Sociedade natureza na roda do clima: a ginga da sustentabilidade e seus jogos
Marcelo Faria [1]
Marco Tomasoni [2]
O berimbau…
Volta ao mundo! A baqueta toca o arame preso à madeira e faz soar, pela cabaça, os primeiros sons do berimbau que inicia a roda. Pessoas se aproximam e se dispõem, normalmente em círculo, para ver o que ali acontece. Tudo começa com a chula, uma espécie de reza cantada, que evoca o valor da liberdade para quem, cativo, esteve à beira da morte e dela escapou; pede proteção e ajuda aos deuses, ou entidades, que regem aquele microcosmo de luta diária pela afirmação dos sujeitos nela envolvidos; enaltece a arte do jogo e convida o Outro à disputa. A luta que ali se inicia é um combate simbólico de vida e busca de liberdade, cujo desfecho nunca é totalmente conhecido, ainda que o ritmo do berimbau exerça, através dos diferentes toques e do ritmo, certo domínio sobre o jogo. A cada movimento de perna, a cada golpe, uma esquiva. Na ginga, no floreio, na simulação tudo é símbolo, tudo é diálogo, tudo é jogo.
A violência é uma possibilidade real e permanente, afinal, ela está na própria origem da capoeira, e é seu marco identitário. Diversamente de sua origem, a violência nas rodas contemporâneas, em geral, emerge quando o diálogo entre os sujeitos (os corpos em movimento) não se estabelece. Imprevisível, quase sempre indesejada, ela expressa um limite da nossa capacidade de entendimento, de negociação, de convivência, de estar com o outro.
Esse outro pode ser definido aqui como “tudo aquilo que não é eu mesmo” e com o qual não consigo estabelecer uma relação de negociação, de convivência. Esse outro pode ser um indivíduo, um grupo diverso do qual eu me identifico, uma outra sociedade ou a natureza.
A presença dos seres humanos na Terra é bastante antiga e, diferentemente das outras espécies, nossa característica fundamental é a transformação da natureza através das técnicas, do trabalho, gerando novas composições e arranjos espaciais. Há muitos anos que as sociedades humanas vêm se apropriando da natureza para produzir seus espaços de vida, isso implica, necessariamente, em impactos ambientais que podem ser maiores ou menores a depender de como se realizam os processos de produção social do espaço.
Podemos dizer que a produção social do espaço depende dos elementos naturais disponíveis nos diversos contextos, das representações sociais produzidas para estes elementos, dos recursos técnicos disponíveis nos diversos contextos histórico-geográficos, e das finalidades político-sociais estabelecidas para a sua produção.
Como há a necessidade de se apropriar da natureza para a produção da vida humana em grupos, as sociedades sempre se preocuparam em compreender os elementos naturais, suas relações e dinâmica, a fim de garantir e alargar as possibilidades de se reproduzir como sociedade. Dessa forma, a busca de conhecimento sobre os elementos e processos naturais sempre ocupou papel de destaque nas preocupações humanas desde os tempos mais remotos até os dias de hoje. Como no corrido da capoeira que diz
É lua minguante eu vou cortar madeira
Madeira boa não corta na lua cheia
É lua minguante eu vou cortar madeira
Madeira boa não corta na lua cheia
Meu mestre me disse
Não vai pra mata atoa
Que é só na lua minguante
Que corta madeira boa
Neste período, que dura cera de 15 mil anos, muito conhecimento foi produzido e reproduzido com relação à natureza, seus elementos, comportamentos, inter-relações, etc. Compreender essa exterioridade que é a natureza sempre foi, e permanece sendo, um desafio para as sociedades humanas para sua apropriação e produção do espaço; no entanto, o sentido dessa compreensão tem se modificado muito desde o início da prática de agricultura até os dias de hoje não apenas no tempo, mas também nos diversos contextos espaciais, sem nenhuma linearidade.
Pensemos dois contextos imaginários (inespecíficos, porém possíveis) dessa relação sociedade natureza, ou melhor, de produção social do espaço.
