“Quatro anos para fazer, duas horas para mostrar¹”: os documentários de natureza em perspectiva
Ideias e conceitos são produzidos em rede e negociados na cultura, tendo implicações nas relações sociais, nas produções artísticas, criativas e materiais de determinado período. Com o conceito de “natureza” não é diferente: aquilo que se entende por “natureza” é instituído e inventado a partir de uma série de artefatos, práticas e instâncias culturais. Assim, da mesma forma que as culturas vão sendo constantemente ressignificadas por diversos fatores, como disputas de poder e movimentos sociais, aquilo que consideramos ser natural, e como se pensa a relação cultura-natureza e homem-animal, também é inventado pelos humanos e disseminado em suas produções culturais.
Os documentários de natureza são artefatos culturais que, ao longo dos anos, foram tendo cada vez mais espaço na televisão aberta, por assinatura e, também, em escolas e faculdades, como apoio às aulas. Alguns documentários são produzidos com tecnologia 3D, em High Definition (HD) e exibidos em grandes salas de cinema, como forma de entretenimento. E isso acaba por constituir diversos significados sobre a natureza, os modos de nos relacionarmos com ela e, principalmente, por meio da composição/edição das imagens e falas de narradores (especialistas, cientistas e até mesmo celebridades), o comportamento tido como “natural” dos animais. Muitos desses modos de representar a natureza e seus elementos são recorrentes nos filmes documentais e, também, amplamente reforçados em outras instâncias culturais e artefatos midiáticos.
Portanto, um dos pressupostos deste trabalho é o caráter construcionista da representação – assume-se que as práticas representacionais constroem os sentidos que damos às coisas e constituem, também, as próprias coisas, uma vez que elas são significadas através “das palavras que usamos, das histórias que contamos acerca dessas coisas, das imagens que produzimos, das emoções que associamos às mesmas, da maneira como as classificamos e conceituamos, dos valores que lhes damos” (HALL, 1997, p. 4). O gênero cinematográfico “documentário de/sobre natureza” tem, dentro desta perspectiva teórica, se adaptado aos novos discursos conservacionistas contemporâneos – e, ao mesmo tempo, tem produzido mudanças nos modos de se falar de/sobre natureza.
Desse modo, o objetivo do presente texto é, através de análises de pôsteres e de imagens capturadas de documentários de/sobre natureza dos anos 1920 até os anos 2014, desenvolver algumas reflexões sobre os deslocamentos, as ressignificações e as adaptações que os conceitos de natureza, humanidade e animalidade sofreram ao longo das décadas (seja em função dos “gostos” dos públicos espectadores, dos avanços das tecnologias, da emergência de discursos ecológicos, conservacionistas, religiosos, feministas, étnico-raciais etc.).
Estudos fotográficos com animais em movimento, como os realizados por Eadweard Muybridge com o famoso The Horse in Motion (1882), formaram as bases para o cinema moderno e, também, do gênero documentário de/sobre natureza. Os primeiros filmes gravados entre os anos de 1894 e 1907 capturavam momentos isolados, partes de eventos, como o desabrochar de uma flor, a metamorfose de uma lagarta em borboleta, e o próprio galopar de um cavalo, caso do filme citado acima. Já Spiders on a Web (1900), realizado por G. A. Smith, é considerado um dos primeiros exemplos de filme de história natural em close-up, uma vez que consistiu no registro visual de aranhas presas em cativeiro. Outro exemplo é o filme Cheese Mites (1903), de Charles Urban que mostra ácaros rastejando em um pedaço de queijo, em um close-up inovador para a época. Com o passar do tempo, esses filmes foram perdendo popularidade. Derek Bousé, em seu site[4], afirma que, possivelmente, isso aconteceu porque um registro trivial, pequeno e pontual sobre um animal ou fenômeno natural – elaborado por meio de técnicas de edição que se limitavam a fazer interferências no “cenário” (colocar plantas e animais em ambiente controlado, por exemplo) – deixou de ser uma maneira eficaz de contar uma história interessante para as pessoas da época. A partir dos anos 1920, teve início um modo de representação da natureza bastante popular, e que, de certa forma, perdura até os nossos dias: filmes documentais sobre expedições, muitas vezes financiadas por grandes instituições, como museus e universidades, com o objetivo duplo de obter lucros de bilheteria e informações sobre lugares pouco explorados. Os “filmes de Safari” se popularizaram por meio de diversas estratégias: indução de comportamentos (correria e agitação) nos animais por meio
Figura 1 – Pôster do filme “I Married Adventure” (1940) / Figura 2 – Pôster do Filme “Simba” (1928)
Fonte: Pinterest Festival Safari Films Disponível em: link / Fonte: Wildfilm History Website Disponível em: link
de camburões, gritos, explosivos etc.; encenação de confrontos terríveis e mortais entre animais e nativos (ambos mostrados de modo articulado à natureza – “a guerra leonina da tribo Lumbwa[5]”, Fig. 1 – e, portanto, “partes do terror gritante da floresta”, Fig. 2); e, por fim, execução de animais a tiros em razão de uma suposta tentativa de ataque…
Figura 3 – Pôster do filme “Born to be wild” (2011) / Figura 4 – Pôster do filme “Born to be wild” (2011) da UCI cinemas
Fonte: Site da Imdb Disponível em: link / Fonte: Site da UCI Cinemas Disponível em: link
Os pôsteres dos filmes documentais exibidos nos anos 1950 e 1960 mostram animais – e nativos africanos – ferozes, raivosos, demonizados, e homens brancos (e mulheres “casadas com a aventura”! Figura 1) empunhando armas para detê-los. As florestas são consideradas lugares terríveis, entre outros predicados pejorativos. David Ingram (2000, p. 12) relata que, antes de 1960, o cinema tende a representar os animais silvestres como obstáculos malévolos para a conquista imperialista da natureza; obstáculos que foram superados por homens brancos. Mais recentemente, no entanto, os mesmos animais (macacos, elefantes e leões) e florestas vêm sendo representados como sendo benevolentes, devendo ser protegidos – ou, ainda, no caso dos animais, como pequenos “bichos de pelúcia” (“nascidos para serem amados”, “livres” e, estranhamente, “selvagens”, narrados a partir da voz de Morgan Freeman!).
