Conhecendo (n)o Antropoceno

Renzo Taddei é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, e também do Instituto do Mar, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Renzo Taddei[1]

 

Praticamente todos os instrumentos técnicos, sociais e políticos que dispomos para perceber e organizar nosso mundo são produto do Holoceno – época na qual um contexto excepcional de estabilidade ambiental [2] nos permitiu pensar a ação humana como variável, e o mundo como palco inerte. Ao tirar o mundo da condição passiva em que foi colocado pela modernidade ocidental, o Antropoceno põe em questão o arcabouço de recursos de pensamento e ação no mundo que dispomos e aprendemos a valorizar. O modelo republicano que inspira os sistemas políticos dos estados-nação, que já não funciona bem para a governança dos problemas humanos, se mostra pequeno demais para a quantidade de agentes não-humanos que o Antropoceno trouxe para dentro da esfera política, além de incompatível com a sua diversidade de formas de estar no mundo. A grande ciência garante que, através da ortodoxia dos seus protocolos e formas de organização, a maior parte destes mesmos agentes se mantenha fora do seu radar, garantindo, assim a manutenção de certa zona de conforto epistemológico. Como resultado, nos mantemos incapazes de perceber, entender e construir formas de interação política significativa e eficaz com grande parte dos atores não-humanos instituídos de agência para alterar o mundo (além dos muitos humanos em condição de exclusão). Nos últimos mil anos, isso talvez não tenha sido um grande problema. No entanto, no momento em que as curvas de acumulação de carbono na atmosfera, de temperatura, e de frequência e intensidade dos desastres naturais mostram-se todas ascendentes em escalas assustadoras, a manutenção do status quo político e epistemológico é praticamente um suicídio.

É neste contexto que, entre os dias 11 e 22 de abril de 2016, a Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt, ou HKW), centro cultural sediado em Berlim, promoveu a segunda edição do evento Anthropocene Curriculum [3]. No programa desta edição, cujo tema central foi a tecnosfera, uma série de dez seminários de doze horas cada, liderados por intelectuais, artistas e ativistas que têm se destacado com seus trabalhos sobre o Antropoceno – gente como Anna Tsing, Paul N. Edwards e Karin Knorr Cetina, apenas para citar os mais conhecidos entre nós. Dentre os participantes havia sociólogos, antropólogos, filósofos, pedagogos, economistas, psicólogos, arquitetos, urbanistas, advogados, geógrafos, climatólogos, físicos, jornalistas, artistas plásticos, fotógrafos, cineastas, dramaturgos, músicos, youtubers, hackers, feministas, ativistas queer, pós-identitários, animistas, ciclistas, veganos, místicos e outras gentes interessantes, totalizando mais de 150 pessoas. A ideia central do evento [4] , desde a sua primeira edição, se funda no fato de que formas tradicionais de organização disciplinária do conhecimento, e de gestão burocrática da educação superior, mostram-se inadequadas frente aos desafios postos pelo futuro. O evento foi então desenhado de modo a promover interações inusitadas entre sujeitos com trajetórias profissionais e pessoais diversas, de modo a produzir conexões transdisciplinares visceralmente associadas à ação transformadora no mundo.

Participei [5] de três seminários, todos sensacionais. O primeiro, intitulado Axiomatic Earth [6] , trabalhou com a ideia de que não há medição, cálculo ou modelagem que não seja, ao mesmo tempo, uma ação política no mundo [7] , e promoveu intensos debates sobre as decorrências deste fato. O segundo [8], Knowing (in) the Anthropocene [9], provocou os participantes a pensarem diferentes tecnosferas, e que formas de conhecimento uma tecnosfera diferente engendra. E o terceiro, Whose? Reading the Anthropocene and the Technosphere from Africa [10], desestabilizou o debate ao propor que o conceito de Antropoceno pode, ele mesmo – dependendo de como e em quais esferas é trabalhado –, reproduzir velhos colonialismos e criar novos, ao invés de combate-los. A organização do evento me convidou para ser o reporteur do seminário Knowing (in) the Anthropocene; o texto que preparei sumarizando as atividades foi apresentado ao final do seminário, e o vídeo e o texto foram disponibilizados no site do evento. O que o leitor lê a seguir é uma tradução do texto publicado.

