O mapa dos dois mundos, a contraface | Beá Meira

Título | O mapa dos dois mundos, a contraface

Em 2019, no “dia do fogo”, quando líderes de extrema direita pagaram a população da Amazônia para que queimasse a floresta, tive o desejo de ver os brasileiros caminhando, nas praças públicas das cidades, sobre grandes tapetes com mapas dos territórios devastados. Foi a partir deste sentimento que comecei a fazer tapeçarias, às vezes em oficinas coletivas, como um ato simbólico de refazer o mundo.

As primeiras tapeçarias eram mapas, onde eu procurava demarcar na floresta o desmatamento, as estradas, os territórios ocupados pela monocultura, pivôs pulverizando agrotóxicos ou as cavas abertas pela mineração. Consistem em imagens tomadas acima do solo, por vezes transcritas de plataformas de dados georreferenciados ou de fotografias de satélites. 

Mas havia o desafio de mostrar o que não é visível, o que está no subsolo, embaixo da Terra: os lençóis freáticos, os reservatórios de água subterrânea, o movimento das camadas que marcam o tempo profundo da geohistória, os minerais que alimentam as florestas e os emaranhados de fungos micorrízicos, que numa corrente de sinapses sustentam as raízes presas ao solo.

O sétimo caminho

Ansiosa por dar a ver a Terra viva embaixo dos nossos pés, reflito sobre Exu e o sétimo caminho: Como olhar para o que está dentro?

E o que eu buscava estava bem ali, sob o meu plano de trabalho, ou melhor, atrás dele. 

Acontece então uma virada metodológica. Nesta encruza o bordar se tornou desbordar. O gesto de fazer, agora é desfazer os nós do passado e curar o avesso de sua falta de significado. Desemendar as linhas, para com isso, criar novas conexões, abrindo imensas possibilidades inventivas em um avesso que não tem nada a esconder.

Retomei tapeçarias prontas para recontar a geografia, que agora me parece sempre inacabada.

O invisível é grávido de invenção

É bem verdade que os mapas do subterrâneo começam a ser desenhados. Neste mês de julho de 2025 foi publicado na revista Nature um mapa do mundo realizado a partir da amostragem do banco de dados da Global Fungi – SPUN (Society for the Protection of Underground Networks) com dados sobre a vida fúngica no solo.

Mas enquanto os cientistas da vida buscam, a partir de ensaios feitos com amostras dos solos, os dados sobre as potências sutís da biodiversidade fúngica, o capital internacional perscruta riquezas que não podem ser vistas, e numa corrida desenfreada pelo lucro, sacrificam territórios pelos almejados minérios. 

Me vejo agora diante da urgência de mapear os dois mundos e inventar a partir do diálogo entre a superfície e o subsolo. Concebo novos padrões, inserindo outras texturas e cicatrizando os arremates em fios de outras cores.

Quero com estes gestos adivinhar como seria a visão de dentro da ferida feita em um maciço de minérios, como as águas poluídas de uma represa de rejeitos decantam sob as montanhas de lama, como seria o emaranhado da vida feito de raízes, pedras e fungos micorrízicos sob as florestas já muito perturbadas, como os fluxos de água agem sobre este mundo obscuro onde proliferam microrganismos anaeróbicos.

As fotografias mostram a tapeçaria

Vinte anos de sossego, 2004 – 2024.

Mineração de cobre em terras públicas da União 

a beira do rio Parauapebas, Canaã dos Carajás, PA.

A mina de cobre da Vale situada no Sul da Província Mineral de Carajás, no Pará, entrou em funcionamento há 21 anos. Ocupando terras públicas da União – constituídas de unidades agrícolas instaladas pelo Incra e destinadas a famílias de trabalhadores rurais que foram adquiridas pela empresa de forma irregular – a mineração substituiu as lavouras de arroz, feijão, abacaxi e outros alimentos por imensas cavas, estradas, plantas de processamento e represas de rejeitos.

 

  1. O lado “direito” da tapeçaria Vinte anos de sossego, 2024.
  2. Desmanchando o acabamento de tecido no “fundo” da tapeçaria
  3. Desfazendo os antigos nós.
  4. Refazendo novas conexões.
  5. Detalhe do avesso em processo
  6. Detalhe novo avesso
  7. Detalhe: emaranhados rizomáticos da floresta
  8. Detalhe: águas decantadas da pilha de rejeitos
  9. O lado de “dentro” da tapeçaria Vinte anos de sossego, 2025.

 


| FICHA TÉCNICA |

Concepção e obra | Beá Meira


MEIRA, Beá. O mapa dos dois mundos, a contraface [online], Campinas, ano 12, n. 29 dez. 2025. Available from:https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/mapa-dos-dois-mundos/

SEÇÃO ARTE | EXU: ARTE, EPISTEMOLOGIA E MÉTODO | Ano 12, n. 29, 2025

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