terras más | Estefânia Young

Título | terras más

Terra rasgada é a tradução da palavra tupi-guarani voçoroca: fenômeno que assombra paisagens e ameaça cidades inteiras de serem engolidas pelo solo. Onde a degradação é extrema, a terra responde: abre-se em fenda, em buraco que devora. Em inglês chamam de badlands, terras más, inférteis. A terra não fala, mas expressa: fende-se em crateras impossíveis de ignorar, ameaça ruas, casas, prédios, cidades.

Se em nosso imaginário frestas e fendas evocam passagens e potências de vida em tempos sombrios, a voçoroca convoca outro registro: o do horror. É a recusa da terra em oferecer vida, um gesto contra o esgotamento. No entanto, como lembra Anna Tsing, habitar o colapso não é apenas administrá-lo, mas encontrar formas de seguir, criar, viver. É atendendo a esse chamado que a série terras más se inscreve: no interior da voçoroca que avança sobre o Parque da Solidariedade, em Alvorada (RS), a arte busca reativar a vida no machucado da terra. Ailton Krenak evoca o estado de taru andé — ritual de dança que suspende o céu e renova a comunhão entre os corpos, a Terra e todos os seres, tecendo harmonia e conexão. Enquanto a voçoroca escancara a violência de uma relação utilitarista com o solo, a ideia de taru andé aponta para outra possibilidade: habitar o mundo sem exigir sua utilidade, mas compartilhando sua dádiva.

O pensamento ecofeminista traça paralelos entre as categorias “mulher” e “terra” — ambas exploradas em sua potência de gerar vida. Quando a terra já não é fértil, chama-se , badland. Assim também a mulher que recusa os papéis de docilidade, maternidade e manutenção da vida é marcada como desviante. Nomear uma terra estéril como “má” revela a expectativa de que ela seja sempre fértil, produtiva, disponível — expectativa semelhante àquela que o patriarcado lança sobre as mulheres, reduzidas ao papel de reprodução e conservação da vida.

Nesta série fotográfica, duas mulheres adentram a paisagem devastada e estranhamente bela de uma voçoroca até confundir-se com ela. Entrelaçam-se à terra, aprendendo a habitar na indistinção entre corpo e chão. Convoca-se um espírito do emaranhamento e recusa-se a separação. Esquece-se o que é corpo e o que é chão. A ativação artística não apenas registra a paisagem, mas a reanima.


| FICHA TÉCNICA |

terras más, fotografia, ano de produção: 2022.

 


YOUNG, Estefânia. terras más. ClimaCom – Exu: arte, epistemologia e método. [online], Campinas, ano 12, n. 29 dez. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/terras-mas/

SEÇÃO ARTE | EXU: ARTE, EPISTEMOLOGIA E MÉTODO | Ano 12, n. 29, 2025

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