Sismografia*
Ana Godoy[1]
Quand le monde devient si noir qu’il faut tâtonner avec les mains, et qu’on pense qu’il se défait comme une toile d’araignée! C’est comme quand quelque chose est et cependant n’est pas. Quand tout est sombre, avec encore une lueur rouge à l’ouest, comme d’une forge.
(Woyzeck de Bruckner)
Em outra ocasião[2], ao me deter no prelúdio de Coração de cristal, de Werner Herzog – na cena em que contemplamos o nevoeiro de time-lapses[3] que escorre ondulante acompanhado de uma tomada atordoante do alto de uma cachoeira –, dizia que ele nos permitia pensar a menor inclinação de uma folha como uma vertigem que sobrevém, pois entendia, como ainda entendo, que a catástrofe não diz respeito exclusivamente aos efeitos de grandes eventos, mas ao engendramento de novas configurações espaço-temporais resultantes seja dos colapsos das subjetividades e dos cotidianos no contemporâneo, seja de certa desorganização das existências. Nesse sentido, a catástrofe correria por baixo, conectando-nos aos eventos, fazendo ressoar o corpo da terra em cada corpo singular – como se a inclinação de uma folha reunisse nela toda a potência de uma convulsão desordenada que nos espreita e convoca.
Tal como Herzog e o selvagem visionário Hias de Coração de Cristal, é preciso então contemplar a catástrofe em seu minimalismo, e perguntar-se com que “palavras de uma linguagem medida poderíamos chegar a enunciar o excesso ali tornado visível” (BUESCO; CORDEIRO, 2005, contracapa).
É preciso, talvez, então, a contrapelo de uma ecologia que busca integrar os diferentes níveis de relações para minimizar os efeitos de uma catástrofe projetada, integrar a noção de ruptura que ela porta na experiência do devir das gentes e da Terra. O que ponho em jogo aqui é, portanto, um combate a um modo de governo cujo regime de práticas não se ocupa mais de reduzir ao previsível e familiar o que se desconhece, mas trabalha a partir do reconhecimento de que a catástrofe, por pertencer ao futuro (e por isso tornar todos os futuros catastróficos), não pode ser conhecida. Nesse sentido, ela se apresenta como um dispositivo de governo acionado por modos diversos de conhecimento, articulados a uma dada racionalidade, em que a imaginação (os futuros imaginados convertidos em dados de projeção de cenários) acoplada à experiência sensorial (do medo, da ansiedade) tornam o que advém – o novo, a ruptura e a descontinuidade – permanentemente ameaçador.
O combate que proponho diz respeito, então, a uma certa relação com a instabilidade, em que se está sempre à beira de romper com uma ordem que reflete as experiências humanas como sendo (ou devendo ser) afeitas à aceitação passiva de tudo aquilo que se contrapõe à mudança. Diz respeito também à potência do que resta quando tudo se apresenta a nós como perdido. E, por fim, diz respeito a uma recusa em catastrofizar toda e qualquer situação – impulso intelectual que nada mais é do que o reconhecimento de que nossa herança comum, como pontuou o polêmico filósofo Zizek (2012), é uma mesma catástrofe ontológica.
O leitor notará, assim, que este breve artigo é uma espécie de composição sismográfica, no sentido de remeter a uma arte de registrar os abalos e movimentos imperceptíveis que põem em jogo intelectuais e especialistas e o bloqueio do investimento político numa ruptura radical – seja pela recalibração da imaginação, que não cessa de ser rebatida sobre um futuro catastrófico, seja pela despolitização da imaginação, que a leva a produzir as imagens de um mundo desejável igualmente catastrófico, uma vez que em nome dele todo horror se justifica; em ambas as vias, ela desempenha um papel de suplemento de governo traduzido em termos de “cenários futuros” econômico-climáticos (ARADAU; VAN MUNSTER, 2011). Pois é preciso não esquecer que
é a imaginação que atravessa os domínios, as ordens e os níveis abatendo as divisórias, co-extensiva ao mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente (DELEUZE, 2006, p. 284).
