Desastres e vulnerabilidades: entre o extraordinário e o invisível

Estabelecer as correlações entre desastres naturais e doenças crônicas ainda é desafio para saúde pública

Por: Daniela Klebis

 

Os dados oficiais de desastres naturais, como o tornado que passou pelo Oeste de Santa Catarina no último dia 20 de abril, trazem um problema frequentemente ignorado, especialmente no âmbito da saúde coletiva nacional: eles dão conta apenas do período imediato pós-desastre. As informações não levam em conta as populações reincidentes, que sofrem com os mesmos tipos de eventos, repetidamente, através dos anos. A ocorrência de eventos naturais extremos cada vez mais frequentes – conforme apontam os estudos sobre as mudanças climáticas -, somada às condições de vulnerabilidade social e ambiental, à população exposta ao risco e à insuficiência de medidas para reduzir o risco potencial e os danos à saúde são os quatro fatores que configuram um desastre natural e que são cruciais para o planejamento na saúde pública, conforme aponta o artigo “Desastres Naturais e saúde: uma análise da situação do Brasil” publicado na revista Ciência&Saúde, em 2014. No entanto, essa aproximação entre os desastres e saúde pública é um tema ainda pouco pesquisado e compreendido, o que acaba comprometendo o planejamento e implementação de políticas públicas que reduziriam o grau de vulnerabilidade das diversas regiões no país.

Os desastres naturais são fenômenos sociais, resultantes da confluência de processos globais – socioeconômicos e climáticos – e processos nacionais e locais de desenvolvimento e planejamento urbano e social. A combinação de processos sociais que tornam populações mais vulneráveis aos desastres, resultantes da precariedade de condições de vida e proteção social (como infraestrutura das habitações, rendimentos, empregos), com processos de degradação de ambientes (desmatamentos, poluição, ocupação de áreas urbanas sem planejamento), resultam nas chamadas condições de vulnerabilidade. “As condições de vulnerabilidades estabelecem territórios críticos em diferentes escalas e em diferentes temporalidades, o que coloca a questão dos desastres como um problema essencialmente socioambiental, desmistificando a ideia de um evento imponderável ou apenas de origem natural. Os territórios críticos são, assim, as áreas reais, onde as contradições sociais apontadas como geradoras de vulnerabilidade estão estabelecidas”, aponta o estudo.

A grande porção dos registros de feridos leves e graves, bem como das mortalidades decorrentes dos desastres naturais, são feitas entre horas e poucos dias depois do evento. O tornado em Santa Catarina é um exemplo: segundo balanço da Defesa Civil do estado, os ventos causaram a morte de duas pessoas, deixaram cerca de 120 feridos, mais de mil pessoas desabrigadas e cerca de 55 mil casas sem eletricidade. Os dados oficiais foram reunidos no Formulário de Identificação de Desastre (Fide) da Defesa Civil, e serviram de base para que, três dias após o evento, o município mais afetado, Xanxerê (a 550 km de Florianópolis), encaminhasse um pedido de decreto de calamidade pública ao Ministério da Integração Nacional, com o objetivo de agilizar o processo de repasse de verbas para reparação emergencial de danos.

 

Imagem: coletivo multiTÃO

“Papel experimentação”, coletivo multiTÃO. Veja ensaio completo em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=684

 

Contudo, os desastres continuam a reverberar a médio e longo prazo, demandando planos de controle e prevenção de enfermidades. No período entre dias a semanas após a incidência, existe a possibilidade de surgimento de doenças transmissíveis, como a leptospirose e doenças diarreicas (no caso de enchentes), bem como o agravamento da situação de pacientes crônicos, como os hipertensos, por conta de danos que afetam os serviços essenciais, como o abastecimento de água, energia elétrica e alimentos, por exemplo. Os efeitos psicossociais serão refletidos na saúde dessas populações em espaço maior de tempo, entre meses e anos, com impactos relacionados a transtornos psicológicos e comportamentais, doenças cardiovasculares, desnutrição e a intensificação de doenças crônicas. A maior dificuldade, segundo o estudo, é justamente estabelecer as correlações a médio e longo prazo, ou seja, como demonstrar que epidemias, ou agravamento de doenças crônicas, por exemplo, que podem ser observadas somente após semanas ou anos, são consequências diretas de eventos extremos e, por fim, determinar políticas públicas adequadas a tais necessidades.

