no entre os acontecimentos, opera passagens, uma travessia, um processo, entre ser e não ser. A aparição do espírito faz com que Hamlet também produza uma travessia, e essa travessia é um processo de produção de subjetividades. O mesmo acontece com Geni, de maldita a bendita, e depois puta novamente – mas não a mesma puta, pois sua errância foi sugada pela subjetivação operada pela vontade do capitão e o incentivo da Cidade; não se trata do diferente, nesse caso, mas de uma diferença, onde Geni funciona como individuação e individuante.
Agora, trazendo para nossa discussão em Educação Matemática, perguntamos: como um entre funciona, como um entre acontece e opera movimentos emergentes junto aos sentimentos de pertencimentos e não-pertencimento a determinado território? Como um entre devém um movimento clandestino entre o tocar e no não tocar o chão? Que produz isso no mundo? Que produz isso de mundos? Como isso funciona em Educação Matemática? Que produz? Educações matemáticas?! A passagem de um Zepelim traz consigo uma multiplicidade de afetos que faz com que Geni-“educações matemáticas” e Cidade-“Educação Matemática” – assim chamadas em Silva e Miarka (2017, p. 755) – devêm-outras num processo contínuo de individuação. Não é apenas Geni que foi individuada pela vontade da Cidade, mas a Cidade, também, foi transbordada pelos processos de individuação de Geni. Sendo assim, Geni-“educações matemáticas” e Cidade-“Educação Matemática”, nessa travessia entre ser e não ser, pertencer e não pertencer, afirmam uma morfogênese dos processos de individuação, entre ser e não ser…, sempre um devir-outro (SIMONDON, 2009).
Impertinência: “O que importa não é tanto o fato em si, mas aquilo que ele afirma, reivindica ou pretende. Um fato deve ser concebido como uma pretensão, uma exigência ou uma reivindicação […]” (LAPOUJADE, 2015, p. 25, grifos do autor).
Antes de trairmo-nos, pensávamos que o desejo de pertencer a tal área do conhecimento residia ou naquele que quer adentrar ou no próprio território, que quer subjetivar. Aquele que entra pensaria em alisar territórios estriados mediante seus desejos de não ser um Educador Matemático ou desejaria estriar para ser integrante da área, e aqueles que estão dentro pensariam em atrair para a área sujeitos para ampliar suas terras, seus campos de pesquisas, transformando educações matemáticas em Educações Matemáticas, e vice versa, num movimento despolarizado de ser e não ser. No entanto, esse movimento fez surgir reflexões internas à nossa escrita, os quais chamamos traidores, resultando em problemas que demonstraram que uma terra de novos possíveis pode ser produzida com travessias em um movimento errante que devém-outro, que difere, que produz algo no mundo e mundos etc. É com Geni-“educações matemáticas” e Cidade-“Educação Matemática” de Miarka e Silva (2017) que conseguimos pensar no funcionamento do Zepelim nesses processos de subjetivação; Zepelim produz uma Geni-outra, uma Cidade-outra. Por isto, perguntamos: que produz Zepelim no mundo? Que produz de mundos? Que produz de/com/para/em Geni-“educações matemáticas” e Cidade-“Educação Matemática” e [E]educação [M]matemática e eDucAçÃo MAteMátiCA AefeTIvA e…?
Terceira traição: onde está o Zepelim ou que fazer com isso?
Impertinência: Percorrer um longo caminho, criar uma travessia, é produzir uma terra de novos possíveis.
Impertinência: Em vez de colorir o mundo, desejamos corar-nos de mundos, pois “o branco me [nos] corrompe[m]” (BARROS, 1997, p. 71).
Impertinência: “A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo” (BARROS, 1997, p. 75).
Criar movimentos emergentes que se fazem reivindicação de devires-outros com expressões cães, expressões mendigos, expressões lazarentos, expressões padres, expressões loucos, expressões retirantes, expressões comandantes, expressões capitão, expressões Genis, expressões Cidade e…
Impertinência 5: “5. A identidade é da ordem da representação e da recognição: x representa y, x é y. A diferença é da ordem da proliferação; ela repete, ela replica: x e y e z…” (SILVA, 2002, p. 66).
Com um experimental, este ensaio quer fazer-se um material-forças que mergulhou de cabeça em emaranhados processos de proliferação, repetindo e repetindo e repetindo e repetindo e repetindo e repetindo e repetindo e repetindo e até que opere diferença…
Impertinência (n-1):
Figura 2: Composição dos autores inspirada na obra de René Magritte, “Os dois mistérios”, de 1966.
Intercessores e auxiliadores nas traições
BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. 3. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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VIANNA, Carlos Roberto. Vidas e Circunstâncias na Educação Matemática. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Unicamp, 2000.
