Por: Patrícia Lora
As cidades, os processos de urbanização e a governança local tornaram-se espaços-tempos privilegiados por estudos e pesquisas que se propõem a pensar ações adaptativas ou de mitigação para as mudanças climáticas. Quais paisagens do possível emergem a partir daí? A simulação de cenários futuros, a produção de dados capazes de orientar a formulação de políticas públicas, o compartilhamento de experiências urbanas e o envolvimento das comunidades locais aparecem como respostas quando o foco político torna-se o “local”.
Para Andrea Lampis, professor da Universidade Nacional da Colômbia e coordenador do grupo de trabalho sobre mudanças climáticas, movimentos sociais e políticas públicas do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), a noção de adaptação, ao ser assumida em diferentes escalas de ação, favorece uma visão “neutra” que desconhece as diversas dinâmicas sociais, políticas e culturais em jogo. Por exemplo, o que significa perguntar se os países mais pobres têm menos condições ou capacidade para se adaptar a essas mudanças? Questão que, para o pesquisador, torna visível como as medidas de adaptação também são pautadas por agendas com interesses políticos e econômicos que, muitas vezes, tornam invisíveis as contribuições e responsabilidades dos países do norte global nas alterações do clima que atualmente assistimos.
As medidas de adaptação exigem mais investimentos e desenvolvimento de tecnologias como estratégias para resolver os problemas associados às alterações climáticas, lembra Lampis. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) assim o confirmam. O Adaptation Gap Report, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), alerta que o custo que o processo de adaptação exigirá – particularmente nos países mais pobres – pode ser três vezes maior do que as estimativas iniciais de US$ 70 a 100 bilhões até o ano de 2050, mesmo se houver redução dos gases de efeito estufa e outras medidas de prevenção do aquecimento global. Custos que deverão ser incorporados nos orçamentos nacionais e locais para financiar a adequação em infraestrutura e serviços básicos nos cenários urbano e rural, assim como para o financiamento de tecnologias capazes de lidar com os novos desafios do clima.
No entanto, esses orçamentos teriam a responsabilidade de dar conta de antigos e novos problemas nas cidades dos países em desenvolvimento. Os inúmeros desafios que emergem com a intensificação das mudanças climáticas sobrepõem-se a problemas existentes que, no caso brasileiro – segundo Ricardo Ojima, professor da Universidade Federal de Rio Grande do Norte (UFRN) –, se acumularam a partir de um processo de urbanização excludente e não planejado associado a aspectos como déficit habitacional, ocupações em área de risco, estrangulamento do sistema viário e má distribuição dos equipamentos de serviços de interesse social. “É na escala local onde os efeitos de problemas ambientais são mais evidentes e também onde estes devem ser enfrentados”, afirma Ojima. O que não exclui, necessariamente, segundo ele, a consideração de outras escalas de análise.
Participação e políticas públicas
Para que as cidades possam enfrentar um mundo de crescentes incertezas climáticas, Gilvan Guedes e Alisson Barbieri – professores do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadores da Sub-rede “Cidades” da Rede Clima – consideram importante trabalhar “com os cenários do melhor e pior passado”, assim como criar estruturas capazes de suportar extremos climáticos (por exemplo, criar reservatórios maiores para a captação de água), o que de fato implicaria em custos adicionais. Tornar mais inteligentes as cidades brasileiras em termos de geração de energia, estimular a utilização de painéis solares nos edifícios ou promover o subsídio público para redução da utilização massiva de veículos particulares são algumas das soluções de menor custo público e privado que, para os pesquisadores, podem gerar maior adesão no curto prazo. “Se quisermos depender cada vez menos de mitigação de danos, ou de estratégias de adaptação ineficientes ou ineficazes, esses investimentos devem se tornar prioridade”, afirmam os pesquisadores.
