O mortífero mundo branco e os múltiplos mundos originários | Silvia Brandão
Silvia Brandão[1]
Nossos maiores não conhecem o dinheiro. Omama não lhes deu nenhuma palavra desse tipo. O dinheiro não nos protege, não enche o estomago, não faz nossa alegria. Para os brancos, é diferente. Eles não sabem sonhar com os espíritos como nós. Preferem não saber que o trabalho dos xamãs é proteger a terra, tanto para nós e nossos filhos como para eles e os seus (Kopenawa; Albert, 2019, p. 216-217).
No documentário Guerras do Brasil, episódio Guerra da Conquista (2018), o historiador e filósofo indígena Ailton Krenak e estudiosos não-indígenas, apontam que a colonização da América foi possivelmente o maior holocausto da história humana. Com relação ao Brasil, Fernanda Kaingáng (2021) diz que na época da invasão os nativos eram cinco, talvez dez milhões de indivíduos. Na atualidade, no entanto, de acordo com o Censo de 2022, oficialmente restam apenas cerca de 1,7 milhão de indivíduos indígenas, o que corresponde a 0,83% da população do país.
No Brasil, tanto quanto em outras regiões da América, sabe-se que o processo de desaparecimento de incontáveis povos e indivíduos indígenas se inicia com a invasão branca, assim como se fortalece com o alastramento do modo de vida capitalista, seu individualismo e seu mundo da mercadoria (Kopenawa; Albert, 2019); quando então os brancos, na ânsia de se apossarem dos territórios e das riquezas dos originários do território americano, passaram a promover variadas formas de extermínio dos povos nativos.
Igualmente sabe-se que no território brasileiro, da invasão aos nossos dias, o que os brancos ainda buscam é a solução final. Assim, embora tradicionalmente o termo solução final apareça vinculado ao plano posto em prática pela Alemanha de Hitler para erradicar os judeus do solo europeu (Arendt, 2013), é possível utilizá-lo também para descrever o que ocorre com os povos originários do Brasil desde 1500. De fato, desde a chegada dos europeus diferentes governos adotam eufemismos como catequização, pacificação, assimilação, integração e tutela para mascarar as guerras que visam erradicar os originários do solo brasileiro. Para isso, agentes governamentais e não governamentais agem por meio de táticas que não operam apenas pela mão armada do Estado, mas, além disso, por meio de mecanismos do tipo estupro fundador e pela matança biológica e cultural. Para os povos indígenas, esses são crimes que não cessam (Alencastro, 2000; Oliveira Filho, 2014; Comissão Nacional, 2014; Valente, 2017; Hutukara; Associação, 2022).
(Leia o ensaio completo em PDF)
Recebido em: 01/03/2024
Aceito em: 01/06/2024
[1] Doutora e mestra em Filosofia (Unifesp). Especialista em Direitos Humanos (ESPGE-SP). Graduada em História (PUC-SP). Pós-Doutoranda no PPGSSPS (Unifesp). Colabora com o Curso de especialização em Direitos Humanos e Lutas Sociais (CAAF/Unifesp). E-mail: silmaribra@gmail.com.
O mortífero mundo branco e os múltiplos mundos originários
RESUMO: O texto busca uma inflexão no mundo branco a partir dos mundos originários. A narrativa advoga que o modo de vida ocidental produz a morte de incontáveis corpos-territórios indígenas, assim como machuca a Terra e todas as demais formas de vida que habitam o planeta. Essas múltiplas destruições e mortes atendem aos interesses do capitalismo e sua sociedade da mercadoria, assim como atravessam as diversas épocas que compõem a história do território inventado Brasil. A narrativa tem por eixo estrutural os tensionamentos entre a sociedade capitalista e os mundos originários. Como hipótese, argumentamos, se para atender aos interesses do capitalismo, os brancos representam as sociedades nativas como organizações primitivas e fadadas ao desaparecimento; com foco nos povos indígenas do Brasil, inferimos que os originários e suas ativas memórias, ainda mais na era do Antropoceno, são essenciais ao combate do mortífero capitalismo, tanto quanto à continuidade da vida humana na Terra.
PALAVRAS-CHAVE: Brancos. Morte. Originários. Memórias. Vidas.
The deadly white world and the multiple indigenous worlds
ABSTRACT: The text seeks an inflection in the white world from the indigenous worlds. The narrative advocates that the Western way of life produces the death of countless indigenous body-territories, as well as hurting the Earth and all other forms of life that inhabit the planet. These multiple destructions and deaths serve the interests of capitalism and its commodity society, as well as crossing the different eras that make up the history of the invented territory of Brazil. The narrative’s structural axis is the tensions between the capitalist society and the indigenous worlds. As a hypothesis, we argue, if to serve the interests of capitalism, white people portray native societies as primitive organizations doomed to disappear; focusing on the indigenous peoples of Brazil, we infer that the indigenous people and their active memories, even more so in the Anthropocene era, are essential to the fight against the deadly capitalism, as well as the continuity of human life on Earth.
KEYWORDS: White people. Death. Indigenous. Memoirs. Lives.
BRANDÃO, Silvia. O mortífero mundo branco e os múltiplos mundos originários. ClimaCom – Territórios e povos indígenas [online], Campinas, ano 11, nº. 26. jun. 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-mortifero-mundo-branco/