A pedagogia da bolsa de sementes | Marilia Mello Pisani
Marilia Mello Pisani[1]
Eu sou a Semente da Terra. Qualquer pessoa pode ser. Um dia, acho que
seremos muitos. (Octávia Butler, 2018, 101)
A pedagogia da bolsa de sementes é uma invenção feita de intuições desajeitadas e de uma necessidade de experimentar a sala de aula como aventura compartilhada em tempos de incertezas e de urgências. Fui guiada por algumas estrelas nessa travessia, algumas imagens e metáforas ativas, pensamentos e palavras, conhecimentos e práticas que aprendi na leitura de filósofas, cientistas, artistas, feministas, (agro)ecologistas, professores e ativistas que produzem conhecimento desde a segunda metade do século XX e cujos escritos fizeram fermentar possibilidades e imaginações no coração de uma professora. A fonte nutritiva de tal invenção é o amor e a revolta, que co-movem esse corpo no presente.
Há um impulso de relatar o contexto territorial onde essa professora vive e trabalha, a região do ABC paulista, região periférica chamada de Grande São Paulo. Mas vou suspender essa tentação e manter as raízes aéreas, não só porque isso alongaria demais o início desta escritura, mas porque, talvez, ao tirar os pés do chão por um certo tempo, ao evitar a descrição em formato de uma certa narrativa histórica, a gente consiga contar outras estórias [2]. Assim, tenho desejo de um fabular mais rizomático [3], o que significa para mim, nesse momento, uma vontade de construir “corredores ecológicos” (Haraway, 2023, p. 249) ao invés de fronteiras territoriais, sejam elas subjetivas e/ou epistemológicas. Na era da violência globalizada e das catástrofes convergentes, imagino que podemos aprender algo ao tirar os pés do chão e manter tais raízes aéreas, como aquelas dos manguezais, para respirar de outro modo, para fazer outras trocas talvez. Imagino esta narrativa como a construção ficcional de uma prática pedagógica não utópica, isto é, que não indica a produção de um outro futuro, mas que se apresenta como “práticas de vinculação” no presente: “as práticas de vinculação se desenvolvem a partir do entendimento de que o restabelecimento e a continuidade de lugares em ruínas demandam formas inovadoras de gerar parentesco.” (Haraway, 2023, p. 249)
(Leia o ensaio completo em PDF)
Recebido em: 15/09/2024
Aceito em: 15/11/2024
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[1] Marilia Mello Pisani, professora e pesquisadora do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do ABC. E-mail: marilia.pisani@ufabc.edu.br
[2] Sobre o uso das palavras história e estória, sigo a explicação dada por Ana Luiza Braga, tradutora do livro “Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno” (2023), de Donna Haraway: “Embora os sentidos dessas palavras sejam entrelaçados, estória faz referência a narrativas fabuladas em que se mesclam fato e ficção, com especial atenção à forma da narração, enquanto história remete aos acontecimentos do passado conforme a narrativa historiográfica”, conforme a nota 7 (Ana Luiza Braga, in Donna Haraway, 2023, p. 17).
[3] Utilizo o conceito de rizoma de um modo despretensioso e modesto. Isso significa que não o assumo como um conceito central deste trabalho, mas tomo-o como um conceito amigo, que permite tecer laços e companhias. Ele chegou a mim através das aulas oferecidas pelas professoras Ana Maria Preve e Michele Fernandes Gonçalves, no Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE, do Centro de Ciências Humanas e da Educação – FAED, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, no segundo semestre de 2024, que pude acompanhar online e, algumas vezes, presencial. Além das aulas, elas propiciaram debates com estudiosas e estudiosas da cartografia, dos rizomas e de Deleuze e Guattari. O texto fundamental do curso foi a “Introdução: Rizoma”, que abre o livro “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”, volume 1, de Deleuze e Guattari (2021). Foi especialmente marcante a aula que abriu o curso, com Ana Godoi, e é nela que me inspiro para abrir este texto com esta palavra. Do que pude apreender, o conceito de rizoma indica um modo de gerar conhecimentos e práticas alternativas ao que se chama de estrutura arbórea determinista, que fixa, totaliza, hierarquiza e unifica o conhecimento em estruturas taxonômicas. Com o rizoma, “esse gesto político de Deleuze e Guattari”, como ela disse, o conhecimento e as práticas abrem-se à possibilidade de acessar aquilo que ficou de fora das estruturas de unificação, o que não coube, o que foi apagado e eliminado na classificação, dando a ver os pontos de conexão mais do que de separação, como gesto que encena, experimenta e explora as formas alternativas de viver e de conhecer. “Pois esse é o modo como a vida se expressa” (Ana Godoi). Trata-se de conhecer em trânsito, o que faz do processo de escrita, pesquisa e conhecimento algo tão importante quanto o resultado. Assim, a leitura mesma do texto “Introdução: Rizoma” precisaria se dar de outro modo, segundo ela, pois este não é um texto para se estudar, entender e explicar, como se fosse possível unificar o conceito. De modo outro, a leitura abre possiblidades de fazer compor, ecoar, mover, para além dele – ou seja, fazer rizoma.
A pedagogia da bolsa de sementes
RESUMO: Neste artigo, apresento o relato de algumas práticas pedagógicas desenvolvidas em uma disciplina optativa do ensino de geografia, oferecida por mim, uma professora do ensino de filosofia, em um curso de formação de professores de uma universidade pública do Estado de São Paulo, no ano de 2023. As práticas foram desenvolvidas em torno de ações como: a escrita de um grimório de agroecologia; a cartografia das placentas de gaia; a cartilha do solo vivo; a costura de uma bolsa de sementes. Junto ao relato de experiência, são apresentados os conceitos e os saberes que inspiram tais práticas. Ao final do texto, procuro indicar que a pedagogia da bolsa de sementes, como fruto de cruzamentos interdisciplinares, se sustenta em uma filosofia da ecologia entendida como prática radical para tempos de crises convergentes. O artigo assume o estilo ensaístico e experimental, como forma mais adequada ao material que apresenta.
PALAVRAS-CHAVE: Ecopedagogia. Agroecologia. Ensino de filosofia. Comunidades do composto. Donna Haraway. Ursula Le Guin.
Falta título inglês
ABSTRACT: In this article, I present a report on some pedagogical practices offered in a teacher training course at a public university in the state of São Paulo, in the year 2023, by a philosophy teacher. The practices were developed around actions such as: the writing of an agroecology “grimoire”; the cartography of Gaia’s placentas; the living soil textbook; the sewing of a seed bag. Alongside the experience report, the concepts and knowledge that inspire these practices are presented. At the end of the text, I try to indicate that the pedagogy of the seed bag, as the fruit of interdisciplinary crossings, is based on a philosophy of ecology understood as a radical practice for times of converging crises. The article takes on an essayistic and experimental style, as the most appropriate form for the material it presents.
KEYWORDS: Ecopedagogy. Agroecology. Philosophical teaching. Communities of Compost. Donna Haraway. Ursula Le Guin.
PISANI, Marilia Mello. A pedagogia da bolsa de sementes. ClimaCom – Desvios do “ambiental” [online], Campinas, ano 11, n. 27., dez. 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/a-pedagogia-da-bolsa-sementes/