Antropologia do desastre

Uma vez estabelecidas essas correlações entre eventos extremos e epidemias crônicas, que tipos de políticas se espera a partir desses índices? Os antropólogos Renzo Taddei e Ana Laura Gamboggi tocam essa discussão no artigo Etnografia, meio ambiente e comunicação ambiental, de 2011, quando chamam a atenção para o fato de que a falta de uma interlocução consistente das pesquisas ambientais com as teorias sociais geram compreensões isoladas e utilitaristas do problema, que culminam na prescrição de estratégias normativas para mudar comportamentos.  “Obviamente, a maioria dos antropólogos defende a preservação do meio ambiente, defendendo, portanto, mudanças culturais e comportamentais que contribuam para tanto. O que não defendem é a adoção de mecanismos indutivos unilaterais que, em razão de estarem fundamentados em uma compreensão superficial dos fenômenos estudados, acabem por trazer efeitos colaterais desastrosos para as comunidades envolvidas”, comentam.

Os pesquisadores propõem, dessa forma, o uso da etnografia como metodologia em pesquisas que têm por objetivo a elaboração de políticas públicas. O argumento é que por meio de uma abordagem etnográfica participativa, o pesquisador tem acesso a um processo de construção que leva em conta, além das práticas sociais, culturais e econômicas observadas, as formas que essas populações empregam para diagnosticar os problemas a que estão expostas e justificar suas condutas. Ou seja, tal metodologia estabelece uma dialogicidade com certas dimensões socioculturais (“as formas como saliência, relevância, autoridade e legitimidade são percebidas, negociadas ou construídas”) que, se levada em conta na proposição de estímulos a mudanças comportamentais e cognitivas, permite a tomada de posições mais efetivas que o simples disseminar de informações. “Trata-se de um processo que é parte da construção do que tem sido chamado de cidadania ambiental, em seu viés epistemológico. Essa divisão, ainda que assumidamente esquemática, tira o foco da abordagem unidirecional, normativa ou informativa, e ressalta o caráter relacional da questão”, explicam.

O esforço para implementar tal metodologia exigiria, entretanto, também um maior envolvimento da antropologia nos estudos sobre os desastres naturais. Em artigo mais recente, o próprio Taddei aponta para a  invisibilidade dos desastres na antropologia brasileira, e observa que, ao passo que os arquivos sobre notícias de desastres naturais decorrentes das mudanças climáticas são robustos o suficiente para evidenciar “a ocorrência cíclica de epidemias de sofrimento causadas por eventos ambientais extremos ocorridos no país”, os periódicos mais bem avaliados na antropologia não apontam nenhuma tendência de estudos na área: entre 1300 artigos levantados pelo uso das palavras-chave desastre, tragédia, risco, vulnerabilidade, resiliência e clima, apenas 14, ou seja, 1% do total, abordam o conceito de risco e mudança climática; já as palavras desastre, tragédia, vulnerabilidade e resiliência não aparecem uma vez sequer. Para o autor, uma hipótese que explica essa invisibilidade na antropologia está na tradição que desde Weber e Durkheim implica em tratar o extraordinário como irrelevante para a compreensão das condições típicas das sociedades. “Esses estados são, obviamente, indesejados; no entanto, isso não equivale a dizer que sejam “anormais” ou “excepcionais”. As mudanças climáticas –  a ponta de iceberg do antropoceno  –, demandarão recomposições radicais da realidade socionatural. Sob este prisma, a necessidade de exploração de tais perspectivas pós-normais se impõe de forma imperativa”, conclui.