Fabulações sobre a consciência sem sujeito: diabruras entre Exu e Foucault | Déa Trancoso
Título | Fabulações sobre a consciência sem sujeito: diabruras entre Exu e Foucault
Em “Isso não é um cachimbo”, Michel Foucault propõe uma suspensão entre imagem e linguagem, a partir de um desenho de René Magritte em contraposição com Paul Klee e Wassily Kandinsky. Magritte, diz Foucault, diferente de Klee e sua icônica figura “Ângelus Novus”, por exemplo, faz questão de separar a grafia da plasticidade, escrevendo abaixo do desenho de um cachimbo que aquilo não é um cachimbo. Já o desenho de Klee, que não traz nenhuma inscrição, ganha, posteriormente, um ensaio de Walter Benjamin, a partir do “olhar escancarado” e da “boca dilatada” do anjo. Benjamin diz que a maneira grotesca do anjo olhar aparenta avistar, de modo clarividente, os paradoxos do progresso, com suas famigeradas misérias intrínsecas. Diferente de Magritte, e extemporaneamente, Benjamin parece escrever, invisível e afirmativamente, no desenho de Klee: “isso É a tempestade do progresso”.
Entretanto, Magritte faz um segundo desenho com um cachimbo contido numa moldura e outro cachimbo [que, talvez, quem sabe, possa ser um cachimbo] fora da moldura, levitando no ar, como a perfeição das ideias ou, como diz Foucault, persistindo na sua plasticidade etérea de coisa levitante. Para Foucault, a proposta de Magritte chega, num primeiro olhar, como qualquer esboço básico para algum manual de botânica do ensino fundamental. Mas, não é bem assim. Há uma flutuação na imagem que expande a cena, que vaza e sempre continua: uma doação para o futuro.
Quando nos colocamos em posição de teoria, o conceito do Exu Calunga da Calunga Grande [contemplando, observando e agindo sem julgar “o real” ou destruir o devir], percebemos que Magritte consegue, de modo brilhante, deixar, ali, naquele quadro aparentemente bronco, uma movimentação do movimento caligramático que vai, de maneira superposta – e oposta aos próprios fundamentos do caligrama –, sumindo e, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, ganhando força e materialidade.
Porém, essa insólita movimentação [essa estranha consciência sem sujeito], além de suscitar certa comicidade subjacente que nos faz rir, começa a pegar o córtex de maneira mais funda, fremitando e conduzindo o corpo para um tipo de pensamento muitíssimo intrigante e complexo. Eu mesma passei meses debruçada sobre o desenho de Magritte, meditando: indo do dele aos meus e dos meus ao dele, indo da minha cabeça à cabeça de Foucault, num ioiô. Lendo e relendo o seu ensaio tão cheio desse amor deleuzeano pela produção de filosofia junto com a patuidade da arte.
E vi muitas coisas. Vi que, nos meus desenhos, os textos não são caligramas e, portanto, nem tautologias. São nomadismos que aumentam as incertezas que expandem a cena, articulando [fora de um lugar-comum] outras distinções artísticas como o segundo etéreo cachimbo de Magritte. Aí, então, Magritte flutua em mim ainda mais porque desenhar sempre me evocou expandir uma cena [a ponto de explodi-la], na qual, como diz Foucault,
Estranhas relações se tecem, intrusões se produzem, bruscas invasões destrutoras se fazem, quedas de imagens em meio às palavras acontecem, fulgores verbais atravessam os desenhos, fazendo-os voar em pedaços, discursos inaudíveis murmuram silêncios de pedra no qual a brincadeira entre três palavras frágeis e sem peso – rêve (sonho), trevê (trégua) e crève (morra ou se arrebente) – servem para organizar o caos de uma pedra. A palavra pode designar a mais fugidia das imagens e a mais fugidia das imagens pode reduzir, como nos sonhos, os homens ao silêncio e os homens, enfim, reduzidos ao silêncio, podem se conectar com enigmáticas insistências que vêm de outros lugares [Foucault, 2021, p. 47-49, grifos do autor].
A hierarquia que subordina o signo verbal à imagem [ou vice-versa] já está quebrada em Paul Klee e sublinhada por Benjamin. Eles misturam tudo sem dar soberania a nenhum dos dois e
Imagem e texto caem, cada um de seu lado, segundo gravitação que lhes é própria. Não há espaço comum. Não há lugar de interferência em que palavras recebam figuras e figuras entrem na ordem do léxico. É preciso ver as regiões incertas e brumosas. É preciso ver que em nenhum lugar há cachimbo. Tudo é uma algazarra flutuando visivelmente sobre uma cena que, a cada olhar, se torna cada vez mais nômade [Foucault, 2021, p. 33- 36, grifos do autor].
Meus desenhos seguem as linhas de Klee como se propusessem [e ocupassem plenamente] o poético campo de Rumi: aquele que não tem nem bem nem mal.