Documentários de natureza buscam, segundo seus produtores e idealizadores, “retratar” a vida na selva ou floresta – uma “natureza” à qual os públicos não teriam acesso direto (pela experiência) e que, em teoria, só se expressaria plenamente “longe da civilização”. Como a maior parte dos públicos consumidores destas produções vive em ambientes urbanos, os documentários acabam por fazer muito mais do que simplesmente “retratar” a natureza e seus seres – trata-se de uma poderosa prática cultural que, por meio do entretenimento e do “deleite dos sentidos”, forma as percepções dos públicos relativamente aos animais, às plantas, ao clima da Terra, aos ecossistemas etc., e constrói/fabrica determinadas ideias de natureza.
O filme Simba (1928), cujo pôster ilustra a página 3 (Fig. 2), mostra a expedição do casal Osa e Martin Johnson à África – o filme é mudo, mas contém slides narrativos contando, segundo a ótica do casal, o que está se passando durante as filmagens. Sobre o leão que parece aproximar-se demais do grupo, lê-se no slide:
Esperávamos que ele fosse embora – um herói que tinha ousado o suficiente – mas ele se agachou para contra atacar – chegou mais perto -, e aqueles segundos pareceram horas… Então, ele se decidiu e veio atacando, para cima de nós, uma tempestade rugindo de fúria… (SIMBA, 1928).
Figura 5– Imagens capturadas do filme Simba (1928)
Fonte: Wildlife History Website Disponível em: link
Após essa cena, Osa Johnson descarrega as balas de sua arma no leão, que cai morto no chão. A cena final mostra os nativos africanos exibindo o corpo do animal, supostamente festejando, já que, em cenas anteriores, eles o estavam perseguindo com lanças, sem sucesso. O clímax do filme é, portanto, a morte do leão e sua celebração.
Já Born to be wild (2011), cujo título em português é Livres por natureza, conta a história de duas ONGs distintas e seus trabalhos no resgate de filhotes órfãos de orangotangos e elefantes, que tiveram suas “famílias[6]” vitimadas pela extração de marfim ou pelo tráfico de animais. Durante o filme, mostra-se o cotidiano dos animais resgatados e de seus cuidadores dentro dos centros (que ficam em áreas de proteção). As rotinas alimentares, as brincadeiras e os exercícios físicos em estruturas na mata para promover a “readaptação”, juntamente com os sentimentos intensos de amor, cuidado e carinho dos humanos cuidadores, e dos animais que estão sob seus cuidados, são, por assim dizer, a tônica do documentário. Trata-se da produção contemporânea de uma natureza, por um lado, infantilizada e, por outro, romantizada, novelizada, “disneyzada”, familiar e, no limite, “de conto de fadas” (o documentário, notadamente, inicia com uma espécie de “era uma vez, em uma floresta…”: “essa história parece um conto de fadas, mas é totalmente verdadeira […] em uma terra muito distante, com não apenas uma, mas duas fadas madrinhas […]” (LIVRES…, voz-off, 2011).
Outro ponto constantemente explorado no documentário de 2011 é a suposta “pureza” dos animais – uma primatóloga informa, durante as filmagens de vários orangotangos adultos, a conclusão a que chegou depois de décadas lidando com primatas e outros mamíferos: “Os orangotangos conservam uma inocência infantil que nós perdemos há muito tempo”. E em um dos momentos finais do documentário, diz, ao contemplar a mata ao som instrumental de uma calma melodia: “A floresta tropical é o Jardim do Éden, de onde nossos ancestrais saíram”. Além da alusão mítica a uma fábula bíblica, reforça-se a ideia de que a natureza é um paraíso – algo distante dos seres humanos e ao qual não pertencemos mais.
