Memórias de Kalunga: tempo, corpo e passagem | Vivian Carla Garcia Ferreira


Vivian Carla Garcia Ferreira[1]

No silêncio de um mar abissal

Kalunga é uma palavra de origem bantu que significa mar, imensidão, e também morte. A enxurrada de significados pesquisas adentro não deixa nítida uma compreensão se seu significado no Brasil – muitas vezes vinculado à religiões de matriz africana –  estaria ligado a uma noção cíclica da natureza, que celebra seus ritos de passagem e vida-morte-vida, ou se essa estaria ligado à ruptura de tantos povos de sua terra e sua ancestralidade, ao serem traficadas Kalunga adentro, deixando um rastro de morte, sangue e ausência. Esses saberes chegaram aqui no Brasil por meio de uma memória do corpo, não sendo descritas em escrituras canônicas do passado. Nesse sentido, assumindo seus diferentes significados não como divergentes, mas espirais em uma memória de Kalunga, temos que essa palavra é conhecida no Brasil pelos adeptos de religiões de matriz africana a partir de dois lugares entrelaçados no oceano. “Kalunga grande” representa o mar e suas profundezas, o mundo além do nosso, morada da grande mãe Iemanjá. E a “Kalunga pequena”, o cemitério, domínio de Obaluayê, orixá da doença, da cura e da morte como passagem. Kalunga é trânsito de significados, corpos e energias. Kalunga é ponto de força, demanda e proteção. Fronteira, passagem, interstício da linguagem.

No podcast “Águas de Kalunga” do Museu de Arte do Rio (MAR), que convidou dez autores para visitar a exposição “O rio dos navegantes” e escrever suas impressões sobre ela, a questão da navegação e as águas de Kalunga são centrais. No episódio 1, “Águas de Kalunga”, escrito por Conceição Evaristo, e que dá nome à série, a autora reflete sobre as águas do Atlântico e sua memória. Ela propõe a ideia de que “recordar é preciso” (Evaristo, 2019, 10:59″- 11-05″), em oposição ao lema português “navegar é preciso”, criticando as naus que conheciam apenas a superfície do mar, representada no conto pelo navio “Ondas Mansas”, sem entender a vastidão oceânica de Kalunga abaixo. Na narrativa, a autora constrói uma atmosfera que nos submerge junto à essas águas, como águas de uma memória ancestral reunida às memórias das marcas deixadas pelo colonialismo. O mar como tumba da memória.

 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

[1] Doutoranda em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas, UNICAMP. Email: viviancarlagf@gmail.com.

Memórias de Kalunga: tempo, corpo e passagem

 

RESUMOO presente ensaio propõe uma reflexão sobre os aspectos culturais e históricos da linguagem, questionando a racionalidade ocidental a partir da articulação entre saberes ancestrais das cosmologias africanas (bantu e iorubá) e dos povos originários. O tempo — entre o racional e o espiralar — emerge como chave para a compreensão da experiência da memória e das narrativas possíveis. O texto ensaia possibilidades de articulação entre essas cosmologias, enraizadas nos saberes da natureza, e uma crítica às relações instauradas pela episteme colonial, que nos ensinou a desaprender a escuta do corpo. Kalunga, nesse contexto, apresenta-se como uma prática incorporada. A obra Águas de Kalunga, de Conceição Evaristo, constitui o fio condutor desta narrativa, na medida em que penso Kalunga como uma possibilidade de fabulação da memória, e o corpo como lugar de passagem para as águas que vieram antes, as águas de agora e as águas do porvir.

PALAVRAS-CHAVE: Kalunga. Tempo. Corpo. Linguagem.


Memorias de Kalunga: tiempo, cuerpo y paso

 

RESUMEN: El presente ensayo propone una reflexión sobre los aspectos culturales e históricos del lenguaje, cuestionando la racionalidad occidental a partir de la articulación entre saberes ancestrales de las cosmologías africanas (bantú y yoruba) y de los pueblos originarios. El tiempo —entre lo racional y lo espiralado— emerge como clave para comprender la experiencia de la memoria y las narrativas posibles. El texto ensaya posibilidades de articulación entre dichas cosmologías, enraizadas en los saberes de la naturaleza, y una crítica a las relaciones impuestas por la episteme colonial, que nos enseñó a desaprender la escucha del cuerpo. Kalunga, en este contexto, se presenta como una práctica incorporada. La obra Aguas de Kalunga, de Conceição Evaristo, constituye el hilo conductor de esta narrativa, en la medida en que pienso Kalunga como una posibilidad de fabulación de la memoria, y el cuerpo como un lugar de tránsito para las aguas que vinieron antes, las aguas del ahora y las aguas por venir.

PALABRAS CLAVE: Kalunga. Tiempo. Cuerpo. Lenguaje.


FERREIRA, Vivian Carla Garcia. Memórias de Kalunga: tempo, corpo e passagem [online], Campinas, ano 12, n. 28., jun. 2025. Available from: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/memorias-de-kalunga/