Farinhar: memórias subterrâneas | Vatsi Meneghel Danilevicz, Romari Alejandra Martinez Montano e Christiana Cabicieri Profice


 

Vatsi Meneghel Danilevicz [1]

Romari Alejandra Martinez Montano [2]

Christiana Cabicieri Profice [3]

Às retomadas 

“Trata-se do modelo que não para de se erigir e de entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retomar”

(Deleuze, Guattari, 2011, p.42)

 

Comer é uma necessidade biológica, na mesma medida em que é um fato social, econômico, cultural, afetivo e, ainda e não menos relevante, um ato político. Os alimentos nutrem corpos e relações em um contexto múltiplo, complexo e ancestral, assim como ativam memórias e compõem uma rede i-material de relações coletivas e comunitárias. Essas redes in(visíveis) e cotidianas que envolvem o comer não são pontos isolados em um mapa nutricional, mas estão impregnadas de sentido e histórias herdadas, misturadas, compostas. Comer, portanto, nunca é algo solitário, pois o alimento carrega consigo processos bioquímicos transformadores, elementos transculturais e diversidades transgeracionais desde um microorganismo presente no processo de fermentação até sua alquímica transmutação em pão, queijo, vinho, polvilho azedo, cerveja ou cauim. Fermenta-se a existência, quando compartilhada (Benemann et al, 2023; Benvegnú, García, 2020). 

Nesse contexto, a comida pode ser compreendida, entre outras perspectivas incontáveis, como produção-consumo, direito humano, saúde, meio ambiente, direitos animais, patrimônio. Justamente por conta dessa complexidade, que priorizamos o âmbito político, no qual decorrem os direitos alimentares, as relações e pactos coletivos que configuram determinado saber-fazer, assim como o fazer-junto, como patrimônios materiais e imateriais de diferentes povos e nações. Trata-se de um saber vivo, em devir, que se encontra e enlaça com outros saberes, outros climas, percorrendo a terra e fazendo brotar outras maneiras de nutrir (Menasche, 2014; 2018). Retraçar a história de um alimento e da forma de seu processamento é recuperar a trajetória humana pelo planeta, seus encontros e desencontros. Um alimento que hoje parece tão próprio de uma cultura contemporânea ou natural de um determinado lugar pode se revelar como algo trazido de longe por arranjos sociais que não são mais atuais. No Brasil, não nos faltam exemplos de frutos que são atualmente tão característicos de nossa tropicalidade local, como a manga, a jaca e o coco, mas foram trazidos pelos colonizadores que criaram uma rede de trânsito de espécies entre os seus domínios. A mandioca já estabelecida como importante fonte alimentar no território pré-cabralino foi incorporada à alimentação dos colonizadores e difundida como alimento e mercadoria, sobretudo para as colônias africanas que seguem cultivando a mandioca e produzindo farinha.

Na esfera histórico-política, discorreremos sobre a mandioca, e sua transformação em farinha, como patrimônio imaterial dos povos originários do Brasil. Abordaremos uma experiência vivenciada no ritual da farinhada de mulheres Tupinambá da comunidade da Serra do Padeiro, localizada entre os municípios de Una, Buerarema e Ilhéus, no estado da Bahia. Para tanto, traremos um breve histórico da mandioca enquanto um rizoma alimentício nativo da América Latina, para então apresentar um breve histórico do povo Tupinambá de Olivença com ênfase no seu processo de retomada territorial e étnica em uma leitura desse processo enquanto um enfrentamento rizomático, no sentido filosófico e político do conceito, fundamentado na filosofia da diferença, sobretudo na esquizoanálise, para, subsequentemente, descrever os processos de farinhar. 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

Recebido em: 15/09/2024

Aceito em: 15/11/2024

 

[1] E-mail: vdanilevicz@gmail.com; Orcid: 0000-0003-0277-8353; Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Sergipe (UFS), Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)

[2] E-mail: rammontano@uesc.br; Orcid: 0000-0003-0799-6595; Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Doutora em Ciências pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, professora plena na Universidade Estadual de Santa Cruz.

[3] E-mail: ccprofice@uesc.br; Orcid: 00000002-1972-9622; Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Professora titular do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz

Imagens invertidas em águas turvas

 

RESUMO: Este é um ensaio sobre a mandioca, enquanto um rizoma do sul global, especificamente, latinoamericano. Não se trata apenas de uma raiz ameríndia, mas de uma fonte de energia que perpassa gerações e sustenta as retomadas, de terras e de subjetividades, de inumeráveis povos da Abya Yala. A mandioca enquanto rizoma permite várias leituras, todas vinculadas à vida. Enquanto criação e afeto alimentar, a mandioca é um meio de partilhar experiências, enquanto um conceito filosófico é uma rede de resistências que se difundem pelos territórios, sobretudo, brasileiros, onde se destaca em forma de pó: a farinha. Por tratarmos de um saber milenarmente indígena, que se originou com o uso dos tipitis amazônicos, o texto terá como fio condutor a relação da transmutação da mandioca em farinha pelos povos originários, especialmente os Tupinambá de Olivença. Este texto é um ensaio-retomada sobre a potência rizomática dessa planta, quando vista para além de seus nutrientes, mas por gerar conexões culturais, afetivas transgeracionais, deslocando e reconectando saberes ancestrais.

PALAVRAS-CHAVE: Farinhada; Rizoma; Tupinambá de Olivença; Patrimônio Imaterial; Mandioca.


Inverted images in turbid waters

 

ABSTRACT: This is an essay on cassava as a rhizome from the global south, specifically Latin America. It is not just an Amerindian root, but an energy that spans generations and sustains the recovery of lands and subjectivities by countless peoples of Abya Yala. Cassava as a rhizome allows several readings, all linked to life. As a creation and food affection, cassava is a means of sharing experiences, while a philosophical concept is a network of resistance that spreads across territories, especially in Brazil, where it stands out in powder form: the flour. As we deal with ancient indigenous knowledge, which originated with the use of Amazonian tipitis, the text will have as its guiding thread the relationship of the transmutation of cassava into flour by the original peoples, especially the Tupinambá of Olivença. Ultimately, this text is an essay-retake on the rhizomatic power of this plant, when seen beyond its nutrients, but for generating cultural, affective, transgenerational connections, displacing and reconnecting ancestral knowledge.

KEYWORDS: Flour Making; Rhizome; Tupinambá de Olivença; Intangible Heritage; Cassava.


DANILEVICZ, Vatsi Meneghel; MONTANO, Romari Alejandra Martinez; PROFICE, Christiana Cabicieri.Farinhar: memórias subterrâneas. ClimaCom – Desvios do “ambiental” [online], Campinas, ano 11, nº. 27. jun. 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/farinhar-memorias-subterraneas/