 

Este foi um seminário extremamente rico, em muitas e diferentes dimensões – conceitual, sensorial, metodológica –, de modo que é impossível resumi-lo dentro do curto tempo que tenho para esta apresentação. Peço então aos meus colegas que complementem esta apresentação no tempo de discussão que teremos em seguida, preenchendo as lacunas que encontrem em meu relatório.

As atividades do seminário combinaram uma série de métodos e estratégias para engajamento com os temas a serem discutidos: métodos como práticas meditativas; jogos interativos nos quais os participantes puderam conhecer-se e explorar o ambiente físico e natural da sala na qual o seminário ocorreu, bem como o jardim imediatamente adjacente a ela; uma palestra sobre a poluição do platô tibetano, na perspectiva das ciências atmosféricas; uma análise do trabalho do filósofo Alfred North Whitehead e suas implicações para a questão da tecnosfera; uma discussão do projeto aeroceno, do artista Tomás Saraceno – e contamos com o privilégio e a honra de tê-lo conosco no seminário –; e trabalhos em grupo seguidos de debates com todos os participantes.

O programa do seminário anunciou que “um número crescente de humanos e entidades não-humanas estão sendo trancafiadas dentro da tecnosfera, a qual está, ela mesma, presa a uma exploração acelerada de combustíveis fósseis e outros recursos materiais, e depende de certas formas de produção de conhecimento”. A tecnosfera é aqui definida como “uma composição de entidades técnicas, bióticas e abióticas que emergiu em determinado planeta e adquiriu um grau de autonomia autopoiética em relação a outros subsistemas planetários”. Os objetivos principais do seminário são, então, a discussão das questões: “é possível a existência de uma tecnosfera diferente? Que formas de conhecimento podem uma tecnosfera distinta requerer e engendrar?”. Uma premissa básica do debate é a ideia de que “[a] emergência desta esfera é baseada em um ‘imaginário termodinâmico’ particular, e é solidificada por certos padrões de produção de conhecimento, padrões estes que não são permanentes nem inflexíveis”. O projeto aeroceno de Saraceno foi escolhido pelos organizadores do seminário para operar como estímulo central do debate, e ao mesmo tempo como plataforma para desenvolvimento e experimentação de conceitos. O projeto aeroceno consiste na criação de esculturas em formas de balões e esferas, usando materiais simples, como bolsas plásticas e fita adesiva, e que são capazes de flutuarem na atmosfera sem qualquer forma de propulsor químico.

Em novembro de 2015, na localidade de White Sand Dunes, no Novo México, Estados Unidos, Saraceno produziu com seu aeroceno o primeiro voo solar certificado, erguendo passageiros humanos por mais de três horas, e sem qualquer forma de combustível, apenas com a luz solar. O voo do aeroceno é fundado no princípio físico do empuxo, definido como a força ascendente exercida por um fluido que se opõe ao peso de um objeto nele imerso. À medida que a radiação solar aquece a superfície do aeroceno, a densidade do ar dentro dele diminui, seu volume aumenta, e o empuxo o propele para cima. O funcionamento do aeroceno é similar ao dos balões de ar quente, exceto pela ausência de qualquer fonte de energia que não seja a radiação solar.

Photography by Studio Tomás Saraceno, © 2015

Lançamento do aeroceno em White Sands Dunes, 2015. Foto: Studio Tomás Saraceno.

O fato de que os raios do sol podem erguer uma pessoa adulta é, por si só, incrível. Saraceno, no entanto, tem explorado as possibilidades de sua criação de muitas formas criativas interessantes, indo do uso dos balões em projetos de ciência cidadã de monitoramento da atmosfera a conversas com cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT), de modo a explorar as possibilidades tecnológicas do aeroceno. De acordo com Saraceno, um balão com 1,6 quilômetro de diâmetro é capaz de erguer mais de seiscentas toneladas de peso, com uma diferença de temperatura entre o interior e o exterior do balão de apenas 1 grau Celsius. O simples fato de ter pessoas respirando dentro de um balão como este seria suficiente para fazê-lo voar.

Coisas pesadas podem voar, e de fato voam, diz Saraceno. Uma nuvem do tipo cúmulus pode pesar o equivalente a sessenta elefantes. Este fato levou-o, nas palavras de Sacha Engelmann, a “sonhar com cidades nas nuvens”. Na opinião de Saraceno, o “aeroceno encerra em si uma mensagem de simplicidade, criatividade e cooperação para um mundo de relações geopolíticas tumultuosas, lembrando-nos de nossa relação simbiótica com a Terra e todas as suas espécies”.

