Livros
A arte de dosar: antídotos contra a feitiçaria capitalista
O livro tem também uma edição no Instagram que pode ser acessada no perfil @artededosar
SOBRE O LIVRO
Vivemos tempos de extrema brutalidade, em que as atividades humanas capitalizadas produzem uma destruição sistemática de inúmeros modos de existir, ser e pensar. Os dados e estatísticas mostram que os mundos estão cada vez mais reduzidos e tóxicos. A ideia de que o Humano é a medida de todas coisas opera de modo cada vez mais avassalador. Nesse cenário, nos encontramos com a filósofa Isabelle Stengers (2015, 2017), que defende uma reativação das artes das dosagens. A necessidade de reencontrarmos a medida, de nos tornarmos capazes de distinguir o veneno do remédio, ou seja, de aprendermos a dar atenção ao que pode nutrir e ao que pode matar.
Neste livro-objeto buscamos exercitar coletivamente a arte das dosagens diante das catástrofes com palavras, imagens e sons. Nos aliamos às plantas e às cobras para apresentar diferentes experimentações com os gestos de medir que foram criadas pelos participantes da disciplina Tópicos de Divulgação Científica e Cultural – Internacionalização, oferecida em 2025, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os exercícios foram pensados como pequenas poções que assumem o risco de reunir heterogêneos para criar novos vínculos com a Terra.
Ailton Krenak em “Futuro Ancestral” (2022) tece importantes caminhos alternativos à catástrofe do Antropoceno com o conceito de “alianças afetivas”, uma forma de construir pontes entre mundos, não a partir do ideal de igualdade, mas pela introdução da desigualdade radical de todos os seres, em um olhar de alteridade sobre todas as espécies. O autor traz a ideia do “mundizar” como uma prática de experimentação de outros mundos e construção de redes que se afetam, produzindo abertura para outras cosmovisões. É nessa perspectiva que nos afetamos pelas cobras e pelas plantas na criação deste livro-objeto, em uma tentativa de praticar o imaginário do corpo em linguagens que tragam múltiplas camadas de sentido: o ancestral e o possível, e o remédio como o (re)encantamento da arte de dosar, nomear, costurar outros sentidos.
A cobra é um animal muito evocado em diversas culturas antigas como expressão de mundos originários, transmutação, sabedoria, e uma força – que poderíamos tentar traduzir por uma ética – que vai além do bem e do mal. Seu veneno também carrega o antídoto e, no caso daquelas não peçonhentas, que matam por constrição, temos o total envolvimento e consumo do corpo da presa que se transmuta em digestão. Para muitos povos originários do Brasil e do mundo, a cobra é detentora dos segredos da Terra. Para povos do Rio Negro, a cobra é a canoa, o meio pelo qual os seres humanos ainda embrionários habitaram por séculos o corpo de uma jiboia em seu caminho até a Terra. Essa história é contada na “Flecha 1 – A serpente e a canoa” (2021), primeiro episódio de uma série audiovisual manifestada pelo Selvagem Ciclo de Estudos (nota de rodapé com o link), roteirizado por Anna Dantes e narrado por Ailton Krenak. E nessa narrativa, ao descer da canoa-cobra, foi necessário um canto mágico do Deus da Terra para que os diversos povos e clãs pudessem aterrizar e aqui habitar. “Uma serpente cósmica trouxe a vida para a Terra. Foi o transporte de informações, instruções para a própria travessia e para as transformações que viriam no percurso”[1].
É nesse sentido que a figura da cobra delinea este trabalho, na medida em que dá trânsito, movimento, direcionamento e gestação das imagens, desenhos e palavras encantadas que caracterizam a delicada arte das dosagens como um contra-feitiço. A cobra, nesta aliança afetiva e efetiva conduz outros imaginários possíveis como uma incubadora de sonhos contra a feitiçaria capitalista. Como os tripulantes da cobra-canoa, nós compomos o seu corpo a partir de uma entrega de intenções. Seu corpo é nossa grafia possível: grafismos. Foi com os grafismos do seu corpo que encontramos nossa outra ponta de aliança com as plantas. Cada qual elegeu sua planta companheira e em uma observação imersiva de cada traço, compusemos as linhas e alinhavamos uma linha à outra, tecendo uma cobra com os seus contra-feitiços. E chegaram a cidreira, a camomila, a guiné, o manjericão, o cacto, a andiroba, a cebola, a rosa china, a jibóia, e muitas outras.
O exercício de escrita veio com a atenciosa curadoria de ingredientes para o remédio da catástrofe, um cuidadoso chamamento de seus nomes, usos, significações e interações. E acordamos esses ingredientes com a escrita criativa que surgiu como ferramenta de fazer novos – e ancestrais – usos da linguagem. Todo o corpo da cobra está grafado por plantas e ingredientes de poder que, juntos, compõem a nossa mandinga, macumba, mezinhagem.
Bibliografia:
DANTES, Anna (org.); KRENAK, Ailton (colab.). Flecha 1 – A serpente e a canoa: uma serpente cósmica trouxe a vida para a Terra. Rio de Janeiro: Instituto Socioambiental; Dantes Editora, 2021. Disponível em: https://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2021/05/CADERNO_23_SERPENTE_CANOA-2.pdf. Acesso em: 9 jun. 2025.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
STENGERS, Isabelle; PIGNARRE, Philippe. La brujería capitalista – prácticas para prevenirla y conjurarla. Trad. de Victor Godstein. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Hekht Livros, 2017.
[1] DANTES, Anna (org.); KRENAK, Ailton (colab.). Flecha 1 – A serpente e a canoa: uma serpente cósmica trouxe a vida para a Terra. Rio de Janeiro: Instituto Socioambiental; Dantes Editora, 2021, p. 15.
Organização | Fernanda Oliveira, Fernanda Lourenço, Heloisa Pignatelli Santaliestra, Muriel Scarnichia, Natalia König, Vivian Carla Garcia Ferreira, Susana Oliveira Dias
Autores | Alcides Moreno; Andressa Jociane F. Menas; Beatriz Altarugio Galdini; Breno Filo César Ribeiro; Corina Ilardo; Damián Leibovich; Daniel Aroni Alves; Eliana Piemonta; Emanuely Miranda; Erica Santiago; Fernanda Lourenço; Fernanda Oliveira; Gabriela Leirias Giulianna B. Denari; Glauco Roberto; Heloisa Pignatelli Santaliestra; Jayne Mayrink; Jonathan Fenile de Castro; Julieta Vignale; Larissa Piacenza; Liz Vidal; Luana Alvez Corrêa; Marcelo Rodrigues; Mariana Camba; Muriel Scarnichia; Natalia König; Natalia Negretti; Pablo Daniel Ramos; Samuel Souza; Sandra Murriello; Susana Oliveira Dias; Tayana Serqueira; Vivian Carla Garcia Ferreira.