Por Janaína Quitério
Na matéria intitulada “Crescimento populacional aumenta mudanças climáticas, dizem cientistas”, elaborada pela agência France Press em 2012 e reproduzida pelo portal de imprensa brasileiro G1, aparece a discussão sobre o “grande responsável indireto pelo aquecimento global” – debate causador de controvérsias durante a conferência Planeta Sob Pressão (Planet Under Pressure), realizada em Londres, meses antes da Rio +20, e que se mantêm aquecidas até hoje.
O problema é enforcado logo na gravata, ou linha-fina, da notícia – nome técnico dado ao resumo inserido abaixo da manchete jornalística – quando duas soluções foram apresentadas: diminuir as taxas de natalidade e mudar o padrão de consumo. À primeira proposta, Francine Modesto dos Santos, socióloga e doutora em Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dá o nome de “neomalthusianismo mobilizado em nome das mudanças climáticas”.
De fato, na declaração final preparada pela comissão científica da conferência que antecedeu a Rio +20, o aumento da população global e a aceleração do consumo foram mencionados como entraves para o desenvolvimento sustentável. Tal conexão tem sido problematizada como uma retomada dos princípios de controle populacional propostos pelo economista e demógrafo britânico Thomas Malthus, que, no final do século 18, defendeu a tese de que o crescimento populacional era o principal responsável pela miséria no mundo, já que não haveria condições de produzir alimentos para todos. Hoje, a construção argumentativa do neomalthusianismo, que faz relação entre crescimento populacional e mudanças climáticas, tem aflorado, segundo Francine Santos, tanto em meios acadêmicos quanto na imprensa desde a divulgação do quarto relatório (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007.
Em artigo publicado em 2010 sobre a temática, ela escreve: “Algumas correntes de pensamento já apresentavam – e, com a divulgação dos cenários sobre as mudanças ambientais pelo IPCC, começaram a apresentar ainda com mais veemência – a necessidade de limitar o número de pessoas no planeta”. No quinto relatório (AR5), divulgado no final de 2013, essa relação linear entre crescimento demográfico e pressão sobre os recursos naturais não apenas se manteve como continuou central ao ser posta como “um dos mais importantes drivers do aumento das emissões de CO2 provenientes da queima de combustíveis fósseis”, ressalta a demógrafa.
Mas pode mesmo o crescimento populacional ter papel preponderante no agravamento de problemas ambientais a ponto de se justificar o ressurgimento de controles natalistas, tais como os que já foram aplicados nos países em desenvolvimento diante do medo da explosão populacional atribuída a eles em décadas anteriores? E por que essa relação direta – que Modesto dos Santos classifica de reducionista e limitadora – entre volume populacional e impacto ambiental ainda permanece presente em relatórios importantes como os do IPCC, uma referência internacional em pesquisas sobre mudanças climáticas?
Ricardo Ojima, coordenador do Programa de Pós-graduação em Demografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGD/UFRN), dá pistas sobre essa associação no artigo “As dimensões demográficas das mudanças climáticas: cenários de mudança do clima e as tendências do crescimento populacional”, publicado em 2011. Para ele, o fato de ter havido um aumento expressivo tanto da concentração de dióxido de carbono na atmosfera quanto das taxas de crescimento populacional em ritmo efusivo, ambos na segunda metade do século 20, fez vincularem, de forma automática, os aumentos das emissões de gases de efeito estufa (GEE) à expansão populacional.
Não que o aumento da população não exerça pressão sobre os recursos naturais – exerce! –, mas Ojima problematiza: quando houver diminuição do volume populacional, as pressões ambientais deixarão de existir? “Em minha opinião, isso não ocorrerá porque não se trata apenas de crescimento populacional, mas do impacto que cada indivíduo tem sobre os recursos”, explica. Essa é também a avaliação da demógrafa Francine Modesto dos Santos, para quem tratar a população como um problema ambiental – tornando-a alvo principal de medidas mitigadoras – é perigoso: “O decrescimento da população não implica necessariamente em queda da degradação ambiental, pois é o atual modelo de produção e níveis de consumo que exercem uma maior influência sobre a mudança climática”, avalia. Para ela, focar na questão do volume populacional é, na realidade, um argumento que encobre os verdadeiros responsáveis pela maioria dos problemas de degradação ecológica no mundo.