Durante o seminário, tivemos a possibilidade de desarmar a simplicidade material do aeroceno e revelar seu rico e complexo potencial poético e filosófico. Quatro elementos foram sintagmaticamente alinhados, trazendo à superfície, ainda que não sem turbulência, a dimensão do problema que os organizadores do seminário chamaram de “imaginário termodinâmico”. Estes quatro elementos foram:

1. A reencenação criativa, sob liderança de Janot Mendler de Suarez, do ritual Tapa Wanka Yap, ou Jogando a Bola, da nação indígena norte-americana Lakota, como primeira atividade do seminário. Neste ritual, a relação entre as pessoas e o universo é estabelecida simbolicamente através de processos de dádiva e retribuição;

2. Uma discussão sobre aerossóis, poluição, o platô tibetano, e padrões profundamente enraizados de percepção da atmosfera, liderada por Zoe Lucia Lüthi. Zoe, adicionalmente, promoveu sessões curtas de meditação ao longo do seminário;

3. Uma apresentação da crítica de Alfred North Whitehead ao conceito de “bifurcação da natureza” e o consequente divórcio entre mente e matéria no pensamento científico ocidental. Esta atividade foi liderada por Melanie Sehgal;

4. A subvsersão onto-estética introduzida pelo aeroceno, apresentada por Sacha Engelmann e pelo próprio Tomás Saraceno. O uso da expressão “subversão onto-estética” é parte da ginástica conceitual empregada pelo coletivo na tentativa de construir instrumentos para a constituição de novas formas de corporificação e novos hábitos de pensamento, como dois lados da mesma moeda existencial, mais afinados com as exigências imaginativas-termodinâmicas do trabalho na e com a tecnosfera no contexto do Antropoceno.

É interessante que uma dimensão do imaginário termodinâmico que estamos tentando superar inesperadamente se apresentou e frustrou o que seria, talvez, a atividade mais excitante do seminário: o lançamento de esculturas-aerocenos no parque Tempelhofer, no nascer do dia na segunda-feira, 18 de abril. Saraceno e seu time haviam trazido dois balões ao parque. As condições meteorológicas eram ideais: céu claro e ausência de vento. Depois de um pouco mais de uma hora e meia de aquecimento sob os raios solares da manhã, os aerocenos começaram a – espetacularmente – erguer-se no ar. Pouco minutos mais tarde, dois automóveis da empresa de segurança privada que cuida do parque apareceram, solicitando “autorizações oficiais”. Com isso, o lançamento foi encerrado.

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Lançamento do aeroceno no Tempelhofer. Foto: Renzo Taddei.

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O aeroceno começa a erguer-se. Bronislaw Szerszynski sob o balão. Foto: Renzo Taddei.

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A burocracia arruinou o lançamento. Foto: Renzo Taddei.

Na última atividade do seminário, o grupo de participantes foi dividido em quatro, cada um com a missão de elaborar estratégias para a produção das transformações no imaginário termodinâmico do presente que acreditamos necessárias para a constituição de um futuro melhor. Duas das palavras-chave do seminário, corporificação e hábitos de pensamento, estiveram presentes, ainda que de formas distintas, nas propostas dos quatro grupos.

O primeiro grupo propôs um exercício de caminhada derivado de práticas teatrais chamadas “andar o espaço”. Evitando atuar de forma excessivamente diretiva ou prescritiva, os proponentes do exercício forneceram o mínimo de instruções sobre como explorar o ambiente em que a caminhada ocorreria (o jardim adjacente à sala do seminário) – disseram apenas que a caminhada duraria não mais do que quatro minutos, e os participantes foram incentivados a exercitar sua curiosidade, capacidade de percepção de detalhes, de consciência do espaço e de conexão com os elementos da paisagem. O exercício foi seguido de uma discussão sobre como os participantes perceberam a emergência de padrões espontâneos e não planejados no caminhar, e as reações, igualmente espontâneas, de aderência ou subversão a tais padrões. A atividade foi inspirada, em parte, pela prática de “escuta profunda” de Pauline Olivero, e uma das conclusões do grupo é que padrões de interação social necessariamente respondem e incorporam a arquitetura e as entidades do espaço. O espaço, ou ar, existente entre os indivíduos revelou-se como preenchido, ao invés de vazio.