Em sociedades de subsistência, cuja finalidade da ação social é, normalmente, a reprodução material direta da vida biológica (prover a alimentação do grupo, produção de moradia e de instrumentos) e imaterial (a tessitura de significados), o conhecimento da natureza é bastante profundo, mas restrito à escala local. Isso não significa no entanto que não produzam representações sobre todas as coisas com as quais mantêm contato, por exemplo, com o céu e os objetos lá presentes (Lua, Sol, etc.).
A percepção e o entendimento da dinâmica natural, seus componentes e relações, são fundamentais para essas sociedades em que os ritmos naturais, embora não determinantes, condicionam de forma radical a temporalidade social. Os recursos técnicos de exploração da natureza tendem a ser menos agressivos com o ambiente, porém a dinâmica caótica dos processos naturais criam, com frequência variada, momentos problemáticos para a obtenção de recursos como, por exemplo, períodos prolongados de estiagem ou de chuvas, invernos rigorosos, verões escaldantes, etc. o que faz com que a perspectiva da carência seja uma ameaça constante.
As representações sociais sobre a natureza variam muito nos diversos contextos espaciais. No entanto, é comum que se encontre uma visão anímica dos componentes da natureza e, mais que isso, a inexistência de uma separação radical entre o universo humano e a natureza como se criou no mundo ocidental moderno. Vejamos essa passagem de Davi Kopenawa:
Desejo, portanto, falar-lhes do tempo muito remoto em que os ancestrais animais se metamorfosearam e do tempo em que Omama nos criou, quando os brancos ainda estavam muito longe de nós. No primeiro tempo, o dia não acabava nunca. A noite não existia. Para copular sem serem vistos, nossos ancestrais tinham de se esconder na fumaça de suas fogueiras. Afinal flecharam os grandes pássaros da noite, os Titi kik, que choravam nomeando os rios, para que a escuridão descesse sobre eles. Além disso, eles se transformavam em caça sem parar. Assim, foi depois de todos terem virado animais, depois de o céu ter caído, que Omama nos criou tais como somos hoje (Kopenawa, 2015).
Essa compreensão da natureza tende a não separar o natural, o social e o sobrenatural e, dessa forma, os fenômenos não se reduzem à sua manifestação objetiva direta, que permitem, por exemplo, o estabelecimento de relações causa efeito em sua explicação, mas, ao contrário, produz-se uma lógica outra de compreensão e ação diante da contingência.
Cuidado com a cobra venenosa Ela pode te morder
Cobra criada é bicho perigoso Ela te morde e tu não vê
Perto de mim teve um monte de cobra Foi São Bento que me protegeu
A que estava mais perto de mim Que cobra traiçoeira essa que me mordeu
Mas meu veneno também era forte Hoje estou vivo e cobra morreu
As questões que se impõem a esses grupos, relativas à produção espacial em suas dimensões material e imaterial são bem diversas das que se colocam para as ditas sociedades modernas, mas não menos importantes nem menos problemáticas.
O período da Era Moderna que se inicia na Europa do século XVI, vai transformar por completo a forma pela qual boa parte das sociedades compreende e se relaciona com a natureza em todo o mundo. Duas criações humanas imbricadas serão determinantes para essa mudança: a ciência moderna, que inaugura uma nova forma de olhar e compreender o mundo; e o capitalismo, um modelo econômico que em um curto prazo de tempo tornou-se mundial.
Podemos dizer que a ciência moderna se caracteriza por uma ruptura importante entre um sujeito racional que deseja conhecer um objeto que lhe é externo e que, para isso, recorrerá a um método de observação e sistematização de dados que lhe permitam chegar a um conhecimento verificável (testável) e justificado (sustentado em argumentos racionais, medidas, quantificações, relações), passível de ser aceito como verdadeiro, ao menos transitoriamente em função de suas evidências. Essa construção sem dúvida logrou grandes avanços na capacidade dos seres humanos se apropriarem e transformarem a natureza, convertida agora em objeto, fonte inesgotável de recursos naturais.
Segundo o historiador Nicolau Sevcenko,
(…) o desenvolvimento da ciência e das técnicas teria possibilitado o domínio de poderosas forças naturais, de fontes de energia cada vez mais potentes, de novos meios de transporte e comunicação, de armamentos e conhecimentos especializados permitindo-lhes impor uma hegemonia apoiada na ideia de uma vocação inata da civilização europeia para o saber, o poder e a acumulação de riquezas. No século XIX essa convicção otimista seria expressa pela formula “ordem e progresso” significando que a difusão e assimilação paulatina dos valores da cultura europeia conduziriam o mundo a um futuro de abundância, racionalidade e harmonia. (Sevcenko, 2001, p. 15).