Mitigação e Adaptação
Tradicionalmente a “mitigação” – frequentemente associada ao uso de energias alternativas e renováveis, redução no consumo de energia, arborização urbana, uso de bicicleta e transporte público e outras medidas que permitam a redução das emissões de gases de efeito estufa, – recebeu mais atenção nas esferas políticas e científicas. Somente na última década, percebe-se um maior interesse em compreender as possibilidades de “adaptação” como forma de lidar com os impactos das mudanças climáticas. Essa adaptação visa implementar ações focalizadas em um determinado sistema vulnerável (um setor da economia, um bairro, uma cidade, uma região) como forma de atenuar os impactos associados a eventos climáticos extremos como ondas de calor, baixas de temperatura, chuvas intensas, tempestades ou enchentes.
Tanto quanto esses investimentos, a participação pública também emerge como um elemento relevante a ser considerado. Na análise de Alisson Barbieri e de Raquel de Mattos Viana, ambos pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte exemplifica a preocupação de se pensar, desde uma perspectiva participativa, os desafios dos grandes aglomerados metropolitanos perante as mudanças climáticas.
Esse plano diretor, na avaliação dos pesquisadores, considerou a transversalidade uma questão central e norteadora para a elaboração de políticas urbanas, articulando estratégias que colocam em diálogo as políticas de adequação do sistema ambiental com as políticas sociais direcionadas à redução das vulnerabilidades a partir do acesso à habitação, infraestrutura urbana e serviços de saúde e educação. Mas o processo de elaboração participativa através de ciclos de debates, oficinas e seminários não é suficiente para garantir a efetiva implementação dessas políticas, pois na opinião de Barbieri e Mattos, os diversos e conflitantes interesses de agentes públicos e privados podem impedir que se alcance um consenso.
Projetando cenários futuros
A simulação de cenários futuros tornou-se, também, um procedimento importante para a formulação de políticas públicas. No estudo Vulnerabilidades das Megacidades Brasileiras às Mudanças Climáticas, coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo), da Unicamp, as regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro tiveram seus futuros simulados por computação com o intuito de se avaliar a capacidade dessas cidades enfrentarem os desafios trazidos pela intensificação dos fenômenos climáticos.
No caso da Região Metropolitana de São Paulo, as análises preliminares sugerem que, entre 2070 e 2100, uma elevação média na temperatura da região de 2° C a 3° C poderá dobrar o número de dias com chuvas intensas (acima de 10 milímetros), aumentando os riscos de enchentes, inundações e deslizamentos na região. Previsões que, somadas a fatores de risco como o padrão de uso e ocupação do solo e o funcionamento do sistema de drenagem local, advertem sobre a necessidade de medidas urgentes como o maior controle sobre construções em áreas de risco; investimentos em transportes coletivos – sobretudo o ferroviário –; proteção aos recursos naturais; criação de áreas de proteção ambiental nas áreas de várzeas de rios; e investimentos em pesquisas voltadas para a modelagem do clima e quantificação de benefícios decorrentes de medidas de adaptação às mudanças climáticas na região.
Já no caso da Região Metropolitana de Rio de Janeiro, conforme aponta o documento “RMRJ e as vulnerabilidades às mudanças climáticas”, o impacto do aquecimento global poderia redefinir a linha da costa – as praias podem vir a perder areia e as zonas costeiras sofrer ainda mais com inundações – transformando a paisagem local, assim como tornar o clima mais quente e úmido até o final do século. Situações de incerteza que, para os especialistas que participaram do estudo, aumentam a necessidade de combinar instrumentos e monitoramento em tempo real com a produção de conhecimento e metodologias que permitam aumentar a previsibilidade desses fenômenos e seus efeitos. Além disso, destaca o texto, a “incompetência administrativa e das soluções emergenciais” não poderiam mais nortear a formulação de políticas urbanas de adaptação: “Além do conhecimento científico e da tecnologia, é preciso mobilizar a vontade política necessária à concretização das ações consideradas necessárias”, levar em consideração as particularidades de cada espaço metropolitano e a necessária relação entre desenvolvimento urbano, meio ambiente e saúde pública enquanto objetos de políticas transversais vinculadas aos cenários futuros desenhados pelas mudanças climáticas.
