Escrevivendo[1] e registros visuais e sonoros em torno da instalação Them, de Daniel Lie | Marcos Reigota


 

Marcos Reigota[2]

 

As altas temperaturas diárias antecipavam o verão e agitavam Genebra. As precauções relacionadas com a pandemia foram deixadas de lado. As ruas, praias, bares e restaurantes estavam lotados. Os parques, museus e bibliotecas eram os locais ideais para fugir das aglomerações. Estava na cidade para concluir uma longa pesquisa sobre a obra de Paulo Freire, sem nenhum compromisso institucional ou contas a prestar a alguma agência financiadora, púbica ou privada.  Era também uma despedida de uma temática iniciada em 1979. Poucos meses antes, havia pedido demissão da universidade comunitária onde trabalhei por 24 anos e me desligado do sistema de pesquisadores de produtividade científica do CNPq, no qual permaneci por 12 anos. Esse processo de rupturas e de encerramentos de atividades oficiais de pesquisa, ensino e extensão foi precedido de minha participação no curso oferecido por Iole de Freitas no Instituto de Arte Contemporânea de São Paulo (novembro de 2021) e nos encontros online por ela oferecidos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro (de janeiro a maio de 2022).  Nesse contexto e momento específicos, foi inevitável não traçar um paralelo entre a presença de Paulo Freire em Genebra e a minha própria trajetória pessoal, política e profissional naquela cidade[3].

Nas três semanas em que lá estive, pretendia pesquisar nos arquivos das instituições genebrinas onde Paulo Freire atuou, ou seja, na Universidade de Genebra e no Conselho Mundial das Igrejas. Caminhava pela cidade, imaginando percursos cotidianos realizados por Paulo Freire, traçando uma cartografia imaginária. Algumas livrarias comerciais expunham a nova edição francesa do livro Pedagogia do Oprimido[4] e em uma delas, o livro procurado estava bem próximo do Yanomami l’esprit de la forêt, de Bruce Albert e Davi Kopenawa[5]. 

Fui até a livraria “gauchista” que frequentava quando lá morei no início dos anos 1990, mas não encontrei o livro de Freire. Enquanto percorria aquela livraria que me era tão familiar, um jovem funcionário se aproximou e lançou a questão: Posso ajudá-lo? Ele não conhecia Paulo Freire, nem tinha informações sobre o livro. Correu até o computador e me disse que, caso eu quisesse, o livro estaria disponível em três dias. Não longe dali podia-se ouvir Hubert-Félix Thiéfaine cantar Page noire e Combien de jours encore[6]. 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

Recebido em: 15/09/2024

Aceito em: 15/11/2024

 

[1] Emprego a definição de Jomar Muniz de Britto, adotada nos anos 1970 por Walter Smetak, desenvolvida por ele, particularmente nas páginas 201 a 205 do livro O enxerto do Takaká & outros textos (Smeatak, 2019). Li este livro, que me foi presenteado por Mauro Tanaka, pouco antes de escrever este texto. Na tradução para o espanhol, mantive a palavra em português, tendo como base o artigo “Escrevivências: possibilidades para uma educação antirracista”, publicado na Revista Brasileira de Educação por Nathália Pereira de Oliveira, Regina Lúcia Sucupira Pedroza e Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino. Considero que, apesar de fontes diferentes e grafias diferentes, as noções empregadas (no referido artigo e por mim) têm “parentesco”. Em inglês, o termo foi traduzido (no referido artigo) como (writing-living), que me parece adequada, embora não me satisfaça. Para mais informações, ver: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/yZbrhPW3VtLpbhv5jGNvjwb/ e https://www.scielo.br/j/rbedu/a/yZbrhPW3VtLpbhv5jGNvywb/?format=pdf7lang=en

[2] Centro de Estudos Globais, Universidade Aberta de Portugal. Email: marcosreigota@yahoo.com.br

[3] Em 1989, realizei um curso de verão nas Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, voltado para doutorandas e doutorandos de diversas áreas e países. Na ocasião, desenvolvi um estudo sobre meio ambiente urbano com colegas da Áustria, Finlândia, Iugoslávia e Peru. Nesse curso conheci a ambientalista argentina Patrícia Gay, com quem estabeleci parcerias na África do Sul, Argentina, Estados Unidos e Brasil (Eco-92 e Fórum Social de Porto Alegre).  Em 1993 retornei a Genebra para realizar o pós-doutorado, com bolsa do CNPq, com o professor André Giordan, atuando também na Academia Internacional de Meio Ambiente com Philippe Allirol. Retornei várias vezes à cidade e à Suíça a nos anos seguintes. Em Genebra conclui e negociei a publicação de alguns livros (Reigota, 1994ª, 1994b, 1999a, 1999b, 1999c, 2001). Entre os artigos escritos na Suíça, destaco: (Reigota, 1997, 2020).  