Como podemos ler nessa passagem o modelo capitalista, que se espalhou pelo mundo todo a partir do século XVI, é inseparável da ciência moderna, uma forma específica de entendimento do mundo, cuja intenção é compreender para utilizar e, mais recentemente, compreender para fabricar.
A natureza, transformada em mercadoria, deve atender à centralidade do sistema que é a ampliação das taxas de lucro das empresas que lidam com os recursos naturais, cuja exploração se realiza em larga escala, e em alta velocidade crescente, para atender a demanda crescente do mercado consumidor, induzido pela propaganda.
O conhecimento científico da natureza, além de ampliar exponencialmente o que chamamos de recursos naturais, tem permitido uma série de avanços em sua exploração incompatíveis com sua capacidade de assimilação e tempo de reciclagem. Isso tem gerado uma série de problemas ambientais que devem ser compreendidos à luz dos impactos dessa racionalidade técnico-científica, regidas pelas leis do mercado, no ambiente, ou seja, nas formas dominantes de produção do espaço sob o capitalismo, tornado global.
No entanto, seria ingenuidade pensar que a ciência e o capitalismo se desenvolvem de forma homogênea, ou mesmo sem conflitos internos.
Nos institutos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico é clara a presença de correntes teóricas concorrentes e que disputam não apenas os recursos de financiamento de seus trabalhos, mas também a afirmação da validade de seus argumentos na orientação da ação pública e ou privada de produção espacial.
Podemos dizer que nas ciências ligadas à compreensão e exploração da natureza há dois grandes grupos que se opõem em função de suas inclinações teórico-políticas sobre a relação sociedade – natureza.
Uma primeira posição que denominaremos de compatibilistas, crê na possibilidade de um desenvolvimento sustentável sob o capitalismo; e, de outro lado, os incompatibilistas, advogam em favor da insustentabilidade do atual modelo. Ambos os grupos procuram desenvolver argumentos que sustentem suas posições e, claro, convençam o maior número possível de pessoas que estão corretos.
As pesquisa apontam, na maioria das vezes, para direções opostas. Enquanto um grupo procura desenvolver técnicas de menor impacto para grandes explorações, o que alguns chamam de desenvolvimento sustentável, outros tendem a fixar os limites de exploração dos recursos do planeta, demonstrando a insustentabilidade de uma política de crescimento permanente.
A primeira perspectiva se encontra vinculada à própria lógica do sistema. Foi através do conhecimento da estrutura e do funcionamento dos elementos naturais que o capitalismo conseguiu incrementar a produção nos níveis em que estão hoje. Como esta produção se faz em larga escala, e exige muitos investimentos, é necessário que se diminuam, o máximo possível, as possibilidades de imprevistos, de erros de planejamento que venham a comprometer o crescimento da produção e, consequentemente, do lucro.
Assim, a ciência moderna através de suas diversas áreas de estudo (biologia, ecologia, geologia, meteorologia, agronomia, geologia, geografia, etc), aliada a um intenso desenvolvimento do aparato tecnológico (satélites, computadores, etc.), busca produzir uma enorme quantidade de conhecimento que possibilita fazer previsões sobre o funcionamento das variáveis naturais e com isso, que se evite, ou pelo menos minimize, grandes prejuízos por parte dos agentes hegemônicos. Técnicas são desenvolvidas para possibilitar uma maior produção, armazenamento e transporte das mercadorias, de onde provêm seus lucros.
Uma enorme quantidade de dinheiro é gasta na produção deste conhecimento, pois ele é hoje elemento fundamental para a continuidade do modelo capitalista de desenvolvimento.
A segunda perspectiva (incompatibilistas) é crítica à forma pela qual o sistema capitalista se relaciona com o meio ambiente e procura fixar os limites dessa exploração. Ao contrário das sociedades tradicionais, a velocidade de exploração dos recursos naturais é cada vez mais determinada pela técnica e pela ciência. O ritmo de exploração é intenso e sua escala mundial. Estudos têm demonstrado que o ritmo com que esta exploração tem se desenvolvido não é compatível com a capacidade de reprodução da vida no planeta, o que pode, em um prazo razoavelmente curto, esgotar recursos fundamentais para a reprodução da vida em nosso planeta.