Tangenciando vulnerabilidades
As especificidades dos contextos climáticos e sociais de cada cidade tornam a “adaptação” um problema para a produção de conhecimento e formulação de políticas públicas: por exemplo, experiências bem-sucedidas, em um local determinado, podem ser replicadas em outros lugares? Para Guedes e Barbieri, as ações locais podem funcionar como exemplos de conduta para outros contextos, como no caso da adoção em massa de transporte público por meio do uso de bicicletas, já bastante comum nos países escandinavos, ou o método de irrigação agrícola por gotejamento adotado nos kibutz de Israel, copiado em outros ambientes de baixa umidade do ar.
O compartilhamento de experiências entre cidades constitui-se também numa aposta que vem sendo feita por diversas iniciativas públicas. O ICLEI – Governos Locais pela Sustentabilidade – ganha destaque como uma das redes mais importantes ao reunir 1.012 cidades de todas as partes do mundo, envolvendo 84 países. Dentre as principais atividades do ICLEI, explica Douglas Sathler, professor do Núcleo de Geociências da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), se destaca a constante troca de experiências entre os membros em ambiente virtual, formulação de projetos, pesquisas, elaboração de documentos de referência para ações e a organização de conferências. Outras redes na escala global – o World Mayors Council (Conselho Mundial de Prefeitos para a Mudança do Clima); o Grupo C-40 de Grandes Cidades para a Liderança do Clima e, ainda, no âmbito da América Latina, o Regional Gateway for Technology Transfer and Climate Change Action in Latin American and Caribbean (REGATTA), criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), funcionam como uma espécie de banco de dados de políticas públicas.
Para Ricardo Ojima, as medidas de adaptação não podem se tornar modelos ou “receitas prontas” provenientes de experiências exitosas de outros países ou regiões. Daí a necessidade de elaboração de índices e informações que levem em consideração a especificidade de cada contexto, tornando-se tal elaboração uma ferramenta-chave para os processos de governança urbana e para as políticas de adaptação.
Nesse ínterim, sistemas de informação como o Sistema de Gestão de Riscos e Mudanças Climáticas da cidade de Bogotá (SIRE), na Colômbia, e o Sistema Informatizado da Defesa Civil do estado do Paraná, no Brasil – recentemente reconhecidos pelas Nações Unidas como iniciativas inovadoras na adaptação às mudanças climáticas – cumprem uma função importante enquanto instrumentos para avaliar as vulnerabilidades urbanas – não apenas a curto, mas a médio e longo prazo – favorecendo a troca de informações e a ação conjunta entre instituições e comunidades.
Comunidades urbanas perante o desastre
Os caminhos para lidar com a incerteza das mudanças climáticas são múltiplos e ainda em construção. Esses caminhos passam por considerar o engajamento das políticas públicas urbanas, a troca de informações e experiências entre cidades e a produção de conhecimento capaz de visualizar futuros e de criar instrumentos de previsão e monitoramento. O envolvimento das comunidades locais também precisa compor a paisagem dos futuros possíveis que as políticas públicas visam desenhar.
O programa Smart Communities (Comunidades Inteligentes) no estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, é um exemplo da importância do envolvimento das comunidades locais nas experiências urbanas de adaptação. O projeto oferece suporte para as comunidades no acesso a informações, expertise e recursos financeiros, promove seminários para troca de experiências e divulga informações constantes sobre as atividades das comunidades participantes. “O Smart Communities parte da premissa de que, mesmo que muitas municipalidades possam reduzir emissões e aumentar a adaptação climática por iniciativas próprias, ações conjuntas, envolvendo todas as comunidades que compartilham um mesmo contexto, podem gerar resultados mais significativos”, destaca Douglas Sathler, professor do Núcleo de Geociências da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Outras experiências na América Latina, como os Guardianes de la ladera – projeto da prefeitura de Manizales, na Colômbia – ganham destaque pelo envolvimento das comunidades locais nas estratégias de gestão do risco e prevenção de desastres. Desde 2003, as chamadas mulheres chefes de família dessa região foram treinadas para difundir mensagens nas suas comunidades sobre prevenção e mitigação de riscos. Atualmente o projeto envolve 450 pessoas das diferentes regiões da cidade e 50 escolas públicas, contribuindo para a consolidação de uma cultura de prevenção perante os riscos em regiões de deslizamento de encostas.