[4] Trata-se da edição que recebeu o título La Pédagogie des Opprimés (Freire, 2021a). A edição anterior, em francês, foi publicada em 1974 pela editora François Maspero de Paris, que traz também o texto Conscientisation et Révolution na capa e excluído da edição mais recente. Esse texto é a transcrição de uma conversa de Paulo Freire com um grupo de militantes ligados e ou próximos do Instituto de Ação Cultural que funcionou em Genebra, conforme informação que se encontra na página 183. Essa edição não traz o nome de quem a traduziu. A apresentação (também excluída da edição de 2021) é assinada por Le Collectif d’Aphabétisation, datada de março de 1974 (p. 7-11).  Em março de 1980 foi publicada a terceira tiragem, com 20.000 a 24.000 exemplares, conforme informação que consta na página 206. Um exemplar dessa tiragem é o que tenho disponível. A edição de 2021 traz prefácio de Irène Pereira. Convém observar que o título em francês, nas edições de 1974 (1980) e de 2021 encontra-se no plural (“des opprimés”), ao contrário das edições em português (“do oprimido”) e que na edição de 2021 foi acrescido do artigo (la), ausente na edição de 1974 e nas edições em português. 

[5] Publicado em 2022, em Paris, pela Actes Sud e Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, com prefácio de Emanuele Coccia.  

[6] Disponível em  https://m.youtube.com/watch?v=rdNyRP8rw-s.

Escrevivendo[1] e registros visuais e sonoros em torno da instalação Them, de Daniel Lie

 

RESUMO: O ensaio aborda o encontro do autor com a instalação Them, de Daniel Lie, em Genebra, em maio de 2022, no qual reflexões e sensações estão entrelaçadas com acontecimentos coletivos e pessoais, tais como: guerras e genocídios, Covid-19, aquecimento global, exílios, rupturas e elaborações teóricas, pedagógicas e políticas. Destaca a presença e o diálogo com Gerd Bornheim, Iole de Freitas, Marta Catunda, Paulo Freire e Pedro Lemebel, tendo a cidade suíça como protagonista e território dos afetos, deslocamentos e convergências. A instalação possibilitou recorrer à noção de escrevivendo empregada por Walter Smetak, que procura captar e explicitar os instantes vividos e suas conexões artísticas, filosóficas e literárias, assim como a observação de si (através da trajetória de Lie e do autor), em relação com seres humanos e mais-que-humanos, em diferentes momentos e situações. O ensaio aborda temáticas e exercícios conceituais relacionados com a Perspectiva Ecologista de Educação, que é pautada na exposição pública das experiências e dos registros da vida cotidiana e suas dimensões políticas e existenciais.

PALAVRAS-CHAVE: Daniel Lie. Escrevivendo. Perspectiva Ecologista de Educação.

 


“Write-living” and visual and audible accounts of the installation Them, by Daniel Lie

 

ABSTRACT: In this essay, the author discusses his encounter with the installation ‘Them’, by Daniel Lie, in Geneva, in May 2022, in which reflections and sensations are intertwined with collective and personal incidents such as: wars and genocide, Covid-19, global warming, exiles, ruptures, and theoretical, pedagogical, and political constructions. Highlighting the presence of, and in conversation with, Gerd Bornheim, Iole de Freitas, Marta Catunda, Paulo Freire, and Pedro Lemebel, it places the Swiss city as the protagonist and location for affections, movement, and convergences. The installation allows consideration of the notion of write-living, as applied by Walter Smetak, which seeks to capture and clarify lived instants and their artistic, philosophical, and literary connections, as well as the observation of self (by means of the trajectory of Lie and of the author), as relates to human and more-than-human beings, in different moments and situations. In this essay the author discusses conceptual themes and exercises associated with the Ecological Perspective of Education, based on the public display of the experiences and accounts of daily life, and its political and existential dimensions.

KEYWORDS: Daniel Lie. Write-living. Ecological Perspective of Education.

 


REIGOTA, Marcos. Escrevivendo[1] e registros visuais e sonoros em torno da instalação Them, de Daniel Lie. ClimaCom – Desvios do “ambiental” [online], Campinas, ano 11, n. 27., dez. 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/escrevivendo1/