Desde o encontro Limites do Crescimento (Estocolmo-1972) passando pela Eco92 (Rio de Janeiro-1992) se aponta à necessidade de se estudar os limites de sustentabilidade do modelo vigente de exploração dos recursos naturais sem que se respeite o ritmo de reciclagem da natureza como um todo.
O conhecimento sobre a composição e funcionamento da natureza é uma busca bastante antiga das sociedades humanas e tem se modificado ao longo do tempo em função das diferentes mentalidades dominantes em cada período, do incremento no conhecimento e das descobertas científicas que, contemporaneamente, não apenas deseja compreender, mas também fabricar novos elementos.
O conhecimento até então acumulado acerca da natureza parece indicar que existam importantes propriedades emergentes nos sistemas, fundamentalmente os biológicos, que buscam a auto-organização visando readequarem-se as novas contingências. Mesmo assim, tais propriedades contrapõem-se às limitações intrínsecas do planeta, limitações estas impostas não apenas pela acelerada utilização dos recursos ambientais, como também no desenvolvimento tecnológico gerador de grandes impactos. Somam-se a isso as dinâmicas que ocorrem em diferentes escalas temporais dos próprios sistemas naturais (terrestres – climáticos- geodinâmicos e oceanográficos).
Há um jogo em curso e em cada contexto – em cada roda que se organiza o jogo – há uma tese central: em 1972 a ladainha inspirava-se na ideia do limite de recursos inspirada nas teses de Malthus, em sua tentativa apocalíptica de decretar o esgotamento dos recursos da Terra face ao crescimento geométrico da população, gerando o slogan “Limites do Crescimento” (MEADOWS, 1972) para o encontro. Recentemente a chula/ladainha virou cantando para o mundo a possibilidade de um novo futuro, o “Nosso Futuro Comum” (CNUMAD, 1988) apresentado formalmente em 1992 e que vem refletir sobre a mesma problemática, a da permanência/sobrevivência humana, apontando para a necessidade de um “modelo alternativo” ao degradador consumista, a partir da estruturação do conceito de “desenvolvimento sustentável” (DS), ou seja, uma concepção que não rompe por completo com a estrutura do modelo atual, mas tenta criar soluções de compatibilidade entre o capitalismo – um modelo que aponta para o crescimento das demandas, portanto do consumo – e a sustentabilidade ambiental.
Com o desenrolar dos anos a ladainha de 1992 passa a virar uma quadra/corrido, e o DS passa para sustentabilidade/eco compatibilidade, entre outras expressões. Ao longo das décadas posteriores a 1972 as maltas militantes do ecologismo / ambientalismo passam a reproduzir alguns destes ensinamentos enquadrados em grandes vertentes que implicam em concepções antagônicas à ideia concreta da permanência, que podem ser resumidas, conforme Alier (2014), em ecologismo associado diretamente aos ideais preservacionistas e sem necessariamente incidir no debate dos conflitos sociedade natureza. Uma outra forte vertente é a da ecoeficiência, que como um evangelho, segundo Alier, apregoa a melhora dos sistemas produtivos, “consumo consciente” entre outras questões sem voltar-nos aos problemas do consumo e assimetrias globais, como um roteiro de ideias para salvar o planeta e por fim, aparece uma outra grande vertente que toma corpo a partir da chamada justiça ambiental que questiona diretamente as bases do modelo e não as suas extremidades. A chamada “ecologia dos pobres” radicaliza o debate entre os conflitos distributivos e o convívio não predatório com a natureza. Embora a preservação e eficiência sejam importantes é hoje a escassez e a raridade dos recursos, que tendem a incrementar os conflitos e provocar imensas tragédias humanas e como consta em seu texto: “os pobres são demasiado pobres para serem verdes” e os pobres são muitos. Neste sentido, a roda do debate ainda está aberta a enxergarmos estas possibilidades.