E que, ao fazê-lo, conecta o atual ao virtual. É precisamente está coextensividade ao mundo que torna a imaginação criadora, permitindo-nos confrontar a impossibilidade e criar mundos. E é precisamente por este motivo que ela se torna imprescindível, contemporaneamente, para o governo das populações em relação aos eventos futuros (ARADAU; VAN MUNSTER, 2011). Nesse sentido, as mudanças climáticas se avizinham dos atentados terroristas, pois participam do mesmo mundo imaginado no qual o desconhecido modula práticas de governo e subjetivação da forma mais insidiosa: via os sentidos.
O ABC das catástrofes
Deixemos, por ora, Hias em silêncio na mais alta montanha, para nele divisar “o mais concentrado de todos os silêncios”, como assim o chamou Aníbal Machado. Pois este é aquele
[…] que reúne as forças do cosmos e resume numa tensão extralúcida as experiências do tempo, o silêncio dos silêncios – […] aquele, de poucos instantes, anterior à catástrofe que sabemos irremediável e próxima. […] Nesse momento, a única saída é virarmo-nos para o outro lado da vida e nos vermos passeando no jardim do bairro, parados nalgum terraço ou sentados numa espreguiçadeira, a apreciar o próprio desastre que nos vai vitimar. Se ocorrer alguma frase de ternura familiar, por exemplo: “Vamos dormir, meu bem?” – manifestação alucinatória de um desejo de volta à segurança em circunstância impossível – o trágico poderá ser evitado (MACHADO, 2004, p. 100).
Este pequeno trecho que abre o ABC das catástrofes, série de fragmentos que posteriormente passaram a integrar o igualmente fragmentário Cadernos de João, exortam um modo de pensar que tem na força da imaginação, no seu vagabundear errante entre delírio e ciência, os meios para evitar não a catástrofe, mas o trágico – que seria, quem sabe, converter-nos em fanáticos, em fascistas, em receosos patológicos, em crédulos obstinados, em retraídos afetivos, modos variados da indiferença que provoca “o anestesiamento progressivo das forças de vida” (GIL, 2004, p. 99), reduzindo-nos ao “estado hipnótico-consumista do Homo Otarius” (PELBART, 2006, [s.p.]).
Vamos imaginar então que o trágico a ser evitado é também aquele em que o anúncio da catástrofe ou sua realização nos reconforta intelectualmente (ou porque “era esperado”, ou porque “tinha que dar nisso”), pois nos permite crer que nossa inteligência, ainda assim, chega a algum lugar (o conhecido desconhecido), esse lugar onde se reúnem especialistas, onde não há praças tampouco varandas. Ali onde tudo está morto ou em vias de morrer. O trágico a ser evitado seria ainda (e então) o consenso obsessivo que nos impediria de apreender a disrrupção radical de certo modo de vida ao (tentar) tornar menos intensos os abalos e as flutuações que percorrem, subterrâneos, a pretensa solidez do “negócio da administração da vida”, ao qual os especialistas nos querem enganchar por todos os lados.
Mas o que há, afinal, de tão importante no jardim do bairro, na varanda, na espreguiçadeira e na voz que convida “vamos dormir, meu bem?” senão os corpos todos entremeados, abandonados em preguiça sobre a lona (talvez listrada), caminhando a passos lentos ou em frenética e combativa correria no jardim – que poderia ser aquele no Parque Gezi ou na Praça Roosevelt, por que não? –, debruçados sobre os arcos de ferro (ou concreto?) de uma varanda qualquer, tudo isso em qualquer lugar, tão longe e tão perto que mal conseguimos vislumbrar os corpos que se aninham. Há corpos, diremos. Há gentes. E estão sobre a Terra, ainda que a varanda se confunda com a amurada de um transatlântico, e a espreguiçadeira com uma maca e o jardim não passe de uma floreira diante de uma casa, numa rua qualquer de Kyoto – ou do cenário de Nelken de Pina Bausch. Trata-se simplesmente de um outro espaço-tempo, efeito de um vigor e uma cintilância que nos fazem desviar da morte em vida, pois escapa a um certo tipo de ordem que inclui tudo, inclusive a catástrofe, e que estrutura nossa experiência sensível do mundo segundo um regime de governo por antecipação.
