Enigmas da língua: travessias da identidade e encruzilhadas atlânticas em Orlanda Amarílis | Alice Vieira


Alice Vieira [1]

 

Há um conhecido itan que relata como Òrunmilá-Ifá, divindade oracular detentora da sabedoria no panteão religioso da mitologia iorubá, define que Exu – o orixá comunicador, senhor dos caminhos, do mercado, das trocas justas – viverá, para sempre, nas encruzilhadas. O episódio é recontado por Ruy de Carmo Póvoas em A fala do santo (2018). O autor nos conta como Exu se diverte, fazendo as vezes de trickster, troçando com homens e bichos, ao propor um enigma aparentemente insolúvel, para o qual parece não haver resposta correta: “- Prefere viver dentro ou fora?”. Nenhuma resposta ao enigma satisfaz Exu, que, depois de confundir homens e bichos com os seus artifícios de linguagem, resolve fazer o mesmo com Òrunmilá. Mas Exu não obtém êxito no intento de “pregar uma peça” a Òrunmilá – mestre dos destinos – e vira presa de sua própria armadilha. Dessa vez, é Òrunmilá quem lhe pergunta: “- E você, Exu, prefere dentro ou fora?” (Póvoa, 2018). Póvoa narra que, após tomar um susto, Exu logo se recompõe e dá uma resposta ardilosa e aporética: “- Fora casa morar dentro morar fora”. Como decifrar esse labirinto da linguagem? Òrunmilá torna Exu presa de sua própria travessura, interpretando a fala do orixá comunicador não como um encadeamento discursivo ininterrupto, mas como uma fala marcada por vírgulas e pausas. Para Ifá, Exu teria dito: “Fora, casa! Morar dentro? Morar fora”. Pela sabedoria do senhor dos odus, Exu foi traído pelo próprio enigma da língua, e teria feito um pedido de estar, para sempre, fora de casa. Òrunmilá-Ifá, para puni-lo, define a “encruzilhada” como sua morada perene, a partir daquele dia:

Aí, Òrunmilá deu a Exu o destino e o modo de viver sempre: – Daqui para a frente, você não vai viver dentro de casa; vai viver fora, na rua, no caminho, na encruzilhada. Aí, todo mundo caiu na gargalhada (Póvoas, 2018, p.46).

 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

[1] Professora assistente do Departamento de Letras e Artes da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). Email: avbarros@uefs.br

 

Enigmas da língua: travessias da identidade e encruzilhadas atlânticas em Orlanda Amarílis

 

RESUMO: Tomando como inspiração as provocações simbólicas que emergem da mitopoética de Exu, em especial a partir das reflexões de Edimilson de Almeida Pereira (2017), esse ensaio faz uma leitura crítica da obra da escritora cabo-verdiana Orlanda Amarílis. Interessa-nos, sobretudo, pensar as questões de identidade e pertencimento entre as personagens dos contos de Cais-do-Sodré té Salamansa (1974). Essas questões são pensadas tomando a ideia de “encruzilhada” como um norteador epistêmico, uma vez que o ensaio enfatiza as múltiplas travessias identitárias e culturais que emergem das contradições inerentes às experiências diaspóricas do Atlântico Negro.

PALAVRAS-CHAVE: Orlanda Amarílis. Cabo Verde. Exu. Encruzilhada. Atlântico Negro.


The enigma of language: identity crossings and Atlantic crossroads in Orlanda Amarílis

 

ABSTRACT: Inspired by the theoretical questions that emerge from the mythopoetics of Exu, specially considering the reflections of Edimilson de Almeida Pereira (2017), this essay offers a critical reading of the works of Cape Verdean writer Orlanda Amarílis. We are particularly interested in questions of identity and belonging between the characters of the stories of Cais-do-Sodré té Salamansa (1974). These questions are shaped by the idea of “crossroad” as an epistemic source, since the essay emphasizes the multiple identities and cultural crossings arising from the inherent contradictions of Black Atlantic diasporic experiences.

KEYWORDS: Orlanda Amarílis. Cabo Verde. Exu. Crossroad. Black Atlantic.


VIEIRA, Alice. Enigmas da língua: travessias da identidade e encruzilhadas atlânticas em Orlanda Amarílis. ClimaCom – Exu: arte, epistemologia e método [online], Campinas, ano 12, n. 29., dez. 2025. Available from: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/enigmas-da-lingua/