Mas, as alternativas ao presente processo de produção e consumo em larga escala impõem um enorme esforço e um grande conjunto de questões complexas que não se traduzem em receitas de curto prazo, embora seja necessário considerar a necessidade urgente de uma inflexão do modelo de desenvolvimento vigente, pois, o que parece avizinhar-se são cenários de escassez e deterioração dos sistemas de sustentação da vida.
O estudo da dinâmica dos elementos naturais no espaço tem levantado questões importantes para o questionamento de nosso modelo de desenvolvimento, pois os recursos estão se tornando cada vez mais escassos e as consequências ambientais das ações humanas se fazem sentir com intensidade cada vez maior em cada ambiente e no planeta como um todo.
Nesse questionamento há uma dimensão política que não está clara, pois são diversos os grupos e interesses que se manifestam contrários ao modelo de desenvolvimento vigente. Partidos políticos, movimentos nacionalistas, organizações não governamentais (ONGs), etc se multiplicam na defesa de diversos ideais e ideologias, o que faz necessário um esforço maior ainda por parte de quem pretende evitar interpretações equivocadas sobre as questões que se apresentam.
A relativa artificialização dos sistemas ambientais do planeta, provocada pela dinâmica socioeconômica, deixou a ilusão de que a economia é um ente isolado, parecendo não ser governada pelas leis da termodinâmica, que regem a degradação da energia e matéria no processo de produção e consumo.
A degradação ambiental, que é apenas a manifestação imediata deste antagonismo, posto entre economia e natureza, trouxe à tona a noção de que o sistema econômico não só está imerso em um sistema físico-biótico mais amplo do qual depende, como também mostra a relevância de que o conceito de escassez “alicerce da teoria e prática econômica, que agora se converteu em uma escassez global, que já não se resolve mediante o progresso técnico” (LEFF, 2001). Assim, a racionalidade econômica induziu a estruturação do chamado tecnicismo ambiental, que apregoa poder vir a substituir ou organizar os processos que comandam os sistemas ambientais, os quais foram desorganizados ou comprometidos pela lógica de apropriação dos recursos ambientais. Esta lógica impede qualquer mudança para um futuro próximo, portanto indeterminado e sujeito a inflexão mediante crise extrema.
Na linha de acomodação dos antagonismos entre o modelo de produção capitalista e a derradeira sustentabilidade ambiental, encontra-se o chamado capitalismo ecológico, apresentado em trabalhos como os de Paul Hawken, Amory Lovin e L.H.Lovin, que acreditam ser este o mote da próxima revolução industrial, uma “revolução limpa”. Para os críticos do capitalismo ou de vertentes mais radicais do ambientalismo, isto soa como eufemismo, pois segundo eles, a dissolução dos princípios ecológicos (RICLIFF, 1996) no capitalismo, mostra-se no mínimo antagônica. Pois como define Veiga (2007), o postulado central do capitalismo, ancorado no crescimento contínuo da produção, é completamente ilógico, assim como o consumo sem destruição, o que seria segundo ele, o mesmo que buscar a quadratura do círculo. Já Guattari (1991), prefere referir-se a tal projeto, como a difícil solubilidade da ecologia no capital.
Críticas à parte, a chamada vertente “ecocapitalista”, defende o emprego da eficiência no uso dos recursos e energia, reduzindo rejeitos em uma reengenharia de processos, levando a máxima eficácia do capital e possibilitando um “lucro limpo”, diferente do atual “lucro sujo”, como se os problemas sistêmicos do modelo pudessem ser resolvidos a partir da mera reorganização do processo produtivo. Esta ideia básica do tecnicismo ambiental inverte a lógica da complexidade da questão ambiental, reduzindo-a a um mero procedimento operacional, que sem dúvida faz parte da solução, mas, não é a saída dos imensos problemas socioambientais gerados por esta lógica produtiva. Como mecanismo para justificar a continuidade desta lógica, poderosas técnicas de marketing chamadas de maquiagem verde, são empregadas, formalizando um ambientalismo panfletário e pseudo-soluções a um conjunto de problemas complexos. Um exemplo deste potencial se deu no antes controverso problema entre os chamados compostos clorofluorcarbonos (CFC’s) e a camada de ozônio e agora pelas chamadas “mudanças climáticas, mostrando claramente o alcance do poder da manipulação do conhecimento científico em informação a serviço de interesses coorporativos não explícitos.
