O Teatro de Arena e suas camadas de ancestralidade artística e cultural | Sylvia Furegatti (Coord.)
Título | O Teatro de Arena e suas camadas de ancestralidade artística e cultural
O Teatro de Arena da Unicamp foi criado logo no início da construção do campus, em 1972, a partir de duas orientações principais: a primeira delas, bastante pragmática, justificava seu empenho construtivo para ocultar uma bomba da caixa d’água situada em uma de suas laterais naquela área central do campus; a segunda, acompanhada do porvir do projeto geral para a Unicamp, indicava a relação daquela construção em concreto com o entorno de um campus universitário em plena formação, ainda por ser urbanizado e ocupado fisicamente[1]. A forma final resultante da tipologia arquitetônica aberta deste equipamento tem também sua relevância: um teatro de arena sugere-se como espaço ideal para garantir o aspecto de convivência e confluência do diálogo e da cultura na comunidade universitária que ali se implantava. Passaram-se muitas décadas desde então e os usos do teatro foram bastante variados; entre o cotidiano, a política, a arte e a cultura, todos estes promotores de acontecimentos e registros visuais que atestam, sob muitos ângulos, a estrutura de forma orgânica de 780 m2 constituídos por quatro grandes pétalas destinadas a acomodar a sua audiência. Seus usos acompanharam o desenvolvimento próprio da Unicamp e de modo algo silencioso, o primeiro Teatro de Arena da universidade assistiu à arborização das áreas livres e verdes do entorno, tanto quanto a própria rarefação de suas atividades coletivas constantes, até a degradação de sua estrutura, ocorrida nas últimas décadas[2].
Sensível à importância deste lugar para as manifestações artísticas, a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) e a Diretoria de Cultura (DCult) promovem a pintura externa das pétalas do teatro convidando o coletivo de artistas de Campinas “New Family Crew” para ocupar o espaço externo com sua produção artística, em atividade voltada à Recepção dos Calouros de 2018.
Dois anos mais tarde, em 2020, o Instituto de Artes, apoiado pela Prefeitura do Campus, dá início às atualizações da infraestrutura do teatro. Nesse processo, rapidamente se percebe uma grande expectativa na comunidade universitária para os múltiplos usos, formas e significações que assume aquele local. A reforma e a atualização daquela estrutura avançam e em outubro em 2021 o Teatro é reinaugurado a partir da retificação de seus acessos, reparos na arquibancada e estruturas elétrica, atualização de tubulações de água que atendem a 50% do campus, bem como a implantação da cobertura e iluminação para o palco. Não escapa a este projeto a atualização da pintura mural externa, promovida pelo Instituto de Artes a partir do convite a um grupo de quatro grafiteiros da região de Campinas, artistas representativos desta linguagem urbana cujo portifólio de projetos apresenta forte vinculação à ancestralidade negra e africana. Intitulado “Africanidades” o projeto para a nova pintura do Teatro de Arena da Unicamp responde pelos anseios da universidade em se aproximar de grupos, comunidades externas e estética ainda não devidamente assimiladas em seu cotidiano. Assim, busca para a visualidade do projeto, referenciais da urbanidade da pintura mural e do grafite pautados pelos elementos da cultura africana de modo a garantir discursiva e estruturalmente, o empenho da proposta.
A este tempo, a Unicamp demonstra atenção para a diversidade e multiculturalidade em sua constituição. O poder simbólico de lugares de convivência e de encontro, como é o caso do Teatro de Arena, estabelece marcos importantes para os múltiplos grupos sociais que chegam ao campus e por aqui passam a interagir, de modo a dinamizar a paisagem, os sentidos de pertencimento e a importância do culto aos saberes ancestrais.
Em 2022, impulsionado pelo “IX Encontro Nacional de Estudantes Indígenas” realizado na Unicamp, com variadas atividades programadas para o espaço do Teatro de Arena, toma força a reivindicação de representação desse grupo de estudantes no cotidiano do campus. O Instituto de Artes passa a trabalhar novamente com o apoio da Prefeitura do Campus para outra camada de pintura daquele espaço do Teatro voltando-se agora para o sua parte interna. O novo projeto intitula-se “Ancestralidade e Futuro” e foi construído por um grupo de sete alunos representantes dos povos originários da Unicamp que atuam conscientes da importância da auto afirmação de seus saberes possibilitados pela expressão artística em espaço tão caro ao campus. Este projeto guarda a importância de incluir em sua visualidade e configuração como grupo, uma proposição imagética que combina os povos originários do país e de demais países da América Latina, presentes em nosso cotidiano universitário, já há bom tempo.
“Ancestralidade e Futuro” foi planejado de forma dialogada pelo grupo e apresentou como conceito principal a ser seguido, o desejo de explorar visualmente a possibilidade de intersecção e espelhamentos das cosmovisões dos distintos povos indígenas em imagens que expressam suas culturas por meio de festas, danças, cantos, medicina ou arquitetura. A vulnerabilidade desses povos e a luta pela terra também perfilam nessas imagens que formam oito pinturas ladeadas pela aplicação de grafismos nos bancos localizados nas pétalas do teatro. O encantamento proporcionado pelo trabalho final bem sinaliza a beleza singular de expressões figurativas e abstratas que são a base dessa cultura visual, nem sempre idealmente reconhecida nos estudos acadêmicos ou cotidiano de trabalho artístico até então trabalhados pela Universidade, em suas áreas humanística, pedagógica, artística e cultural. A reunião dessa simbologia apresentada em um local central do campus, favorável ao convívio de muitos usuários locais e visitantes oportunos, adensa assim a noção de urgência que passa a ocupar a atenção das atividades dos diferentes agentes atuantes da Universidade.
