Uma questão de escala. Cantata ornata | Silvana Sarti

Título |Uma questão de escala. Cantata ornata

O brejo: água e terra. A noite: sinfonia no escuro. Sons variados e ritmados, os anuros: rãs, pererecas e sapos, acompanhados por grilos, criam um grande concerto, utilizando escalas musicais que emprestam de outros seres ou artefatos. Essa música inusitada dá a impressão de nascer de grandes seres, mas incrivelmente são gerados por seres diminutos, simpáticos, que sabem como encantar, seja no amor ou na guerra. Além de grandes músicos, outras artes praticam, a “dança”: em movimentos de apresentação de seus atributos para as fêmeas (display sexual) ou fingindo-se de mortos (tanatose) para afastar os predadores. Também a “pintura” pode ser ressaltada como uma arte praticada por eles: suas peles parecem telas, com múltiplas cores saindo do azul celeste, azul turquesa, vários tons de amarelo, verdes, vermelhos, tons de terra, preto, numa infinidade de combinações e grafismos, como listrados, bolinhas, linhas sinuosas, gotejadas, como num grande desfile de modas, com camuflagens mil, mimetismo puro: esconder-se para preservar-se.

Da ideia dessa pele/ tela, inspirando-me nos costumes indígenas, que por sua vez, nos bichos se inspiram, crio uma “maquiagem” pele anfíbia, com óleo de coco e pigmento mineral, de acordo com minha formação de pintora de ornamentos. Elejo a Rhinella ornata, o cururuzinho que foi o primeiro anuro que se apresentou na nossa saída em campo, quando o professor Luís Felipe nos explicou que essa espécie recebeu esse nome, por ter ornamentos nas costas, assim tive a ideia do desenho que reproduziria em meu corpo, adaptado de seu grafismo elegante, pintura realizada em minhas costas, pela artista Rosana Toralba, também participante da residência artística “Seguir os sapos”. No conceito ritualístico da performance, para completar a pintura, a estudante e pesquisadora indígena Rayane Barbosa, do povo Kaingang, trouxe o grafismo indígena, cobrindo toda parte frontal de meu corpo e membros utilizando a tintura de jenipapo, que tem um sentido de proteção do indivíduo, para sua nação.

Para esta expedição fomos acompanhados pelo herpetólogo, professor Luís Felipe Toledo, acima citado e os pesquisadores Natália Aranha e João Pedro Bovolon, acostumados ao devir sapo, conhecedores de seus costumes, nos ensinaram a maneira segura e respeitosa de adentrar um mundo desconhecido para nós e enfrentar os seres da noite, reais e imaginários. Implicava em ouvir, pisar de mansinho num chão que pouco se enxergava, cuidar para que nossos pés não afundassem na lama. Entendedores também de cada tipo de canto, sabiam distinguir, no meio da sinfonia toda, cada “instrumento”, isto é, sapo, rã, perereca, grilo, outros sons. E aí veio a triste notícia, muitas espécies estão sendo dizimadas, desde o início do século XX, por um vírus que na água os contamina, no mundo todo, epidemia comparável a Covid-19 para nós humanos.

O corpo humano e o corpo anuro apresentam semelhanças, a divisão dos membros, os cinco dedos de algumas espécies. Eles, com seu corpo esticado, podem lembrar um corpo humano. Pequenos em repouso, duplicam seu tamanho quando saltam distancias muito grandes. No Egito, Heket uma divindade antropomórfica, mulher com cabeça de sapo, era cultuada como deusa da fertilidade e do parto. Os corpos híbridos me interessam, como possibilidades de questionar as certezas ou produzir incertezas. A maternidade que não experimentei aflora em minha poética artística como poder de criação e recriação.

A música tem sua escala e temos também a escala da dimensão de nossos corpos tão diferentes e tão parecidos: eu e o sapo. Integrados pelos movimentos corporais, pelas artes, pelo sentimento de pertencer a uma única vida, na qual todos nós constantemente nos reciclamos. 

Assim chega o momento da performance, no interior da instalação “Quatro Cantos”, o devir sapo se realiza, dentro das regras sugeridas para visitação. Segundo o professor Stefano Ferrari, da universidade de Bologna, no congresso “O corpo em performance, entre estados de alteração de consciência e processo criativo”, 2019, Bolonha, Itália, denomina-se “estados alterados de consciência para a arte”, o tipo de concentração ativa que durante a ação, o artista apresenta. Assim como nos processos xamânicos de alguns indígenas do Brasil, o xamã toma a forma do animal com o qual deve se comunicar, não representando, mas sendo o próprio animal: “jawará ichê” isto é, “eu onça”. Eu busco esse “ser sapo”, agindo e pensando como tal, ouvindo a floresta, movimentando-me lenta ou rapidamente em resposta aos estímulos de outros seres ou plantas ao meu redor. Seres de hábitos noturnos, existia algo a mais a acrescentar, o escuro. O som dos anuros repetitivo funcionava como um ritmado mantra para me manter nesse transe, o ar-condicionado movia as folhas de papel de seda, muito leves e faziam pensar nos inúmeros seres da floresta, passando embaixo de mim, ao meu lado ou em cima de mim. Tinha a impressão de umidade, talvez pela baixa temperatura que meu corpo nu experimentava. Pessoas entravam e saiam da sala, em duplas, utilizavam lanternas e observavam conversando sobre as fotos que deveriam encontrar nesse local, sugestão feita para que permanecessem alertas. Gradativamente eu ia encontrando posições interessantes e que fossem menos dolorosas para mim, utilizei a parede de apoio e notei que minha pintura corporal foi formando manchas na mesma, como um carimbo colorido. As sombras de meu corpo e rosto foram estímulos, como se eu criasse um duplo de mim. Em um dado momento, uma pessoa se aproximou muito de meu corpo/sapo e me tocou delicadamente e rápido, como se ela sentisse um estranhamento ao tocar-me.

