Reforma agrária e desmatamento na Amazônia: usos da terra e preservação da floresta em choque?

Políticas ambientais e de redistribuição de terra frequentemente entram em conflito quando se trata de assentamentos rurais na Amazônia, que têm sua parcela no desmatamento da região

Por: Meghie Rodrigues

Tema espinhoso para a formulação de políticas públicas país afora, a reforma agrária pode se tornar ainda mais intrincada quando se trata do uso do bioma amazônico com fins de redistribuição de terras. A contribuição de assentamentos para o desmatamento na Amazônia não é, segundo especialistas, desprezível – e pode ser maior do que parece à primeira vista: números do Incra apontam que existem 9.256 assentamentos no Brasil, abrangendo 968.877 famílias em uma área de quase 90 milhões de hectares (maior que o estado de São Paulo). Destes, 3.482 assentamentos estão na Amazônia Legal, abrigando mais de seiscentas mil famílias, que não se sustentam apenas de agroextrativismo e pesca (em todo o país, existem 89 reservas extrativistas espalhadas por 17 estados, ocupando uma área equivalente à do Ceará). Políticas ambientais e agrárias, não raro, entram em choque na busca de soluções – que podem passar, como sugerem pesquisadores, não apenas por uma melhor distribuição de terras, mas também por levar em conta as trajetórias e relações sociais dos assentados para viabilizar sua permanência de forma a provocar menos impacto sobre o meio ambiente.

Dados do último Boletim do Desmatamento da Amazônia Legal do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostram que, entre agosto de 2014 e março de 2015, 86% dos desmatamentos aconteceram em áreas privadas – terras devolutas e/ou sob diversos estágios de posse. Os assentamentos, de acordo com o documento, respondem por 9% dos desmatamentos. Unidades de conservação geraram outros 5% de áreas desmatadas e em terras indígenas não houve detecção de desmatamento. O documento aponta ainda que, em relação ao mesmo período do ano anterior, entre agosto de 2013 e março de 2014, houve um aumento de 214% em áreas desmatadas na Amazônia Legal (de 560 km² para 1761 km²), sendo que os estados mais impactados foram Mato Grosso, Pará e Rondônia, com aumento de 640%, 227% e 209% nos desmatamentos, respectivamente.

As porcentagens preocupam se considerado o papel que a região – que além destes três estados abrange o Amazonas, Roraima, Acre, Tocantins e Amapá – exerce na regulação do clima e do regime hidrológico do país. Segundo o relatório “O Futuro Climático da Amazônia”, lançado em outubro de 2014, além de manter a umidade do ar, ao transpirar, as árvores do bioma amazônico contribuem para a condensação de nuvens e para a absorção do ar úmido do oceano para dentro do continente, mantendo chuvas sob quaisquer circunstâncias – além de funcionar como dissipador de energia de ventos que chegam, impedindo a formação de furacões. Atualmente, cerca de 20% da área total da região se encontra desmatada: 762.979 km², ou três vezes a área do estado de São Paulo, sem contar a área degradada de floresta, ainda maior que a área desmatada. Mais desmatamento poderá transformar a região em savana no futuro e desequilibrar o regime climático continental em decorrência da redução das chuvas – que já diminuíram na estação seca, de acordo com o documento, colocando as árvores sob risco de queima.

E o uso de regiões de floresta para realizar reforma agrária pode estar contribuindo para que estes números se expandam ainda mais, segundo François-Michel Le Torneau, pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação das Américas, da Universidade Paris III Sorbonne Nouvelle, e Marcel Bursztyn, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável, da Universidade de Brasília, e coordenador da sub-rede de Desenvolvimento Regional da Rede CLIMA. Em estudo de 2010, eles alertam para a necessidade de mudança no regime de ocupação da Amazônia: ao invés do foco no uso de terras já degradadas para a reforma – normalmente latifúndios privados – o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estimula a colonização de áreas ainda não ocupadas. Segundo os pesquisadores, a região abriga quase 55% dos lotes distribuídos para reforma no país, enquanto abrange menos de 15% da população rural brasileira, o que pode ser indício de um problema ainda maior.

 

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“Color-ações, por Susana Dias (Coletivo multiTÃO)”

 

Em um estudo de 2013, que narra o processo de criação de um Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) em Humaitá, no Amazonas, as pesquisadoras Luciana Silveira, professora do Departamento de Administração e Economia, da Universidade Federal de Lavras, e Raquel Wiggers, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas e pesquisadora da sub-rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas, da Rede CLIMA, observaram que “a concentração de terras permanece muito elevada, de forma que não é possível classificar a política de assentamentos rurais como um processo profundo de reforma e alteração da estrutura fundiária do país”.