Maldição I
Todavia, fala-se de fim e de catástrofe como se estes não se dirigissem ao limite do conhecimento e a uma radical incognoscibilidade, como se não dissessem respeito ao corpo, como se o corpo neles não estivesse terrivelmente implicado, como se nada, nenhum deles, dissesse respeito à Terra. Graças a esse lugar onde se encastelaram especialistas, e alguns intelectuais, espécie de lócus amaldiçoado onde qualquer futuro é catastrófico e por isso natimorto, interpôs-se um abismo entre o corpo próprio e o corpo da Terra, tornando equívoca a compreensão de ambos. Assim é que o que se passa em um está longe (demasiadamente) do que se passa no outro, de modo que a intensidade experimentada pelo primeiro nada diz ou pode dizer do que acomete o segundo. Por essa razão, não vamos dormir, meu bem; não recriaremos nossas existências. Vamos, sim, alucinar a catástrofe até a exaustão e ver se ela dá em algum lugar, mesmo que esse lugar seja apenas aquele onde nossa inteligência e seus cálculos possam nos levar e a todos os especialistas: sem varanda, nem jardim, nem espreguiçadeira, nem gentes. Mundo inabitável. Lá haverá apenas degelo nas calotas, belas frases, taxas e variáveis, o infinito dos tratados que algum país não assinou, conversões da dívida, soluções tecnológicas, estratégias de geoengenharia, tabelas, fórmulas, doenças com nomes estranhos, e toda sorte de acordos, negociações e compromissos infames.
Onde tudo se passa
Mas se olharmos com atenção, nos daremos conta de que “eu e meu bem”, ali aninhados,
[…] esse aglomerado de ossos, vísceras e humores, esse complexo de fibras excitáveis e depósito de memórias – é menos unidade orgânica do que passagem de fluídos, folhas da grande árvore cósmica que liga céus e terra, espírito e sangue, espaço de dentro e espaço de fora numa viva transmutação de forças com o Universo. (MACHADO, 2004, p. 54).
Tudo se passa então nessa distância – na qual, com certeza, não cabem nem os especialistas, nem os fascistas e nem os chatos, porque, afinal, e a razão é simples, é preciso saber “produzir catástrofes com uma naturalidade que desconcerta e liberta, como se obedecessem às leis de um outro mundo que parodiasse o nosso” (MACHADO, 2004, p. 164), tal como o fizeram os irmãos Marx e Buster Keaton, ou Fitzgerald e Lowry, ou Tarkovsky, Herzog e Béla Taar, ou o Homem em pé em Taksim e a anônima conexão-batom que se dirigia para a Praça da Sé, ou ainda o silencioso Vesúvio ao recobrir de lava a casa de Vedio Sirico, rico comerciante de Pompéia, na qual estava inscrita a frase “Salve Lucrum”, ao lado de outras onde se lia “Lucrus gaudium” (Lucro é alegria). De modos diversos, do Vesúvio e seus humores à conexão-batom e seus amores, passando por cineastas e romancistas, eles expõem tudo o que tomávamos por garantido. E a subversão na ordem das coisas que põem em marcha tem lugar simultaneamente na vida e na composição dos filmes, performances e romances.
Assim é que o problema que a catástrofe coloca não é redutível à magnitude do evento (aspecto sem dúvida importante), mas se amplia e intensifica segundo o modo como nos faz engajar com o mundo – essa a única maneira talvez de avaliarmos o grau de indiferença ou em que medida já não passamos de sobreviventes.
[Pois é preciso não esquecer que a catástrofe sob a forma de crise econômica permanente se tornou um estilo de vida, flexível o bastante para produzir e capitalizar toda sorte de miséria, de destruição, de alterações e altercações, inclusive, e talvez especialmente, as climáticas. Nesse sentido, a catástrofe instauraria um regime antecipatório aberto e ilimitado de organização social, econômica e política, em que salvar o lucro ou dizê-lo bem-vindo e com ele se regojizar é o que deve (continuar a) ser feito, a que preço for.]
Do ponto de vista do cosmos
Parece que a natureza teve desejo de criar um laboratório de cristalização nas vísceras do Vesúvio.