O combate às afirmações de que o aumento do volume da população tem relação direta com o aumento nas emissões de GEE começa quando os demógrafos constatam que cerca de 80% das emissões ocorrem nos países que respondem por cerca de 20% da população mundial. Essa ligação desconsidera, ainda, a estrutura etária, os processos de urbanização ou a redução do tamanho médio dos domicílios ao pensar sobre os elementos forçantes ou mitigadores – termos que aparecem nos quarto e quinto relatórios do IPCC – em cenários futuros das mudanças climáticas.
Em ensaio de 2012, publicado no livro População e sustentabilidade na era das mudanças climáticas globais: contribuição para uma agenda brasileira, Ricardo Ojima contesta a afirmação de que o controle de natalidade seja efetivo. Ao contrário. Em curto prazo, a redução das taxas de natalidade deverá exacerbar o volume das emissões de GEE, uma vez que, por um lado, casais menores tendem a consumir mais e, em consequência, tendem a ter um maior impacto ambiental e, por outro, estruturas etárias mais envelhecidas tendem a aumentar o nível e o padrão de consumo. “No caso do Brasil, a projeção mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta para um decréscimo populacional antes do meio deste século e, como as taxas de fecundidade aqui caíram muito rapidamente – o Brasil passou de cerca de seis filhos por mulher até os anos de 1970 para menos de dois filhos nos primeiros anos do milênio –, o envelhecimento também ocorrerá de forma rápida, mas é difícil crer que os problemas ambientais brasileiros diminuirão com essa redução”, conclui.
Inverno demográfico em pleno verão?
Na notícia com a qual iniciamos esta reportagem, apenas na metade do texto é que se faz menção ao fato de que o controle de natalidade em benefício do planeta é pensado para países em desenvolvimento – e não para países ricos, onde a taxa de fecundidade está caindo há muito mais tempo e com consequências visíveis. De fato, países como Dinamarca, Alemanha, Japão, Rússia – além da “América branca”, como caracteriza a filósofa da ciência Donna Haraway, em seu artigo “Anthropocene, Capitalocene, Plantatiocene, Chthulucene: making kin”, publicado neste ano – têm investido em políticas de incentivo à fecundidade, mas, segundo Ojima, sem sucesso: “Poucas políticas pró-natalistas tiveram efeito capaz de resgatar os níveis de fecundidade que garantissem a reposição da população decrescente, e isso tem se tornado fator de grande preocupação devido aos inúmeros problemas que o envelhecimento populacional decorrente disso pode causar”, avalia.
A redução das taxas de natalidade, por outro lado, também tem sido apropriada por perspectivas conservadoras. No documentário Demographic Winter (Inverno demográfico, o declínio da família humana), de 2008, economistas (entre eles, o prêmio Nobel em Economia de 1992, Gary Becker), demógrafos, psicólogos, e outros especialistas, reduzem toda a discussão sobre a queda da taxa de natalidade ao comprometimento da reprodução do capitalismo. Segundo eles, haverá risco não apenas para a economia, como também deficit no sistema de seguridade e saúde com o decréscimo da População Economicamente Ativa (PEA), queda na produtividade e na coleta de impostos, além do aumento do emprego da mão de obra imigrante. No documentário, a questão da imigração abre brechas, inclusive, para perspectivas xenófobas, na medida em que alguns especialistas expressam preocupação com a vinda de imigrantes e a consequente alteração na composição racial e social dos países europeus.
E é justamente sobre essas questões – do medo de imigrantes e da busca por projetos pró-natalistas baseados, no fundo, na limpeza/pureza racial (“that racial purity projects”) – que Donna Haraway chama atenção para as políticas existentes em benefício da natalidade. Mas, em outra via de pensamento, a filósofa da ciência propõe a invenção de um olhar diferente para a questão, sem que se leve em conta, necessariamente, o nascimento de mais bebês no mundo (“to birth or not to birth a new baby is not in question for me”), de forma a proliferar maneiras de estabelecer relações de parentesco que não sejam concebidas apenas como vínculo biológicos e familiar.
Criar laços de parentesco sem precisar de novos bebês, para Haraway, inclui pensar, por exemplo, em políticas públicas que abranjam tanto nativos quanto imigrantes, sem xenofobia, e em políticas de incentivo que mantenham as pessoas saudáveis e produtivas por mais tempo. Mas a necessidade de alianças ultrapassa as fronteiras dos humanos, afinal, como a filósofa ressalta, essa imensa destruição em curso atingirá não apenas as 11 bilhões ou mais pessoas que habitarão a Terra no final do século 21, mas a miríade de outros seres com os quais também compartilhamos o planeta.