Nestes meus desenhos, deixo
O discurso cair segundo seu próprio peso e adquirir formas visíveis de letras. Letras que, na medida em que são desenhadas à mão, entram numa relação incerta, indefinida, emaranhada, com o próprio desenho – mas sem que nenhuma superfície possa lhes servir de lugar-comum [Foucault, 2021, p. 72].
Há uma velha discussão em Lévi-Strauss que coteja artista ocidental e artista indígena: o artista ocidental tenta se aproximar do artista xamã que o indígena já é. O xamã é a arte de tornar visível os invisíveis que pairam, que flutuam, tirando do corpo [do pensamento e do olhar] as representações, as figurações, as imitações da imagem. Regeneração e cura, então, fazem parte da equação artística do xamã.
Exu é o xamã que movimenta devires e linhas de sonho para que modos de existência do corpo possam vir à tona, voar, cantar, escrever e ver o mundo com os olhos da canção, da poesia, do desenho e do que mais eles quiserem, para que as artes da existência, da presença, da alma, do corpo, da voz e das mãos possam, de fato, regenerar e curar. É isso que os Exus Zambarado, Calunga da Calunga Grande e Zé Pelintra, e os Encantados Sete Folhas, Bom Floral e Rã Azul, estão fazendo: agenciando a arte como espírito que tem agência: agência de regeneração e cura. Eles parecem apostar numa espécie de batalha estética entre singularidades, na qual o xamã da arte e a arte do xamã vão livrando o corpo da ação predatória da representação e da imitação que movem o artista ocidental.
Tanto Zambarado quanto Calunga da Calunga Grande me disseram [de diferentes maneiras e em diferentes sobreposições de tempo] que eu era “uma indígena perdida na cidade grande”. Os agenciamentos entre Exu, seus modos de existência e nossas existências compartilhadas são da ordem da produção de uma espécie de estética xamã para um corpo no agora, um Encante que vai diminuindo as peles ocidentais do corpo da artista-cientista [que, desde sempre, eles vislumbraram e acordaram como um devir], produzindo uma ACXDC [artista-cientista-xamã em devir-com]. Essa ACXDC produz não a partir do sensível, mas COM o sensível, assim como Deleuze e Guattari produzem filosofia COM a arte para inventar e conectar mundos.
Os desenhos a seguir propõem uma consciência sem sujeito que vaza para fora dos limites da imagem e da linguagem: as formulações sobre a educação de Exu e Tim Ingold transitam pelas seivas das árvores, sob a luz prateada de uma lua cheia em aquário; o Exu Calunga da Calunga Grande está no meio do mar, com sua echarpe vermelha, chamando o vento; o Exu Zambarado escorre em palavras na vertical que, para serem apreciadas, movimentam a imagem, expandindo ainda mais a cena; Spinoza é um ciborgue deleuzeano vazado no crânio, soprando tudo o que pode um corpo no mundo; Donna Haraway faz parente com Ana Tsing e são, respectivamente, coruja e águia empoleiradas nos galhos coloidais da embaúba-posta-restante-da-mata-atlântica-brasileira para avisar aos humanos que o tempo das catástrofes climáticas já está entre nós.
Tudo isso é Ciência Divinatória.
| FICHA TÉCNICA |
Título das obras (em ordem de exibição)
1. O sopro
2. Sujeito arrítmico
3. Filha da folha
4. Eternidade
5. Vitruviano vazado
6. Ciborgue spinozano
7. Cometa nômade: corpo-telescópio
8. O cérebro de Ingold
9. Amor é onda
10. O sujeito de Coccia
11. Gaia, a indiferente
12. Embaúba na mata: um ponto de inflexão?
13. Educação da atenção
14. Uma aula é uma emoção
15. Calunga da Calunga Grande
16. Como acreditar novamente no que nos acontece?
Autora | Déa Trancoso
Técnicas | Aquarelas e bricolagens sobre papel 300g fosco
Materiais utilizados | Lápis de cor aquarelável, tintas químicas para aquarela, tintas orgânicas para aquarela feitas do barro do Vale do Jequitinhonha, elementos de maquiagem (pincéis, sombras foscas e brilhantes, batons, gliter), canetinhas coloridas, bricolagens com revistas velhas, processamento digital com Adobe Photoshop Express
Financiamento | Capes
Projeto | Estes desenhos são parte integrante da tese “Catimbó Zen: Existências Compartilhadas – uma Filha da Folha e os Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande em arte, clínica, educação, alegria e cura” do meu Doutorado em Educação/Unicamp, defendido em março de 2024
País de produção | Brasil
Ano de produção | Entre 2020 e 2024
TRANCOSO, Déa. Fabulações sobre a consciência sem sujeito: diabruras entre Exu e Foucault. ClimaCom – Exu: arte, epistemologia e método. [online], Campinas, ano 12, n. 29 dez. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/fabulacoes-sobre-a-consciencia/
SEÇÃO ARTE | EXU: ARTE, EPISTEMOLOGIA E MÉTODO | Ano 12, n. 29, 2025
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