Recebido em: 15/02/2018
Aceito em: 15/03/2018
[1] Doutorando e Mestre em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Rio Claro/SP. E-mail: gondiminit@hotmail.com.
[2] Doutorando e Mestre em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Rio Claro/SP. E-mail: danilo.o.gomes@gmail.com.
[3] Para Tomaz Tadeu da Silva, em sua primeira impertinência, “A diferença não tem nada a ver com o diferente. A redução da diferença ao diferente equivale a uma redução da diferença à identidade” (SILVA, 2002, p. 66). Declarar x ou y é dizer que y é diferente de x, no entanto, não é diferença. A diferença é um funcionamento de x e y.
[4] Apesar de a canção Geni e o Zepelim ser composta por Chico Buarque e, claro, de amarmos quase tudo que canta Chico, sugerimos que os versos heptassilábicos, metrificados e ritmados de Geni e o Zepelim sejam escutados na interpretação de Letícia Sabatella, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OJrWg98pXq4>. Acesso em: 26 jan. 2018. Com ela, experimentamos uma viceralidade em um movimento que produz uma diferença rítmica, uma experimentação de Geni e o Zepelim que devém-outra.
[5] É que, ultimamente, nesses tempos “pós-modernos”, tem virado “moda” dizer que é diferença, no entanto, segundo Silva (2002, p. 66) “A identidade é. A diferença devém”, desse modo, não faz sentido dizer ser diferença, pois diferença não clama por ser, ela devém. Problema 1.1: Porque Geni é diferença, então?
[6] Essa peça começou a ser ensaiada, em 2016, sob a “direção” de Diego de Matos Gondim, no Encontro das Licenciaturas do IFSul de Minas, campus Inconfidentes, sobre o título de “Ser ou não ser. Eis a questão?”: nas dobras da licenciatura. Em 2017, Danilo Olímpio Gomes compõe a “direção” da peça no VII Seminário Conexões Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e…, sob o título “Ser e não ser. Eis a questão?”: (des)licenciaturas em Matemática. Os ensaios continuam em busca de operar com cosmopolíticas-ecologias radicais-novas terras-e…- outras possíveis e rastros do seminário.
[7]Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OJrWg98pXq4>. Acesso em: 26 jan. 2018.
[8] Estas fotografias foram produzidas no encontro do Grupo-Experimento Imediações de uma língua aberrante. A proposta do grupo objetivava “construir formas de expressão que hibridizem a linguagem falada ou escrita; desenvolver uma língua traída que possa ser pensada como suporte para uma Nova Terra”. Assim, todos participantes foram convidados a experimentar recortes dos trabalhos, imagens, vídeos e… que grafavam diversos espaços de um Laboratório de Análise Genética Molecular. As produções, parte fotografadas, produziram um devir-coletivo que não clamava por uma maioria em comum, mas por afetos que atritavam junto a uma multiplicidade de quereres e forças que devieram um corpo coletivo outro.
“Ser e não ser. Eis a questão?”: nas dobras de línguas traídas, um pensar educação matemática
RESUMO: Este ensaio quer fazer-se material-forças para operar três movimentos de traição: no primeiro, exercitamos uma traição da proposta de trabalho enviada ao VII Seminário Conexões, “Ser e não ser. Eis a questão?”: (des)licenciaturas matemáticas; o segundo entra em um movimento com alguns intercessores da Educação Matemática e Filosofia da Diferença buscando escapar da dualidade existencial operando um devir-outro, desejando fazer-se experimentação. No terceiro, não se busca uma relação entre o primeiro e o segundo, mas apenas proliferar em conexões “e… e… e… ” produzindo um pensar educação matemática junto às experimentacões do grupo de trabalho “Imediações de uma língua aberrante”.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Matemática. Filosofia da Diferença. Identidade e Diferença.
“To be and not be. That´s the question?”: in the folds of betraied speeches, a thinking about mathematical education
ABSTRACT: This essay wishes to become itself material-forces to operate three movements of betrayal: in the first, we exercise a betrayal the proposal of work sent to the VII Connections Seminar, “To be and not to be. Is that the question?: (dis)degrees in mathematics; the second enters into a movement with some intercessors of Mathematical Education and Philosophy of Difference seeking to escape from the existential duality operating a becoming-another, desiring to make itself experimentation; in the third, we do not seek a relation between the first and the second, but only to proliferate in connections “and … and … and …” producing a mathematical education thinking together with the experiments of the working group “Surroundings of a aberrant language “.
KEYWORDS: Mathematical Education. Philosophy of Difference. Identity and Diference.
GONDIM, Diego de Matos; GOMES, Danilo Olímpio. “Ser e não ser. Eis a questão?”: nas dobras de línguas traídas, um pensar educação matemática. ClimaCom [online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8893