(Monticelli e Covelli)
Mas nem “o último dia de Pompéia”, que se passou em 79 d.C, em que a catástrofe veio em direção aos seus habitantes, nem a vila do século XVIII imaginada por Herzog em Coração de Cristal, onde, tomados num transe coletivo, seus habitantes vão em direção à catástrofe como sonâmbulos, foram tão catastroficamente desgraçados se considerarmos a catástrofe que é quando nos fazem crer que a primeira é uma fatalidade e a segunda uma destinação inelutável; e que somos um único sujeito universal sobre uma Terra única que decide tudo sobre ela, ao invés de uma multiplicidade com ela – quem sabe “nossa única chance para todas as combinações que nos habitam” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 19) e para os mundos que habitamos, e cuja qualidade, igualmente única, torna-os não permutáveis e sem equivalência. Portanto, nada será tão simples, nem ontológica, nem material, nem cognitiva e nem climaticamente do ponto de vista do cosmos, do qual participamos “eu e meu bem” e nossa espreguiçadeira, mas também os especialistas, os intelectuais, os chatos e os fascistas, ainda que sem dúvida não nos assemelhemos, ainda que com certeza o capital assim o pretenda.
Lucrum gaudium
Estamos em Pompéia e também num vilarejo da Baviera. Aqui e ali há potes de barro, taças de cristal, amores e perfídias, mercados e mercadorias, e ventos agitando a vida e as cortinas, crimes sendo maquinados, grupos insurretos, bobagens sendo ditas, e toda sorte de microscópicas ebulições atiçando os corpos uns em direção aos outros e à Terra e suas atmosferas. E as pequenas rachaduras que craquelam lentamente as taças e as paredes das edificações coincidem com aquelas na política, nas existências individuais e coletivas de então, que parecem de algum modo insistentemente nos percorrer e concernir.
Talvez a ideia fosse que a Pompéia remontada por peritos nos desse a ver apenas a enormidade da catástrofe que sobre seus habitantes se abateu, e não a intensidade das existências ali petrificadas numa variedade de últimos gestos que nos habituamos a chamar de “o último dia de Pompéia” – como se Pompéia, como a Terra, fosse ela também uma unidade sintética que a catástrofe recobriria, alheia aos inúmeros gestos que construíram as infinidades de cenas que compuseram aquela Pompéia, rica estação de férias dos romanos, passagem privilegiada de mercadorias, que ali encontrou seu derradeiro fim; mas não sem antes ter experimentado um violento terremoto, em 65d.C., que pouca gente matou, e que destruiu boa parte da cidade, então abandonada e saqueada. E os que nela permaneceram, e também os que chegaram, se ocupavam, naquele preciso último dia, em meio à ruidosidade dos negócios, das pequenas políticas e grandes obras, de reconstruí-la e aprimorá-la em proveito dos humores variáveis do Império – e de certo mal escutaram o Vesúvio. Mas o princípio do Lucrum gaudium não é precisamente este, capitalizar nossos sentidos? Fazer escutar e perceber certas coisas em detrimento de outras? Transformar toda fatalidade em uma questão de ganho ou perda (moral, divina, econômica, mas sempre decalcada), fazendo-nos compadecer inermes?
Todavia, a catástrofe (anunciada ou não) tampouco é uma destinação a ser cumprida, mas aquilo que põe incessantemente em jogo o gesto livre diante de tudo quanto se nos impõe exigindo total aceitação e abandono. É isso que Hias, o vidente de Coração de cristal, torna visível: a delirante ausência de vontade que faz com que muitos alucinem a catástrofe, levando a toda sorte de horrores. A questão, então, não é simplesmente ver, mas, sim, que ver não é o bastante. Hias é essa marcação constante da urgência da decisão. Dirá ele a um dos habitantes que ouve dizer da chegada de um gigante que virá destruí-los, que se trata apenas da longa sombra de um anão, acrescentando: “Se nada mudar, você achará que isso é uma bênção.” – uma vez que a intensidade da catástrofe nada tem a ver com sua dimensão, como tão bem mostrou Glauber Rocha em Terra em transe, e que a distribuição entre benção e fatalidade, sempre convertida em lucro, mal disfarça a impotência da vida que se estanca ao alcançar uma finalidade. A fórmula do cristal vermelho é também aquela do Lucrum gaudium.