Ao avaliar os diversos condicionantes que restringem o desenvolvimento da sociedade, dois condicionantes são fundamentais em sua compreensão: aqueles ligados aos fatores concretos e aqueles condutores de princípios. Neste conjunto de fatores norteadores que determinam o rumo da sociedade, alguns limites são determinantes naquilo que se pode chamar de espaço de possibilidade. Segundo Bossel (1999), estes limites definiriam o espaço de sustentabilidade potencial, delimitado por condicionantes de três naturezas: um primeiro de ordem natural; um segundo de ordem humana e um terceiro de ordem temporal. Tais aspectos encontram-se restritos a um conjunto de opções disponíveis, umas mais abertas e outras mais limitadas ou, como o autor prefere, com baixa plasticidade. Estes elementos serão abordados no gráfico a seguir.
Entendendo a sustentabilidade como um conceito dinâmico, associada a um grande numero de condicionantes, pode-se dizer que existem, entre eles, alguns aspectos que possuem certa mobilidade ou flexibilidade, mas, a maioria de seus condicionantes são mais ou menos rígidos ou imprevisíveis. A gama total de possibilidades futuras (cenários) está reduzida por estes condicionantes, restringindo o futuro a um certo espectro de possibilidades que Bossel chamou de “espaço de acessibilidade”. A continuidade do desenvolvimento futuro da sociedade é então limitada a um espaço de possibilidades, de escolhas subjetivas e decisões éticas inevitáveis. Estes condicionamentos ou restrições são de três ordens:
1. Condicionantes e limitações estabelecidas pelas leis naturais e implicando em limitações de ordem biogeofísicas básicas, mostrando que “nem tudo é possível”. Os elementos aqui enquadrados são serão chamados de condicionantes N (1,2,3 e 4); 2. Condicionantes de natureza humana e suas metas, exemplificadas na máxima: “nem tudo é desejável”. Os elementos que se enquadram aqui são os condicionantes H (5,6 e 7); e 3. Condicionantes de tempo implicam que a direção e os passos são determinados pela dinâmica evolutiva e pelas escolhas adotadas. Os elementos aqui enquadrados são os condicionantes T (8 e 9).
Definidos estes 9 condicionantes da seguinte maneira:
O condicionante 01 é definido pelo conjunto de limites e leis da natureza que deve ser avaliado sob alguns aspectos como a dinâmica e inconstância destes limites bem como sua mutabilidade. A noção melhor empregada neste contexto é o do equilíbrio dinâmico dada à contingência dos processos que cercam esta evolução. O condicionante 02 se define pelo espaço disponível e sua capacidade de absorção de impactos sociais, a disponibilidade de recursos renováveis e não renováveis, a fertilidade do solo e clima, etc. Classificam-se em limitações de estado e taxas de limite.
O 03 define os fluxos de energia, especialmente a solar, que apresenta fluxo quase constante e possibilitando a contínua reciclagem através dos grandes ciclos da matéria e os estoques de materiais existentes, posiciona-se abaixo do condicionante 01 pelo fato de representar um limite de prudência no manejo destes estoques. O condicionante 04 que representa a capacidade de carga se situa no limite inferior ao condicionante anterior, pelo fato da capacidade de carga de um sistema qualquer, sempre encontrar-se teoricamente abaixo do total de matéria ou energia existente no sistema, o que pode representar, também, uma zona de resiliência. A curva descendente se justifica por dois fatores: primeiro, por que a própria evolução de qualquer sistema leva a uma entropia natural e, segundo, que a pressão sobre os recursos é um fator crescente principalmente do ponto de vista energético e do potencial dos recursos disponíveis.
O condicionante 05 representa fatores intrínsecos ao desenvolvimento humano, como a capacidade inventiva, de antecipação, de iniciativa, etc. Sua curva ascendente representa a natureza exponencial do conhecimento humano que, em tese, assume limites superiores às possibilidades de resiliência, seu caráter ilimitado permite também a possibilidade de uma evolução perceptiva dos condicionantes de natureza diversa, levando a uma boa aproximação do conceito de sustentabilidade. Os condicionantes 06 e 07 representam respectivamente o papel das organizações humanas, culturas, tecnologia e sua influência na aceitação de necessárias mudanças e os limites de tolerância impostos pelos padrões éticos ou valores culturais e normas de uma determinada sociedade. Ambos representam criações sociais históricas e, portanto, são condicionantes indeterminados.
