Dossiê “Povos ouvir: a coragem da vergonha”

| ano 6, n. 16, 2019 |

| EDITORIAL | 

Em seu décimo sexto número a revista ClimaCom aborda o tema “Povos ouvir – a coragem da vergonha” e acolhe artigos, ensaios, textos jornalísticos e produções artísticas e culturais que buscam gerar novas sensibilidades para se pensar, sentir e agir diante de uma história da vergonha, da qual, um de seus infinitos estratos sedimenta-se nas relações que os humanos têm estabelecido com a Terra e que podem resultar nas mudanças climáticas e nas complexas problemáticas socioambientais nelas enredadas. Trata-se de um dossiê que investe na tarefa de dar corpo à escuta de povos cujas práticas, técnicas e modos pensar, sentir e habitar o mundo são vitais. Povos que estão nas matas, na beira e dentro dos rios e mares, nas aldeias, mas também nas cidades, nos morros e baixadas, nos templos e terreiros, escolas e universidades, nas oficinas, ateliês e laboratórios, nas praças, ruas, jornais e escritórios, no igarapé, no chão da floresta e no espectro eletromagnético… São ribeirinhos, indígenas, pintores, escultores, músicos, professores, estudantes, camponeses, afrodescendentes, aves, peixes, fungos, florestas, sons, imagens, conceitos, plantas, seres microscópicos, rios, montanhas, orixás, mares, espíritos, sonhos, espectros, dados e informações… Na comunidade de Careiro Castanho na Amazônia, na comunidade Jongo Dito Ribeiro na Casa de Cultura Fazenda Roseira, na Casa/Ateliê “A Árvore”, na Praça da Paz e na Mata Santa Genebra em Campinas, São Paulo, na Floresta Amazônica, nas aldeias Guarani no Pará, no Templo de Obàtálá (Oxalá), em Ilé Ifẹ̀ na Nigéria, nas ruas das vilas nas ilhas de São Vicente e Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde, no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em São José dos Campos, na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), no bairro do Bixiga em São Paulo, nas salas de aula e grupos de pesquisa na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade Federal do Acre, na Universidade Estadual de Campinas, na Universidade Federal Fluminense, na Universidade Federal do Amazonas, no Mahku – Movimento dos Artistas Huni Kuin no Acre, nos ayllus no Vale Sagrado no Peru, e em tantos outros espaços-tempos de Abya Yala… O dossiê também convida a pensar numa escuta do que pode se acontecer entre esses povos, e tantos outros, quando a atenção se volta às interseções e conexões, às multicolaborações e cocriações, tanto as que os textos e produções artísticas e culturais apresentadas já ensaiam fazer, quanto aquelas que ainda não existem, mas que pedem para existir, a partir de nossos esforços como leitores.

O dossiê foi um convite a experimentarmos uma espécie de coragem da vergonha que ative problematizações dos gestos voltados ao campo da escuta, que operem uma descolonização da escuta. Pois não se trata de uma vergonha já dada, experimentada em situações extremas já conhecidas, nem de uma vergonha triste, baseada no julgamento, que nos livra dos movimentos vigorosos que precisam ser feitos para não jogarmos o mesmo jogo. As artes e as filosofias – em obras como as de Marguerite Duras, Fernando Pessoa, Primo Levi, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben – nos falam das exigências dessa coragem em adentrar por um território ético desconhecido que prescinda da criminalização, culpabilização, acusação ou denúncia, requerendo outros modos de testemunhar o intolerável, outros modos de pensar e sentir como estamos nele implicados. Por isso a escrita, as composições entre imagens, palavras, sons, forças, coisas, seres e mundos, se tornaram parte do problema que a ClimaCom, mais uma vez, propôs que seja criado e experimentado. Com procedimentos da performance, escrita, dança, pintura, fotografia, instalação, mixagem, rádio, música experimental, livro-objeto, cartografia, diagrama, jardinagem pictórica, proliferam práticas e gestos de sobreposição, contraste, enquadramento, interrupção, desaceleração, bifurcação, recorte, imersão, redução, especulação… Multiplicam-se os movimentos de fazer infinito no finito, diminuir o tom, doar ao invés de retirar, lançar quadrados, desativar automatismos, presentear a natureza com uma ação artística, erguer uma antena de rádio livre, aprender com cientistas, com a natureza, com as tintas, com os rios, com os pássaros, aprender a escutar as relações, as passagens de um material a outro, o que pedem os materiais, o que postulam os orixás, as plantas, rios, corpos, gravadores, água, luz, microfones, papéis, canetas, pincéis, mãos, sintetizadores, cabos, mesas, salas, palavras, caixas de ovos, máquinas fotográficas, fotografias, redes, filmadoras, vídeos, softwares, gentes, tecidos, patuás, cantos de pássaros, árvores, fios de algodão branco, gentes, arquivos, conceitos, tintas, telas, cavaletes, argila ou qualquer coisa que se ofereça como superfície para escrever-pintar-jardinar…