Permaneci imóvel e quando a pessoa se afastou, fiz um movimento brusco, mas pequeno, empurrando com força as folhas do chão, a pessoa assustou e saiu dizendo: Impressionante! A técnica do movimento brusco vem do teatro kyogen, teatro clássico japonês, o qual utiliza a técnica de misturar movimentos rápidos em grandes sequencias de movimentos muito lentos. 

Quando ainda pensava que faltasse muito tempo e já cansada, entram duas mulheres que fotografavam muito e usavam as lanternas em mim. Depois de um tempo uma delas se aproxima bem perto, olha para mim, dentro de meus olhos e diz que terminou e que ela iria me ajudar a fazer a travessia até a outra sala. Sorrio, mas ainda estou em um estado de letargia que me dá uma estranha impressão, não sei mais onde estou e nem consigo imaginar para onde ela me levaria, mas sua voz me dava segurança, inspirava confiança, era doce e tinha um sorriso nos lábios. Essa passagem me lembrou a sala dos espelhos do teatro No, corredor que propicia um estado de concentração para entrar ou sair do “personagem” ou do rito. Também sinto uma semelhança nos relatos de algumas religiões sobre o pós-morte, quando a pessoa é recebida por um ente querido que a introduzirá nessa nova forma de vida. No umbral, já vendo a luz e ouvindo o burburinho dos humanos, penetrei de volta num dos meus mundos, aquele mais habitual e cotidiano.

Gratidão imensa a idealizadora, mentora desse casamento profícuo, fértil e feliz entre Arte, Cultura e tecnologia, Susana Oliveira Dias, tecedora da magia entre mundos.

 

*Herpetologia é um ramo da ciência que estuda os grupos de anfíbios. 

Convegno: Il Corpo in performance tra stati di alterazione di coscienza e processo creativo a cura di Stefano Ferrari e Mona Lisa Tina, Bologna (linkedin.com)

 


| FICHA TÉCNICA |

Performance | Silvana Sarti

Pintura corporal | Rosana Torralba

Grafismo indígena | Rayane Barbosa Kaingang

Bromélias | Silvana Sarti

Acrílica sobre papéis diversos
70×50 cm – 2020
60×50 cm – 2023
65×50 cm – 2023

Residência Artística ClimaCom | “Seguir os Sapos”

E-mail | silvana.sarti@gmail.com

Ano| 2023

 


 

Mostra | Seguir os Sapos

O Brasil é um hotspot de biodiversidade para anfíbios. Só na Mata Atlântica são conhecidas mais de 700 espécies de anfíbios anuros, sendo que 90% destes são endêmicos deste bioma. Os anuros são animais ectotérmicos, ou seja, necessitam de fontes externas para conseguir manter sua temperatura, são sensíveis aos efeitos causados pela mudança na temperatura ambiental e precipitação, interferindo na fisiologia e nas interações com outros seres vivos. Devido a hipersensibilidade dos anuros à poluição química, de rios e águas superficiais, doenças, fragmentação de áreas, mudanças climáticas, radiação ultravioleta, além de outros fatores, atualmente estão entre o grupo de vertebrados terrestres com maior risco de extinção. Para encontrá-los, além de olhos treinados, os herpetólogos nos ensinam que é preciso estar atento aos seus cantos. Os sapos emergem, no encontro com as ciências biológicas, como cantores que desafiam o sistema perceptivo, pois é preciso inventar um corpo que se lança na mata no escuro da noite e que se torna capaz de enxergar com os ouvidos. Conhecer as práticas dos herpetólogos, e experimentar criações artísticas com eles, pode ser um modo de ganhar intimidade com os sapos, uma maneira de aprender a seguir seus modos de existir entre meios. Esta Mostra é resultado dessa aposta, experimentada na Residência Artística ClimaCom “Seguir os sapos” e na disciplina “Arte, ciência e tecnologia” do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural do Labjor-IEL-Unicamp (2023), ambas realizadas em parceria com o Laboratório de História Natural de Anfíbios Brasileiros (LaHNAB), do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Uma parceria que buscou ativar conexões vivas entre artes, ciências que levem a sério o que pode ser a criação de uma relação de amizade, companheirismo, vizinhança e parentesco com os sapos que sejam capazes de gerar novos modo de perceber, pensar, sentir, imaginar e agir mais conectados com a Terra.

Curadoria e expografia | Natália Aranha e Susana Dias.

Local | Espaço Plural do Labjor-Unicamp

Ano | Maio de 2023

 

 

SARTI, Silvana. Uma questão de escala. Cantata ornata. ClimaCom – Ciência.Vida.Educação [online], Campinas, ano 10, n. 24. maio 2023. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/cantata-ornata/


 

SEÇÃO ARTE | CIÊNCIA.VIDA.EDUCAÇÃO | Ano 10, n. 24, 2023

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