O 08 implica que os processos são dinâmicos e necessitam de tempo para a adaptabilidade do sistema. A instalação de infraestruturas técnicas ou tecnológicas influencia em diferentes escalas temporo-espaciais nesse processo. Assim, restrições severas poderão ter efeito em face à premência destas necessidades e no momento de sua implementação. Segundo Bossel, as taxas de ameaça devem ser suplantadas pelas taxas de resposta, ou seja, capacidade de antecipação deve ser estimulada juntamente com a prudência.
Por fim, o condicionante 09 define o papel da evolução, pois, o DS implica em uma mudança adaptável que possibilite um espectro mais amplo possível de respostas para novos desafios. Posturas conservadoras ou inovadoras devem estar associadas a escolhas de horizontes factíveis.
As inúmeras razões tangíveis que podem levar ao pensamento de um ciclo virtuoso, esbarram em inúmeras razões intangíveis à virtuosidade humana. Como equacionar estas possibilidades entre o sonho humano, os limites da técnica e os limites da natureza. Tornar possível avaliar o quanto nossa visão de mundo pode avançar sobre a Terra ou entre o sonho e a realidade. Talvez este seja o limite para encontrarmos a ideia/ação de sustentabilidade.
Apesar de compreender o esforço do autor em discutir elementos em favor do desenvolvimento sustentável, cremos que não há possibilidade de se compatibilizar o modelo capitalista de desenvolvimento com a sustentabilidade ambiental, pois o princípio da ampliação da riqueza – representado pelas taxas de crescimento das economias – é, na concepção dominante, algo que não pode ser alterado. Assim, discutir as possibilidades de outros princípios que rejam nossa relação com a natureza nos parece fundamental.
Como diria um grande mestre da roda da vida “O verdadeiro fundamentalismo é o consumo”(MS) e a desigualdade socioambiental exponencial de hoje. Contrapondo este aspecto e que poderíamos refletir não sobre um (des)envolvimento, mas sim evoluirmos para um jogo de envolvimento, pois não é possível mais o caminho de (des)envolvimento contínuo, um motor perpétuo que parece não se importar com premissas fundamentais da capacidade de suporte em suas diversas escalas e que visa uma acumulação insustentável e deslocando-se cada vez mais das bases que mantém a vida sobre a Terra. Comprometermo-nos com um progresso humano permanente e efetivamente global e globalizante e que, acima de tudo, possa caminhar com a essência do que desejamos a uma futura humanidade, que é de fato sermos humanos. Para tanto, o modelo deverá ser solidário, pois não haverá humanidade sem essa premissa. Esta solidariedade não deve ser somente humana em um sentido social, mas também territorial, pois deve equalizar-se sobre o espaço. Em uma analogia quase final, podemos abstrair desta simples reflexão, que uma outra globalização deverá buscar um “Envolvimento Global Solidário” antepondo-se aos subterfúgios que buscam a sustentação deste modelo de desenvolvimento perverso e escondido consumismo. A verdadeira permanência, durabilidade ou sustentabilidade enquanto axioma, deverá ter essas premissas como uma semente, um ovo que vai gerar uma outra globalização, um novo jogo somente possível com um Envolvimento Global Solidário.
O jogo depende, como afirmamos anteriormente, da existência de dois entes reconhecidos em suas particularidades e colocados em diálogo, golpe a contragolpe, ginga, esquiva, dança. A premência de um sobre o outro, acaba com a possibilidade de continuidade.
Na capoeira, a “parada de angola” representa um momento em que um dos capoeiristas suspende o jogo – por cansaço ou desafio de destreza – e convida o outro a retomada. Neste momento, o outro se vê obrigado a voltar ao pé do berimbau, reverenciá-lo e voltar ao jogo. Antes de qualquer movimento de contundência, o desafiado deve demonstrar conhecimento da situação criada, avaliar e tocas as partes do corpo do outro de onde podem surgir ataques e, quando convidado por aquele que suspendeu o jogo, retornar à peleja.