Um chamado, na busca por Povos Ouvir, a darmos potência à vergonha como afeto político que nos força a pensar com estes tempos catastróficos, tempos de negacionismos e retrocessos, em que a estupidez e a tolice parecem querer tomar conta da atmosfera, se infiltrar por nossas narinas e adentrar nossos corpos sem qualquer possibilidade de resistência. Tornar, assim, a própria escuta matéria viva de pensamento e ressurreição alada ao suspender funcionamentos representacionais, desativar as dualidades sujeito-objeto, natureza-cultura, pensamento-ação, teoria-prática, matéria-espírito, arte-ciência, e irradiar modos de curar da surdez perceptiva, dar a escutar o silêncio, entrar em sintonia com outras culturas orais, gerar micronarrativas, despatriarcalizar corpos, compartilhar autoria com a natureza, cuidar dos corpos-Terra, curar memórias adoecidas, cultivar as tintas e as coisas-seres, perceber-fazer floresta, produzir comunidades de alianças, adubar a imaginação, fazer existir, nomear o inominável, criar territórios de escuta protegida, fazer uma experiência existencial, aprender a escutar as relações, tanto as que já pulsam em frequências inaudíveis, como as que ainda não existem, mas que pedem para existir, para ganhar vida e materialidade.

Ao amplificar a potência da escuta com os encontros entre pessoas, culturas, linguagens, tecnologias, narrativas e conceitos este dossiê buscou dar a ver modos de desarquivar a vergonha, multiplicando e proliferando os sentidos de povo para além do habitual, animando escritas-escutas sensíveis, capazes de afetar o presente e abrir novos campos de possíveis para o futuro. Uma escuta afetada por uma “lucidez alegre” (Stengers) que não fixa e imobiliza os povos, antes busca restituir a confiança nos devires, nos movimentos e transmutações incessantes. Uma escuta afirmativa, atenta, sensível, ativa, distraída, cromática, política, silenciosa, desacelerada, polifônica, múltipla… Que se abre ao que acontece quando esses povos se juntam, humanos e não-humanos, naturezas e sobrenaturezas, de modos nunca antes vistos, nem pensados. Que dá a ouvir as vozes do cosmos que pedem passagem.

 

Susana Dias, Carolina Rodrigues, Tatiana Oliveira e Renato Oliveira

Editores

 

SUMÁRIO – Dossiê Povos ouvir: a coragem da vergonha

| ano 6, n. 16, 2019 |

SEÇÃO PESQUISA

Artigos

Diálogos entre novos léxicos políticos e práticas comunitárias de cuidado em Abya Yala

Márcia Maria Tait Lima e Leda Maria Caira Gitahy

Verger: orixás em despossessão

Priscila Lira

Tem que dançar, dançando: ensaio de fabulação especulativa sobre linhas, movimentos e correspondências entre mulheres, terreiros e Universidades

Ilana Paterman Brasil e Zoy Anastassakis

IoT nas tramas da ficção

Carolina Cantarino Rodrigues, Cristiana Gonzalez, Diego J. Vicentin, Maria Carolina Scartezini Cruz e Marta Mourão Kanashiro

A África não cabe em uma forma: uma crítica de Karo Akpokiere à Europa colonial 

Valdir Pierote Silva

Ensaios

A narração de uma ideia: a criação do mundo, antes do 1.º dia em Ilé Ifè 

Obalesun de Obàtálá Holytemple, Ilé-Ifẹ̀, Nigéria | Tradução de Rei Ojele Obàtálá Agbaye e Yeye Meso

Sonhar é sentir – Através da Poética do Mahku – Movimento dos Artistas Huni Kuin

Ibã Huni Kuin, Roberta Paredes Valin e Amilton Pelegrino de Mattos

Ficções no Antropoceno: sonhos (de)compostos em cartas do fim do mundo

Ana Paula Valle Pereira, Daniel Ganzarolli Martins, Laís de Paula Pereira e Shaula Maíra Vicentini de Sampaio

Caminhar por cidades e fotografar plantas urbanas

João Miguel Diógenes de Araújo Lima

Esgrimistas do â-peiron

Luis de Serguilha

devirAÇÕES floresta

Alice Dalmaso e Mariana Vilela

Para começar, escrever textos em cima do prazo é uma vergonha
Rafael Manfrinatto de Carvalho

ARTES

oolhoeorio

Ernesto Bonato

POVOS OUVIR a ressurreição alada

Marta Catunda

Redes para aranhas, folhas, insetos e afins

Cláudia Tavares

Jardinagem cósmica

Seo Constante

Rádio Floresta

Gustavo Torrezan

Todo peso do mundo!