De modo que a efetiva (por assim dizer) catástrofe, aquela subterrânea e imperceptível, tal qual a revolução, que não cessa de abalar os micro e insidiosos fascismos, bem como os “Bloons”[4] que nos espreitam, corre por entre e pelos corpos – e com sorte nos fará pensar sobre a percepção e a consciência (como já o fizera Nietzsche), sobre a imaginação e a estética, sobre a ética e a possibilidade de contemplar um outro mundo neste aqui.
Pois sabemos, como certo cinema há muito vem insistindo, que é em meio à “ruína material e a desordem anímica” (RANCIÈRE, 2013), seja imersos numa cotidianidade de chuva e vento, de seca e devastação, de penúria e apatia, que aqueles anônimos cujas vidas bordejam a mais extrema precariedade, conhecidos tão-somente como dados estatísticos, encarnam efetivamente uma possibilidade de mudança, e fazem tremer os intelectuais e especialistas.
Maldição II
Mas onde tudo se passa? Nas ruas, nas praças, nas casas, nas oficinas, em lugares “onde se chocam e se enfrentam também afectos, palavras, corpos, que desejam e de alguma forma nos fazem desejar fugir” (MIRANDA, 2014, [s.p.]). Pois se para a catástrofe que é o capitalismo a questão é, a qualquer preço, “Salvar o lucro” sem perder o clima (!), o problema que se nos coloca, por outro lado, é como viver e como fazer a vida persistir, ou como enfrentar os fazedores de promessas que nos empurram existências sonambúlicas, confinadas e estéreis, submersas em medo e culpa, garrafas pets, pneus e bobagens, projetos de renovação urbana e reciclagem geral, desastres calculados e antecipadamente cumpridos.
Como em Coração de cristal, também em Kárhozat (Maldição), de Béla Taar, e em Stalker, de Tarkovsky, um vidente confronta as coletividades amaldiçoadas, onde se está numa terra habitada por mortos vivos, em que o lucro provável é a derradeira catástrofe, em que se põe a crença à prova numa zona devastada, reenviando-nos de novo e outra vez para este mundo, esta Terra, sempre num corpo a corpo com a matéria primitiva que constitui tudo o que é vivo.
Está-se então na Praça Taksim, é-se o homem em pé e silente ao lado de tantos outros, está-se mais uma vez nas escadarias da Sé, na Candelária, é-se o índio, a mulher, o negro, o jovem, a criança, o animal, é-se enfim o que há de mais precário, e luta-se com o corpo pelo corpo, para que a vida, em todas as suas formas, persista – esse é o sentido da Terra.
Em meio àqueles que desejam salvar o lucro, alguns muitos já não escutam o Secretário de Estado, o general, o patrão, o técnico, o especialista. Já não escutam o grande paranoico sob o discurso da razão. Intuem que esse mundo está destinado, sem dúvida, à catástrofe, sentem em seus corpos que ele se arruína, e sabem a que se aferrar uma vez mais: boca a boca, coração a coração – “vamos dormir, meu bem?”, nestas ruas, neste jardim, nesta praça, nestas florestas, nestas cidades, sobre esta Terra e sob este “céu que nos protege”.
Mas se todos estes filmes parecem convidar o intelectual e o especialista a interpretarem a catástrofe, convidam-nos, de outra parte, a esgotar nossas interpretações até o ponto onde só reste a materialidade dos corpos, suas existências; momento em que finalmente se vê e escutam coisas nunca antes vistas ou ditas, e para as quais nos faltam as palavras – pois “aquilo para o qual temos palavras, já o deixamos para trás” (NIETZSCHE, 2006, IX, § 26).
E “com suas pausas e seus temores, o stalk é [então] a marcha daqueles que avançam em território desconhecido” (DANEY, 1981, [s.p.]), aqueles que espreitam e que, cambaleantes, numa dança singular, caminham sobre a Terra, contraindo o entorno e apostando contra ele (RANCIÈRE, 2013), porque sabem que tem de haver mais do que a platitude burocrática das planificações e gestões, dos cálculos e previsões aos quais tudo que é vivo foi reduzido.
Para encerrar: “o que fizestes enquanto esperavas?”