Talvez seja esse nosso momento. Um momento de colocar em suspensão aquilo que está em andamento, retornar à reflexão acerca do que realmente deve reger nossas vidas (os sentidos do desenvolvimento), demonstrar, pela reflexão que compreendemos os riscos nos quais estamos envolvidos e, pelo toque do outro que pode nos destruir, aceitar o convite para um jogo que se desenvolverá sob novos princípios, ritmos, corpos e, principalmente, pelo diálogo com o outro.
A capoeira é um jogo é um brinquedo / É se respeitar o medo
É dosar bem a coragem
É Luta, é manha de mandingueiro, É um vento no veleiro, um lamento na senzala.
É um corpo arrepiado, Um berimbau bem tocado, Sorriso do menininho.
É o voo do passarinho, bote da cobra coral.
Sentir na boca todo gosto do perigo, E sorrir para o inimigo, ao apertar a sua mão.
É ódio, é a esperança que nasce um tapa explodiu na face e foi arder no coração
Enfim aceitar o desafio com vontade de lutar
Capoeira é um pequeno barquinho
Solto nas ondas do mar
Bibliografia
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Chulas e corridos https://capoeiradb.wordpress.com/2010/11/15/eu-vou-cortar-madeira/ consultado às 19:00 do dia 08 de novembro de 2016.
Recebido em: 14/12/2016
Aceito em: 13/03/2017
[1] Professor Associado I do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia. Leciona na graduação as disciplinas de Análise Integrada da Paisagem e Geomorfologia e no Programa de Pós-Graduação Métodos e técnicas em Avaliação Ambiental e Analise Integrada do Meio Ambiente (tomasoni@ufba.br).
[2] Professor Adjunto do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana – BA. Leciona disciplinas ligadas à Geografia Escolar e Educação Geográfica, metodologia e estágio supervisionado (marcelo.faria65@gmail.com).
Sociedade Natureza na Roda do Clima: a ginga da sustentabilidade e seus jogos
RESUMO: No jogo de capoeira, o toque do berimbau sugere um ritmo e um rito; os corpos, postos em movimento, interagem em sincronia, golpe e esquiva. O jogo depende da composição e arranjo de seus elementos, um desvio, um único movimento em falso e tudo pode se perder em confusão e violência. Assim é na relação entre os indivíduos e grupos que habitam o planeta, um jogo delicado, sempre sujeito à desestruturação. Na contemporaneidade, a ação dos agentes econômicos, centrada principalmente no crescimento ilimitado da produção e do consumo, tem colocado em risco o frágil processo de equilibração que mantém o ambiente como uma possibilidade de reprodução da vida humana. Nos momentos de violência – de crise – no jogo de capoeira nem tudo está necessariamente perdido; é possível que um dos componentes – o berimbau ou um dos jogadores – interrompa o processo e retome, por um novo caminho, a possibilidade do jogo. O mesmo pode ser dito da relação sociedade – natureza. Ainda há tempo para colocar em suspensão o modelo atual e buscar um novo modelo que tenha a sustentabilidade ambiental como uma de suas centralidades, aliada à maior justiça social e mais democracia. O mundo dá voltas; volta do mundo camará!
PALAVRAS-CHAVE: Capoeira. Sustentabilidade ambiental. Solidariedade.
Society and nature: the climate dance and the Global solidarity involvement.
ABSTRACT: In “capoeira” ´s game the play of “berimbau” suggests a rhythm and ritual; the bodies in movement, interact in synchronization, blow and dodge. The game depends on the composition and arrangements of his elements; a deviation, only one false movement and everything turns in confusion and violence. In such a manner is the relation between individuals and groups that live in the planet, a delicate game, always submitted to social disruption. Nowadays, the action of the economical agents, centralized mainly on the ilimited growth and consumption, put in risk the fragile process of balance between the environment and the reproduction of human life. In the moments of violence – crisis- in the “capoeira” game, not necessarily everything is lost; it is possible that one of the components – the “berimbau” or one player – breaks the process and find another way to play the game. The same could be said in relation to society – nature. There is still time to find a new model where environmental sustainability, social justice and democracy will be the core principles. The world turns; turn the world camará!
KEYWORDS: Capoeira. Environmental sustainability. Solidarity.