Mirs

Cântico Guarani

Armando Queiroz

Do parto ao partir

Núcleo Artístico Corpus

Radial Paths: stories on fungal tentacularity

Vitor Chiodi

Crônicas sonoras de Cabo Verde

Marco Scarassati

Incomunicáveis – crônicas do cotidiano

Cristiane Guimarães

Sermão dos peixes

Lilian Maus

Paisagem: entre arquivos, lugares e pensamentos

Gabriela Cunha

Poema dentro dos padrões científicos

Sara de Melo

Água mole

Marina Mayumi

 

LAB-ATELIÊ

Rádio Saracura

Augusto Aneas e Jacob Moe

Carbono

Rafael Guiraldelli

Janelas

Alessandra Melo

Ao mesmo tempo

Gláucia Perez

Experimento-ritual de corporreativação 2 – altar-arquipélago

Carolina Scartezini

Chamamento

Tatiana Plens

Os sons à margem: como ouvir?

Maria Cortez

SintropizAR o olhar

Marília Costa

Minas de escrita

Felipe Mammoli e Vitor Chiodi

Floresta²

Susana Dias e Alessandra penha (Orgs.)

Floresta de afetos

Coletivo multiTÃO | Alessandra Penha, Alice Copetti, Gláucia Pérez, Luciana Martins, Marília Costa, Maria Cortez, Mariana Vilela, Rafael Guiraldelli, Susana Dias

 

JORNALISMO

COLUNA ASSINADA

2019, o ano líquido que não acabou

Eduardo Mario Mendiondo

A  comunidade científica brasileira não permitirá que a reflexão sobre as mudanças climáticas estacione

José Marengo, por Allison Almeida

 

SATÉLITE

Segundo encontro “SIMBIOSES – Refúgios para espantar o Antropoceno”

SELVAGEM – ciclo de estudos sobre a vida mediado por Ailton Krenak

Primeiro encontro “SIMBIOSES – Água, matéria viva” acontece na Unicamp nesta sexta

“Devir negro-música-festa-cura” é tema de encontro para pensar a relação entre a comunicação e a floresta

Fórum Permanente: Governança para a Sustentabilidade

Experimentações artísticas e filosóficas com as linhas movem próximo encontro “Ecologia de devires”

 

CHAMADAS ABERTAS

Dossiê “Reciclagem menor”

Até 15 de março de 2020 | Publicação em abril de 2020

Editor: Renato Salgado de Melo Oliveira  – Instituto Federal Baiano (campus Itaberaba)

Devir criança: o ingovernável da vida

Editora | Alice Dalmaso – Universidade Federal de Santa Maria

Até 15 de junho de 2020 | Publicação em agosto de 2020

 


FICHA TÉCNICA

Dossiê “Povos ouvir: a coragem da vergonha”

Editores | Susana Oliveira Dias (Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, São Paulo), Carolina Cantarino Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, São Paulo), Tatiana Plens de Oliveira (Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, São Paulo) e Renato Salgado de Melo Oliveira, (Instituto Federal Baiano – Campus Itaberaba, Bahia).

Curadoria da seção de arte e laboratório-ateliê | Susana Dias

Editoração | Tatiana Oliveira, Susana Dias e Carolina Rodrigues

Revisão | Susana Dias, Carolina Rodrigues, Tatiana Oliveira e Renato Oliveira

Capa | Fotos de Susana Dias, Alessandra Penha e Carolina Avilez

Grupo | multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências, educações e comunicações (CNPq)

Rede de Pesquisa | Divulgação Científica e Mudanças Climáticas

Instituições | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor-Unicamp), Faculdade de Ciência Aplicadas (FCA-Unicamp), Faculdade de Educação (FE-Unicamp), Instituto Federal Baiano – Campus Itaberaba, Bahia.

Pós-graduação | Programa de pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural, Programa de pós-graduação em Educação

Projetos | Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC 2a. Fase) – (Chamada MCTI/CNPq/Capes/FAPs nº 16/2014/Processo Fapesp: 2014/50848-9); “Por uma nova ecologia das emissões e disseminações: como a comunicação pode modular a mais intensa potência de existir do humano diante das mudanças climáticas?” (CNPq); Revista ClimaCom: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/

 

 


 

Bibliografia editorial

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1994.

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.