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Andar o espaço. No primeiro plano, Davide Scarso, professor de filosofia da PUC do Paraná. Foto: HKW.

O segundo grupo executou uma atividade em que o objetivo era o aumento da consciência individual sobre o meio circundante, através do engajamento direto dos sentidos com o ambiente. Os membros do grupo exploraram o parque Tiergarten, onde o HKW está localizado; aparentemente, alguns membros do grupo comeram flores in natura. O grupo também explorou a prática de geocaching [11], que consiste na criação de redes de trocas impessoais de bens e narrativas.

O terceiro grupo propôs a exploração de novas formas de conceituação da morte no contexto do Antropoceno, dentro de um cenário de criação de relações de responsabilidade e reciprocidade com outras formas de vida. O grupo propôs experimentos mentais como a criação de uma base de dados de um mundo em processo de morte; mecanismos de visualização que permitam que cada indivíduo veja quantos e quais seres vivos têm que morrer para que cada um de nós mantenha-se vivo; e a exploração provocadora e subversiva de mecanismos como o mercado de compensação de carbono, substituindo este pela vida: um mercado de compensação de vida, no qual as relações jamais seriam perfeitamente comensuráveis, e os participantes teriam que acomodar e acomodar-se a isso.

O quarto grupo trabalhou na construção de estratégias para a integração do aeroceno a formas locais de conhecimento do meio ambiente na Tanzânia e na Índia, através da constituição do que Mikey Glantz chamou de “conhecimento útil e utilizável”. O público alvo na Índia, no esquema imaginado, seriam crianças e estudantes universitários. A percepção e a sensibilidade seriam trabalhadas através da combinação de conhecimento científico e gêneros expressivos locais como a dança, a música, projetos artísticos etc.. Na Tanzânia, o aeroceno seria parte do treinamento de jovens facilitadores que fazem a mediação entre organizações internacionais de desenvolvimento e comunidades locais. O aeroceno seria também uma ferramenta para a discussão do legado do colonialismo na história da ciência.

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Da esquerda para a direita: Renzo Taddei (Brasil), Melanie Sehgal (Alemanha), Perrin Selcer (EUA), François Bucher (Colômbia), Pierre du Plessis (Botsuana), Zoe Lucia Lüthi (Alemanha), Thiago Cardoso (Brasil), Davide Scarso (Brasil), participante não identificado e Virginia Garcia Acosta (México). Foto: HKW.

Nas bonitas palavras finais de Bronislaw Szerszynski, um dos organizadores do seminário, o caudal constituído por nossas discussões, jogos e experimentações materiais e conceituais resultaram em um delta, onde o engajamento e a energia do grupo espraiou-se em distintas direções, aumentando a fertilidade potencial dos campos existenciais dos quais somos parte, e onde as sementes depositadas por este seminário certamente germinarão.


[1] Renzo Taddei é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, e também do Instituto do Mar, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

[2] Se comparada ao registro histórico das variações climáticas evidenciado pelas pesquisas paleoclimatológicas.

[3] http://www.anthropocene-curriculum.org

[4] http://www.anthropocene-curriculum.org/pages/root/idea/

[5] A participação no evento foi financiada pelos projetos de pesquisa CRN3035 e CRN3106, com fundos do Instituto Interamericano para Pesquisas em Mudanças Globais (IAI).

[6] Organizado por Susana Caló, Adrian Lahoud, Godofredo Pereira, Matteo Pasquinelli e Susan Schuppli.

[7] Ver materiais produzidos neste seminário no link https://goo.gl/k4qF4c;

[8] https://goo.gl/1i2AKH;

[9] Coordenado por Sasha Engelmann, Zoe Lucia Lüthi, Melanie Sehgal, Janot Mendler de Suarez, Bronislaw Szerszynski, Mark Lawrence, Franz Mauelshagen, Tomás Saraceno e Falk Schmidt.

[10] Coordenado por Clapperton C. Mavhunga, Shadreck Chirkure, Gabrielle Hecht, D. A. Masolo e Chaz Maviyane-Davies. Ver https://goo.gl/V63Opu.

[11] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Geocaching.