Os cineastas e filmes aqui elencados, tal qual o Vesúvio, lembram-nos que é preciso contemplar, pois contemplar é questionar; é preciso, então, estar atento à corporalidade, à fisicalidade do mundo. Cada um a seu modo, eles nos forçam a concentrar-nos no que as pessoas fazem e dizem, em como agem no mundo, como se implicam com os elementos e em como os próprios elementos se exprimem. Talvez aí os gestos sejam imperceptíveis, mas, sem dúvida, tão intensos quanto arrebatadores. É isso que nos permite seguir os pequenos abalos, perceber como eles comunicam uma catástrofe singular na passagem de uma coisa a outra, seja como esgotamento de uma época ou de um modo de viver, forçando-nos em outra direção.
Há corpos, há gentes, mas porque efetivamente há a Terra – sua gravidade, sua temporalidade, seu magma, seus gases, sua atmosfera, suas variações. Sobre ela, Hias, o selvagem visionário de Coração de cristal, estende o braço em direção ao horizonte. Ele contempla “a distância para o fim do mundo”. Ao som de “Oh wie nah ist der Weg hinab”, de Popol Vuh, estamos aqui e ali, titubeantes, nas praças, nas ruas, nos jardins, nas amuradas, nas espreguiçadeiras, nos espaços os mais insuspeitados – e talvez seja isso que fazemos, alguns de nós, enquanto esperamos: contraímos distâncias, aproximamos corpos (orgânicos, conceituais, imagéticos), relatos (científicos, artísticos, filosóficos, anônimos), buscando de algum jeito delimitar as formas de experiência sensível que nos permitem ainda e de novo crer no mundo. E tomados pela vertigem, participamos do ilimitado, e vemos, antes mesmo que se torne visível, uma nova terra que emerge das ruínas desta.
É preciso, portanto, dar algum crédito a Aníbal Machado, para quem não importa qual seja a arquitetura do que edificamos, “seus escombros sempre obedecerão ao estilo barroco”, e, por isso, como queria Lezama Lima (1988), serão sempre começo – arte da contraconquista, ou “barroco de trincheira”, ou ainda, se se preferir, rebelião subjacente que, tal qual um laboratório de cristalização, junta os restos, suspeitando das grandes causas e apostando na reviravolta.
Ao invés de integrar a morte ao seu projeto (de futuro), como o faz o bom revolucionário, o cidadão de bem, o especialista e o capitalismo verde, o insubmisso faz circular a vida. Ao reclamar um ethos em cada gesto[5], sejam eles os mais banais, sustenta a abertura para um futuro incalculável, liberando, assim, a imaginação e seu deambular (da ciência ao sonho e vice-versa) dos cálculos e dos cenários onde se amesquinha e agoniza.
Trata-se sempre dos modos variáveis pelos quais nos engajamos sensível e concretamente com o mundo, e da diferença infinita de expressões desse mundo.
There’s no end. No end now.
Over and Done, Mihály Vig (para Kárhozat)
Referências
GODOY, Ana. A menor das ecologias. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, ano 8, n. 13, p. 143-154, 2011. Disponível em: <https://cadernosdesubjetividade.files.wordpress.com/2013/09/cadernos2011_baixaresolucao.pdf>. Avesso em: 20/10/2015.
ARADAU, Claudia; VON MUNSTER, Rens. Politics of Catastrophe: Genealogies of the Unknown. New York: Routledge, 2011.
BUESCU, Helena Carvalhão; CORDEIRO, Gonçalo (orgs.). O Grande Terramoto de Lisboa. Ficar Diferente. Lisboa: Gradiva, 2005.
CANGI, Adrián. Prólogo. Papeles insumisos. Imagen de un pensamiento. In:
PERLONGHER, Néstor. Papeles Insumisos. Buenos Aires: Santiago Arcas, 2004.
CORAÇÃO de Cristal. Alemanha. Dir. Werner Herzog. 1976. 1DVD (94min), col. Título em alemão: Herz aus glauss
DANEY, Serge. La presencia física de los elementos. Libération, 20 de noviembre de 1981. (In: Cine, arte del presente. Antología al cuidado de Emilio Bernini y Domin Choi. Argentina: Santiago Arcos, 2004).
