Um convite a viver juntos – fazendo o “nós complexo”[*] | Marisol de La Cadena. Trad. Susana Dias e Renzo Taddei


Marisol de La Cadena [**]
Tradução de Susana Dias e Renzo Taddei

 

Eu adiro a esse Manifesto [“The Anthropocene in Chile: toward a new pact of coexistence Las Cruces, April 2017”]. Certamente. Escrito nele estão demandas que nos empurram para o limite – e que é, precisamente, onde eu quero entrar nesse tema e empurrar um pouco mais para provocar uma tensão produtiva que se conecta com o experimento coletivo que o Manifesto é. Sim, “o Antropoceno” é um lugar de debate, como está implícito no Manifesto, um lugar de deslocar o anthropos conhecedor, para tornar possível conhecer-pensar-sentir sem ele – ou melhor, não apenas contra ele. Talvez o mais importante: este momento de catástrofe pode nos dar “a coragem para questionar nossas narrativas culturais mais básicas”, como Val Plumwood enfatizou antes de sua morte[1].

Eu considero nós um bom lugar para começar minha contribuição; portanto, eu marquei com itálico. É também a primeira palavra do Manifesto, e isso é significativo, por se referir aos seus escritores (e as relações que os fez pensar). Parafraseando Zygmunt Bauman, eu diria que este “nós” autodefine um grupo (intelectuais) que tem a prerrogativa para fazê-lo[2]; isso parece inevitável, e pode plausivelmente ser considerado inócuo, mas ainda assim é importante, pois ele pode praticar uma hierarquia – mesmo sem intenção. Como uma antropóloga, eu estou muito familiarizada com afirmações formuladas pela divisão entre “nós” e “eles”, que é também uma relação. Como uma herança dos primórdios da antropologia, sua origem no estudo dos marcados como “outros”, a autodefinição implicada nessa formulação expressa e pratica a colonialidade da hierarquia epistêmica: em frases como “nós os conhecedores, vocês os crentes” a hierarquia é também racial – mais abaixo eu voltarei aos meus itálicos. Através dessa relação excludente os sujeitos conhecedores compartilham pouco ou nada com suas “contrapartes” crentes. Às vezes, como Johannes Fabian nos lembrou[3], eles nem mesmo compartilham uma contemporaneidade: o momento simultâneo do encontro foi e pode ainda ser dividido no passado (que “eles” ocuparam) e no presente (que “nós” – antropólogos e leitores – ocupamos). Nessa relação, o direito de excluir é também benevolente o suficiente para conceder a “eles” igualdade. Por exemplo, nos anos de 1940, antropologias determinaram que as crenças “deles” eram, como as nossas, lógicas (Evans-Pritchard)[4] e, nos anos de 1980, que suas histórias eram nossa história (Wolf)[5]. Mergulhados na colonialidade, a igualdade concedida continuou a sustentar um eu definidor que também definiu o seu outro como, ao mesmo tempo, diferente e envolvido nele. Isso pode soar contraintuitivo, no entanto essa era uma relação onde a diferença emergia da semelhança: o eu conhecedor fez o seu outro a partir de suas próprias ferramentas; a diferença significava pertencimento, não raro hierarquicamente, a uma humanidade autodefinida estendida para “todos os humanos”.

 

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

[*] Artigo originalmente publicado por Marisol de la Cadena na revista Environmental Humanities em novembro de 2019, com o título: An Invitation to Live Together: Making the “Complex We”, e disponível em: https://read.dukeupress.edu/environmental-humanities/article/11/2/477/140789/An-Invitation-to-Live-TogetherMaking-the-Complex. O Manifesto a que se refere a autora foi publicado na mesma edição e está disponível em: https://read.dukeupress.edu/environmental-humanities/article/11/2/467/140786/The-Anthropocene-in-ChileToward-a-New-Pact-of

[**] Departamento de Antropologia, University of Califórnia, Davis, USA.

[***] O texto original foi publicado sem resumo; o que acompanha este texto foi criado pelos editores, de modo a satisfazer as exigências editoriais da ClimaCom.

[1] Plumwood, “Nature in the Active Voice,” 113.

[2] Bauman, Legislators and Interpreters.

[3] Fabian, Time and the Other.

[4] Evans-Pritchard, Witchcraft.

[5] Wolf, Europe and the People without History.

Um convite a viver juntos – fazendo o “nós complexo”[*]

 

RESUMO[***]: O artigo discute o Manifesto “The Anthropocene in Chile: toward a new pact of coexistence, abril de 2017”, publicado na revista Environmental Humanities em 2019. Propõe o conceito de “nós complexo” para alterar as divisões tradicionais da antropologia entre conhecedores e crentes e desafia a visão hierárquica do conhecimento, que historicamente categorizou povos não europeus como diferentes e inferiores. O texto também discute como a divisão entre natureza e humanidade, enraizada na história colonial e nas classificações raciais, afeta relações sociais e ambientais contemporâneas. A autora ressalta a necessidade de reconhecer os excessos que não se encaixam nas categorias ocidentais, de modo a abrir espaço onto-epistêmico para entidades que desafiam as fronteiras estabelecidas entre o humano e o não humano. Menciona, ainda, a ideia do “anthropos-não-visto” como conceito alternativo ao Antropoceno, destacando os existentes que excedem as categorias convencionais e são, portanto, ignorados ou negados. 

PALAVRAS-CHAVE: Antropoceno. Colonialidade. Nós complexo. Antropos-não-visto.

 


An Invitation to Live Together: Making the “Complex We”

ABSTRACT: The article discusses the Manifesto “The Anthropocene in Chile: toward a new pact of coexistence, April 2017”, published in the journal Environmental Humanities in 2019. It proposes the concept of “complex we” to alter anthropology’s traditional divisions between knowers and believers and challenges the hierarchical vision of knowledge, which has historically categorized non-European peoples as different and inferior. The text also discusses how the division between nature and humanity, rooted in colonial history and racial classifications, affects contemporary social and environmental relations. The author highlights the need to recognize excesses that do not fit into Western categories, to open onto-epistemic room for entities that challenge the boundaries established between the human and the non-human. She also mentions the idea of the “anthropo-not-seen” as an alternative concept to the Anthropocene, highlighting beings that exceed conventional categories and are, therefore, ignored or denied.

KEYWORDS: Anthropocene. Coloniality. Complex we. Anthropo-not-seen

 


DE LA CCADENA, Marisol. Um convite a viver juntos – fazendo o “nós complexo” [online], Trad. Susana Dias e Renzo Taddei. Campinas, ano 11, nº. 26. jun. de 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/convite-a-viver-juntos