Olhar para as distintas camadas de significado, uso e apropriação artística, que configuram o histórico do Teatro de Arena da Unicamp nos conduz à verificação de certa vocação desse equipamento para a ancestralidade. Assim é que podemos compreender a camada de pintura de seu projeto atual, “Ancestralidade e Futuro” como portadora de significativa representação simbólica de nossa sociedade que, em tempos contemporâneos, não pode vir desacompanhada do elemento dialógico com as variadas formas de conhecimento para além daquelas que orientaram até pouco tempo, o surgimento lato senso da universidade.
Os padrões geométricos com diferentes sentidos para as distintas comunidades indígenas representados nos bancos do teatro são indicativos da sofisticação intercultural desses desenhos. Por sua vez, as cenas narrativas de caráter figurativo criadas para áreas centrais das pétalas anunciam-se por meio da organização transdisciplinar na forma de participação coletiva de pessoas de povos diferentes. O tempo que dá espessura à sua presença no campus vem depositando a terra do entorno para dentro da área do teatro fazendo parecer que nesse chão manchado de um avermelhado terroso estamos no interior de uma casa indígena. A experiência de transformação desse lugar tanto nos ensina sobre o respeito à natureza quanto nos dirige à urgência do reconhecimento da amplitude de grupos étnicos, sociais e culturais que habitam o planeta, de modo particular, a Abya Yala, tal como é designado o continente americano nos termos da língua Kuna. Abya Yala, tomada de poesia e conhecimento, dá significado de “terra da maturidade” ao nosso continente.
O simbolismo empregado às consecutivas camadas de visualidade do Teatro de Arena da Unicamp sugere que essas preocupações finalmente tomam lugar em nossa atualidade acadêmica e passam a aquecer o espaço situado no coração do campus, acessível a tantos habitantes e visitantes ocasionais que chegam até sua área central, no marco zero da universidade.
[1] A tese de Flávia Garboginni analisa as etapas de implantação do campus Zeferino Vaz destacando a construção do teatro de arena nas pags,165, 200 e 203. Ver em: GARBOGINNI, Flávia. O potencial dos espaços abertos na qualificação urbana: uma experiência piloto na Cidade Universitária Zeferino Vaz. Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, 2012.
[2] Um conjunto de aspectos históricos, artísticos e culturais que tem o Teatro de Arena da Unicamp como centralidade foram estudados e publicados na forma de artigo no V Seminário Nacional GEAP BR, disponível em: https://geapbr.files.wordpress.com/2023/03/anais-geap-br-2022-3.pdf
| FICHA TÉCNICA |
Sylvia Furegatti | livre-docente e professora do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Unicamp. Artista visual, curadora e pesquisadora das relações entre arte, espaço urbano e de natureza e paisagem. Membro fundador do Grupo Pparalelo de Arte Contemporânea (www.ppllartgroup.net). Atualmente ocupa o cargo de Diretora de Cultura (DCult) da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) da Unicamp.
O grupo foi composto por | John Alexandre Dias, indígena do povo Dessana e graduando em Letras-Português (IEL); Tania Sahire, indígena Aymara imigrante de nacionalidade boliviana e graduanda em Artes Visuais (IA); Clebiton de Souza Ferreira, indígena do povo Tikuna do Amazonas e graduando em Educação Física (FEF); Luzneri Aguiar Azevedo, indígena do povo Tukano e graduanda em Estudos Literários (IEL); Daniela Rodrigues Andrade, indígena do povo Baré do Amazonas e graduanda em Letras (IEL); Quirino Lucas, indígena do povo Ticuna e graduando em Ciências Sociais e Nicolas Felipe Da Silva, descendente do povo Guarani-Kaiowá e graduando em Música (IA). A coordenação geral do projeto foi realizada por Sylvia Furegatti, docente do DAP IA.
Os artistas integrantes projeto são | Hélio Domingues da Luz – Cabelin, artista visual, professor e produtor de Campinas; Diórgenes Moura, artista visual e professor que vive em Piracicaba; Leandro Ferreira dos Santos – Kranium, grafiteiro e produtor que vive em Hortolândia/SP; e Edson Souza – EdsonXis, grafiteiro que vive em Hortolândia/SP. A curadoria e organização geral foi feita por Sylvia Furegatti (docente do IA Unicamp).
Um conjunto de aspectos históricos, artísticos e culturais que têm o Teatro de Arena da Unicamp como centralidade foram estudados e publicados na forma de artigo no V Seminário Nacional GEAP BR, disponível em | https://geapbr.files.wordpress.com/2023/03/anais-geap-br-2022-3.pdf
Informações gerais sobre este projeto, sob coordenação geral da DEPI Unicamp, podem ser conhecidas em | https://www.depi.unicamp.br/inauguracao-do-teatro-de-arena/
Ano | 2024
FUREGATTI, Sylvia. O Teatro de Arena e suas camadas de ancestralidade artística e cultural. ClimaCom – Territórios e povos indígenas. [online], Campinas, ano 11, n. 26. jun. 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-teatro-de-arena/
SEÇÃO ARTE | TERRITÓRIOS E POVOS INDÍGENAS | ANO 11, N. 26, 2024
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