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
GIL, José. Metafenomenologia das invejas. In: PELBART, Peter P.; LINS, Daniel (org.). Nietzsche e Deleuze – Bárbaros e civilizados. São Paulo: Annablume, 2004.
KÁRHOZAT. Hungria. Dir. Béla Tarr. 1988. 1DVD (120min). Título em inglês: Damnation
LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.
MACHADO, Aníbal. O Abc das catástrofes. In: Cadernos de João. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
MIRANDA, Antonio. Béla Tarr, ‘El Tiempo del después’, de Jacques Rancière. Observaciones Filosóficas, n. 19, 2014. Disponível em: <http://www.observacionesfilosoficas.net/belatarr.htm>. Acesso em: 25 nov. 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo ésar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
PELBART, Peter P. Como viver só. Palestra. In: SEMINÁRIO: VIDA COLETIVA, 4. Seminários Internacionais para a 27ª Bienal de São Paulo. São Paulo, 2006. Disponível em: <https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2012/12/19/como-viver-so-palestra-com-peter-pal-pelbart-video-do-4o-seminario-vida-coletiva-seminarios-internacionais-para-a-27a-bienal-de-sao-paulo-abaixo-a-transcricao-integral-da-p/>. Acesso em: 10. Nov. 2015.
RANCIÈRE, Jacques. Béla Tarr, el tiempo del después. Trad. Mariel Manrique. Santander: Shangrila Textos Aparte, 2013.
STALKER. União Soviética. Dir. Andrei Tarkovsky. 1979. 1DVD (163min).
ZIZEK, Slavoj. Os intelectuais e a paixão pela catástrofe. Introdução. La Repubblica, 31/03/2012 [tr. br. de Moisés Sbardelotto]. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/508096-os-intelectuais-e-a-paixao-pela-catastrofe-artigo-de-slavoj-zizek>. Acesso em: 25 nov. 2015.
Recebido em: 12/11/2015
Aceito em: 12/11/2015
* Este artigo é uma contribuição da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais financiado pelos projetos do CNPq Processo 550022/2014-7, CNPq No. 458257/2013-3 e FINEP Processo 01.13.0353.00.
[1] Ana Godoy é doutora em Ciências Sociais (Ciência Política) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora associada da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. É autora de A menor das ecologias (São Paulo: Edusp, 2008).
[2] Refiro-me ao artigo “A menor das ecologias” (2011).
[3] A paisagem da abertura, (que integra a sequência da queda d’água, foi filmada na Bavária; ela é suplementada por uma montagem de uma série de tomadas feitas ao longo de dez dias no Parque Nacional Denali (Alaska), no Parque Nacional de Yellowstone (Wyoming), em Monument Valley (Colorado) e nas Cataratas do Niágara. A escolha destas localidades, sua importância, não caberia numa nota explicativa. Do ponto de vista deste artigo, a suplementação seria um deslocalizador, um desidentificador, no sentido de que a bavaria não é “a” bavaria, mas uma Bavaria qualquer em qualquer lugar. Nesse sentido, uma localidade é sobretudo um funcionamento, uma maquinação de elementos que descrevem uma certa ecologia.
[4] “Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário. Bloom tem a tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niilista […] Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis.” (PELBART, 2006, [s.p.]).
[5] Ver aqui o prólogo contundente de Adrián Cangi para o belíssimo livro de Néstor Perlongher, Papeles insubmissos.
Sismografia
RESUMO: A partir da relação entre eventos diversos e certa cinematografia e literatura, o artigo procura esboçar a relação entre catástrofe, governo e imaginação como componentes eficazes das mudanças climáticas, bem como, e principalmente, vislumbrar seus abalos e os funcionamentos que a eles escapam e se contrapõem.
PALAVRAS-CHAVE: Catástrofe. Imaginação. Mudanças climáticas.
Seismography
ABSTRACT: As from the connection between various events and certain cinematography and literature, the article tries to draft the relationship between catastrophe, government and imagination as effective components of climate change, as well as mainly tries to glimpse their undermining and the functionings that escape and oppose to it.
KEYWORDS: Catastrophe. Imagination. Climate change.