O outro encantado no pensamento indígena: uma escuta clínica | João Antônio Pentagna de Moraes
João Antônio Pentagna de Moraes[1]
Um grande equívoco que nos arriscamos a cair ao criticar o processo de subjetivação capitalista dominante no planeta hoje seria supor a possibilidade de se contrapor ao Antropoceno e o pensamento moderno um retorno à natureza ou uma volta às origens, acreditando que outra ontologia precisaria abolir as fronteiras entre animal-humano, natureza-cultura, etc.. Não se trata de dizer: — Somos todos um; ou: — Tudo é um; esses ridículos “monismos de bolso”, tipos de “fantasias fusionais” provenientes do imaginário e da instituição do sacrifício; mas de “imprecisar” as fronteiras em “uma curva infinitamente complexa” (Viveiros de Castro, 2015, p.28) que implica e complica todas as perspectivas ou modos de ser singulares sobre uma ontologia plana, isto é, sobre condições de existência e convivência dos múltiplos viventes em dinâmicas relacionais não piramidais e sem transcendências.
Na ontologia antropocêntrica moderna o ser humano é elevado acima dos animais pelo espírito e então “civilizado” ou domesticado, operação que define a condição qualitativa do mais ser e do menos ser, ou do não ser, do Eu e do Outro. No perspectivismo ameríndio, ao contrário, o sujeito, ou melhor, o agente, só pode ser definido a partir da sua relação com as alteridades, processo que mantém uma heterogênese incessante e faz do viver um agenciamento sempre coletivo. Nessas condições podemos conceber um plano de imanência com múltiplos pontos de vista canibais em variação, onde comer é tomar o ponto de vista ou a força do outro[2], toda uma metafísica predatória do predador, da presa e do aliado e uma axiologia (teoria do valor) pautada no valor intensivo dos atos e na recursividade do roubo e do dom.
Se há apenas um mundo (como no mononaturalismo ocidental) ou um sentido unívoco para o mundo, o humano, julgando-se superior, no sentido de considerar-se a finalidade da natureza, de comportar-se como o dono do planeta, desencanta, expropria, destrói e transforma a vida animada em objetos dos quais vai usufruir, já que os chamados “recursos naturais” lhe seriam destinados para consumo e instrumento de evolução tecnológica. No Gênesis 1:26-27, Elohim diz:
“Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança. Que eles tenham autoridade sobre os peixes do mar e sobre os pássaros dos céus, sobre os animais a domesticar, sobre todas as feras selvagens e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra” (Gênesis apud Derrida, 2002, p. 35).
Eis o povo da mercadoria ou os comedores de terra, como os yanomami chamam os brancos.
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Recebido em: 20/03/2021
Aceito em: 15/04/2021
[1] Mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, Núcleo da Subjetividade. Contato (011) 972459136 e-mail: joaopentagnap@hotmail.com
[2] O que importa do que se come não é propriamente a ínfima porção de carne que cabe a cada um, mas a força do inimigo capturado.
O outro encantado no pensamento indígena: uma escuta clínica
RESUMO: Considerando que tanto Freud, quanto Jung, Lacan ou Deleuze e Guattari se aliaram com teorias antropológicas ao longo de suas obras, operando conceitos como: interdito ao incesto, participação mística, estrutura, filiação, aliança, etc; colocamos a seguinte questão: o que as clínicas psicológicas contemporâneas de matriz eminentemente humanista e as psicanálises, em geral desenvolvimentistas ou estruturais, teriam a aprender com a chamada nova antropologia e o pensamento indígena? Este ensaio pretende ser uma ficção especulativa, ainda um esboço, sobre o ponto de vista conforme o outro é concebido segundo o perspectivismo ameríndio e como o conceito de afinidade tem a potência para tornar-se central ao pensamento e a prática no sentido da formulação de uma clínica da diferença. A proposta é gerar uma tensão com o modo o qual nós mesmos “civilizados”, atuamos e pensamos a relação com a diferença, seja humana ou não-humana.
PALAVRAS-CHAVE: Clínica. Pensamento indígena. Diferença.
The other enchanted in indigenous thought: a clinical listening
ABSTRACT: Considering that both Freud, Jung, Lacan or Deleuze and Guattari have allied themselves with certain anthropological theories throughout their works, operating with concepts such as: interdiction to incest, mystical participation, structure, affiliation, alliance and so on; we ask the following question: what do contemporary psychological clinics with an eminently humanist matrix and psychoanalysis, in general developmentals or estructuralists, learn from the so-called new anthropology and the indigenous thought? This essay intends to be a speculative fiction, still an outline, about the way the other is conceived according to the amerindian perspectivism and how the concept of affinity has a potential to become central to thought and practice towards the formulation for a clinic the difference. The proposal is to generate tension with the way in which we “civilized” ourselves, we act and think about the relationship with the difference, be human or non-human.
KEY-WORDS: Clinic. Indigenous thought. Difference.
MORAES, João Antônio Pentagna de. O outro encantado no pensamento indígena: uma escuta clínica. ClimaCom – Coexistências e cocriações [Online], Campinas, ano 8, n. 20, abril.2021. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-outro-encantado/