É provável, também, que os 9% de desmatamento apresentados pelo Imazon sejam ainda maiores, porque a maior parte deles acontece fora das áreas demarcadas pelo Incra ou antes que elas sejam definidas. “Não é, portanto, surpreendente a notícia de que áreas de assentamento sejam responsáveis por uma proporção importante do desmatamento acumulado da Amazônia, mesmo que a comparação de projetos de assentamento, com várias centenas ou mesmo milhares de famílias, e grandes fazendeiros individuais possa ser certamente considerada desigual”, escrevem Bursztyn e Le Torneau.

No entanto, para além dos projetos de assentamento (PAs), o Incra dispõe de programas de assentamento com vistas a se adequar melhor à realidade ambiental da Amazônia, estimulando atividades de agroextrativismo de comunidades ribeirinhas e extrativistas, como os projetos de desenvolvimento sustentável (PDSs) e projetos de assentamento agroextrativistas (PAEs) – mas que ainda não chegam à metade dos assentamentos na Amazônia. De acordo com o Código Florestal, os assentados podem desmatar até 20% de floresta no terreno ocupado. Ao se encontrar em situação vulnerável, porém, muitos deles acabam excedendo o limite, principalmente para dar lugar à exploração madeireira e plantação de pastos para alimentar gado. E também não é rara a prática de venda e repasse informal de terras para ocupação, à margem da fiscalização. Por outro lado, reiteram os pesquisadores, é ilusório ter uma agricultura familiar produtiva em uma área pequena e manter 80% – até mesmo 50% – de sua área preservada. Daí a ambiguidade entre o desejo de preservação da floresta e seu uso para fins de reforma agrária, que “mantém as características de colonização de áreas novas, como nos tempos dos governos militares”, observam eles.

Isto mostra, segundo Silveira e Wiggers, a forma como os assentamentos rurais eram e têm sido tratados pelas politicas agrárias: “como espaços fixos, que podem ser delimitados, subdivididos, organizados e ocupados segundo critérios estabelecidos por [estas políticas], perdendo-se de vista o seu caráter de espaço socialmente produzido”. Na formulação de políticas públicas, relevar os traços de interação e organização social que caracterizam a vida dos assentados pode ser, segundo as pesquisadoras, um entrave para a sustentabilidade social e ambiental dos projetos de assentamento.

Entre as tentativas de resposta ao impasse por parte do Incra está a criação, em 2012, do Programa Assentamentos Verdes (PAV), que tem por principal objetivo combater o desmatamento em assentamentos de reforma agrária na Amazônia, a fim de mudar o perfil deles – não sem antes atravessar imbróglios judiciais. Tempos antes, o Ministério Público Federal havia ajuizado ações em seis estados da Amazônia Legal, apontando o órgão como o maior responsável pelo desmatamento na região – entre 2000 e 2010, os assentamentos teriam causado 18% do desmatamento observado, principalmente por causa da falta de controle sobre o comércio informal de lotes e por negligenciar o licenciamento ambiental em muitos casos. De acordo com o Incra, no primeiro semestre do ano passado, em comparação com o mesmo período de 2013, o número global de alertas de desmatamento na Amazônia teve redução de 32%. Nos projetos de assentamento, a redução foi de 52% – mas os números incluem apenas os assentamentos sob efetiva gestão do órgão, excluindo projetos municipais, estaduais e unidades de conservação – reconhecidos, mas não geridos pelo Incra.

Assim, viabilizar sustentabilidade ambiental e social na região continua sendo um desafio. Para estimular a redução de danos ambientais causados por assentamentos no bioma amazônico, Bursztyn e Le Torneau sugerem que os assentamentos sejam mais viáveis economicamente, localizados mais próximos de centros urbanos – o que poderia, também, facilitar sua fiscalização.

Eles também sugerem que uma maneira de reequilibrar territorialmente a reforma agrária seria dar mais enfoque à distribuição de terras no sul do país, mesmo que o impasse esteja longe de uma resolução: segundo os pesquisadores, está em jogo uma contradição aparente entre proteção social e proteção ambiental, num contexto de demandas urgentes. “No debate sobre esse mal-estar entre políticas públicas e opinião pública, a referência ao papel dos assentamentos no desflorestamento tende a ser apontada como politicamente incorreta, como se a responsabilidade ambiental estivesse subsumida à social”. Um elemento importante para agregar ao planejamento e debate destas políticas passaria, também, pela fluidez das relações sociais e identidades dos assentados: “a vida no assentamento não é fixa, nem é determinada exclusivamente pela relação com o Incra. Os diversos espaços de interações em três níveis – doméstico, local e regional – tornam complexas as relações sociais que influenciam na diferença entre o que é planejado e como este planejamento é vivido pelas famílias”.