Granito ao longo das serras: conquista, escalada e a individuação com as pedras | Maria Julia Fernandes Vicentin


Maria Julia Fernandes Vicentin [1]

 

Granito ao longo das serras: conquista, escalada e a individuação com as pedras [2]

 

Estar com as pedras desde a base da casa da avó e da bisavó entre as montanhas do sul de minas, subir os mirantes em família, avistar as entranhas, percorrer as divisas, adentrar no mar de colinas. As serras da estrada real, caminho e entre fluxo contínuo de ancestrais que através do meu corpo ainda transitam.

Sentada no alto da Serra da Mantiqueira imaginava enxergar as pedras da encosta salgada de onde nasci e também sou cria, a Serra do Mar. Foi em um desses encontros com as pedras, que me foi soprada a informação da extensão das rochas do sul de Minas Gerais até o Litoral Norte de São Paulo. Confirmam geologicamente que ambas as serras são repletas de granito: pedras junto às montanhas onde habita também a floresta atlântica, aquela – dizem – exuberância, contudo tão logo invadida.

Desde que alargaram as nossas trilhas e asfaltaram estradas, as serras desabam com as pedras durante as chuvas de janeiro a janeiro. Os turistas, em suas temporadas, afundam as erosões na encosta litorânea fadada ao desenvolvimento desde os anos 50. Casas em praias privadas tomam para si as terras, as areias e as pedras onde os meus parentes caiçaras colhiam mariscos. Hoje, nem mais mangue, nem mais ribeirão de água doce. Entre as pedras deságua apenas esgoto.

Caminhando e me banhando nas encostas é que estive toda a minha infância com as rochas. Mas a conversa ligeira, de quem sobe e desce pelas beiras, foge dos turistas em direção ao silêncio das pedras na Mantiqueira, não me permitiu ouvi-las em seus pausados ritmos, nem mesmo sermos constantes companheiras. Tive que percorrer por outros solos para então retornar e cavoucar esse território em busca de raízes e rizomas, e encontrar, por fim, pedras entre o barro e a terra.

Precisei estranhar as pedras, tive que ouvir cientificamente sobre a morfologia das rochas e ver a invasão e a exploração das serras, para assim voltar a me reconhecer junto a elas, seja no litoral ou no mar de montanhas da Mantiqueira. Hoje, ao conversar com elas, percebo que para ser dessas serras é preciso me reterritorializar e ser com as pedras. É preciso ser moldada por elas e compartilhar desse território existencial (Guatarri, 1992) onde habitam as mais antigas anciãs dessas montanhas.

Nessas idas e vindas, reencontrei também amigos nativos escaladores que nunca deixaram a Serra da Mantiqueira e menos ainda a convivência com as pedras. Com respeito e com cuidado eles me iniciam nesse profundo coexistir com elas, indicam caminhos, permanências, entradas e saídas3. Mostram-me como as abuelitas pedras4 são seres antigos e que muito nos ensinam. É no montanhismo e na escalada, nesse intenso coexistir com as rochas, que a minha história se transforma, sobretudo ao encontrar novos caminhos não somente nas pedras, mas a partir da relação com elas.

Assim, compartilho da perspectiva de muitos dos escaladores que saúdam as sábias abuelitas: elas são sinceras, agem sobre aqueles que as encontram, que as percebem em seus supostos silêncios.

 

(Leia o artigo completo em PDF).

 

Recebido em: 20/03/2021

Aceito em: 15/04/2021

 

 

[1]           Pesquisadora e artista caiçara da Serra da Mantiqueira, graduada e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, mestranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (PPGAS/USP). E-mail: maju.vicentin@gmail.com

[2]        Esse artigo nasce de um encontro de vida junto às leituras da disciplina “Semânticas da Criação” ministrada pela prof. Dr. Fernanda Áreas Peixoto no departamento de Antropologia da USP ao longo do primeiro semestre de 2020. Agradeço a Fernanda pela leitura da primeira versão do artigo e pelo estímulo a publicação do mesmo. Agradeço também a leitura da segunda versão pelo prof. Dr. Luis Felipe Kojima Hirano, cujos comentários foram imprescindíveis para uma melhor elaboração da teoria ingoldiana junto à prática da escalada.

[3]           Durante a escalada, para quem está subindo a rocha (ascensão), e sobretudo para os iniciantes, visualizar essas linhas de caminhos na rocha pode ser difícil. Visualizar onde estão as agarras, as saliências e as cavidades, onde o escalador irá se segurar, envolve escolher uma direção na rocha, que é o próprio caminho da via já aberta anteriormente por alguém. Assim, é preciso seguir os passos do “conquistador da via”, este que trabalhou na primeira visualização da linha e “abertura do caminho”. É ao longo deste caminho onde estarão os grampos de proteção que foram fixados na pedra por ele. São essas proteções fixas aonde o escalador irá costurar e clipar a corda a cada etapa da subida, para se caso haja uma queda, o escalador esteja suspenso e seguro pelo sistema de proteção instalado na rocha. Quem está no solo também protege o escalador, fazendo a seg (segurança), tracionando a corda através dos equipamentos de proteção. Normalmente, quem está no solo, fazendo a segurança do escalador, por ter outra visão da pedra, ou por já conhecer anteriormente a via, pode indicar betas (dicas) sobre o caminho para o escalador que está subindo. Assim costumam fazer meus amigos escaladores nas poucas vezes que estive com as pedras, pois enquanto aprendiz dessa arte da escalada, ainda tenho dificuldade para enxergar esses caminhos de agarras. Outro indicativo que ajuda a observação do caminho que se deve fazer na rocha é seguir as marcas de magnésio que são deixadas pelos escaladores. O magnésio serve para “ressecar” a mão do escalador a fim de que, com o suor da subida, a mão tenha mais aderência às agarras.

[4]           Os termos em itálico são designações nativas.

 

Granito ao longo das serras: conquista, escalada e a individualização com as pedras

 

RESUMO: Ao longo das Serras do Mar e da Mantiqueira, narrativas nativas emergem ao coexistirem com as abuelitas pedras. Considerando o princípio de individuação proposto por Simondon em diálogo com uma antropol0ogia mais que humana de Ingold, nos atentamos para as relações entre corpo-movimento-ambiente-materialidade. É no montanhismo, na escalada e na conquista, cujos humanos, ao coabitarem e cocriarem suas linhas narrativas com as pedras, seguem ambos, ao longo de um campo relacional e processual de continuidade com a vida.

 

PALAVRAS-CHAVE: Escalada. Individuação. Devir Pedra.

 


Granite along the mautains: conquest, climb and individuation with stones

 

ABSTRACT:  Along the Serra do Mar and Mantiqueira, native narratives emerge when they coexist with the abuelite stones. Considering the principle of individuation proposed by Simondon in dialogue with Ingold’s more than human anthropology, we pay attention to the relationships between body-movement-environment-materiality. It is in mountaineering, climbing and conquest, whose humans, when cohabiting and co-creating their narrative lines with stones, follow both, along a relational and procedural field of continuity with life.

 

KEYWORDS: Climbing. Individuation. Becoming Stone.

 


VICENTIN, Maria Julia Fernandes. Granito ao longo das serras: conquista, escalada e a individuação com as pedras. ClimaCom – Coexistências e Cocriações [Online], Campinas, ano 8,  n. 20,  Abril.  2021. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/granito-ao-longo-das-serras/