Figura 6 – Imagens capturadas do filme Born to be wild (2011)
Fonte: DVD do fime Born to be wild (2011)
A equipe responsável pelos orangotangos é formada exclusivamente por mulheres, que são chamadas de “mães adotivas”: dão mamadeira, trocam fraldas, embalam para dormir, lavam os filhotes com sabonete, cantam, afagam, penteiam e os carregam pendurados em si. Os responsáveis pelos elefantes filhotes são exclusivamente homens, e são chamados de “cuidadores”, apenas. Jogam futebol com os animais e dão banho de mangueira, correm pelo campo, jogam o alimento para cima etc.
Muitas representações sobre a natureza e seus elementos, que circulam em nossa cultura, estão cristalizadas como “naturais”, “verdadeiras”, “essenciais”, e postas como categorias indiscutíveis, adquirindo a autoridade do óbvio, do senso comum, do evidente, do natural, de tal maneira que a sua própria condição de representação é ocultada (AMARAL, 1997a, p. 54). Assim, além de explorar a noção de “família”, o documentário constrói o amor (o amor incondicional, o amor de entrega, o “amor materno”) como algo que, igualmente, une e aproxima humanos e animais. A primatóloga, por exemplo, afirma que os “bebês orangotangos” “se desenvolverão saudáveis se forem amados como as nossas crianças… eles precisam de muito amor e de cuidado”.
Os documentários, segundo Ralph Lutts (2001, p. 27),
[…] dizem muito mais do que apenas da “vida selvagem”. Estes filmes e vídeos não são imparciais registros da natureza. Cada um é uma representação cuidadosamente selecionada e editada da vida na natureza. Cada um está em submetido, por exemplo, aos recursos da tecnologia cinematográfica, aos objetivos e preconceitos dos realizadores, à economia da indústria do entretenimento, aos conceitos de natureza predominantes em um dado período histórico e às preferências percebidas dos telespectadores (LUTTS, 2001 p. 27).
Figura 7 – Imagens capturadas do filme Born to be wild (2011)
Fonte: DVD do fime Born to be wild (2011)
Um filme é capaz de produzir diversos sentidos e mobilizar nossos sentimentos através da história contada e das várias linguagens utilizadas. Com este breve texto, tentamos mostrar como as relações entre os humanos e as outras formas de vida são complexas, instáveis e mutáveis. Além disso, também tentamos mostrar como a natureza e os modos de representá-la no cinema – e não só nele – mudaram, adaptando-se aos discursos de cada época.
Referências:
AMARAL, M. B. Representações de natureza e a educação pela mídia. 1997. 187f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.
HALL, S. Representation: Cultural representations and signifying practices. London / Thousand Oaks / New Delhi: Sage, 1997.
INGRAM, D. Green Screen: Environmentalism in Hollywood Cinema. Exeter, U.K.: University of Exeter Press, 2000.
LUTTS, R. H. Review. Reel Nature: America’s Romance with Wildlife on Film. Environmental History, v. 6, n. 4, p. 634-635, 2001.
[1] Trata-se de frase que estampa o cartaz do filme Simba: o rei das feras (1928): “4 years to make, 2 hours to show”.
[2] Licenciada em Ciências Biológicas e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (PPGE/Ulbra). Bolsista Capes/Prosup. E-mail: ba.borba@gmail.com
[3] Doutora em Educação e professora do Curso de Ciências Biológicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (PPGE/Ulbra). E-mail: daniela_ripoll@terra.com.br
[4] <http://www.wildfilmhistory.org/> – acesso em 4 de março de 2014.
[5] Frase presente na Figura 2 e que remete ao povo que vive na região do Rift Valley no Quênia, África.
[6] Neste documentário, frisa-se a importância da família – tida como “laço que une todas as espécies”.
“Quatro anos para fazer, duas horas para mostrar[1]”: os documentários de natureza em perspectiva
Bárbara de Abreu Borba[2]
Daniela Ripoll[3]
RESUMO: Os documentários de natureza fazem parte da história do cinema e, partir da perspectiva teórica dos Estudos Culturais, são considerados poderosos artefatos culturais que, por meio do entretenimento e do “deleite dos sentidos”, formam parte das percepções dos públicos relativamente aos animais, às plantas, ao clima da Terra, aos ecossistemas etc., e constroem/fabricam determinadas ideias de natureza. O objetivo deste texto é, através de análises de pôsteres e fotogramas de documentários de natureza produzidos entre os anos 1920 e 2013, fazer algumas reflexões sobre os deslocamentos, as ressignificações e as adaptações que os conceitos de natureza, humanidade e animalidade sofreram ao longo das décadas.
PALAVRAS-CHAVE: Representações culturais de natureza. Documentários de natureza. Estudos Culturais.
ABSTRACT: Nature documentaries are part of film history and, from the theoretical perspective of Cultural Studies, are considered powerful cultural artifacts that, through entertainment and “enjoyment of the senses”, form parts of perceptions of the public with respect to animals and plants, the earth’s climate, the ecosystems etc. and build certain ideas of nature. The purpose of this paper is, through analysis of posters and photograms of nature documentaries produced between 1920 and 2013, make some reflections on the displacements, the reinterpretation and the adjustments that the concepts of nature, humanity and animality suffered along decades.
KEYWORDS: Cultural representations of nature. Nature documentaries. Cultural Studies.