O devir-criança como trama no processo de pesquisa|Tabta Rosa de Oliveira
Tabta Rosa de Oliveira [1]
O ÁLBUM BORDADO
A criança que eu fui um dia mora
Dentro desse adulto que eu me tornei
Na mesma gaveta onde eu guardo os
“Para de sonhar, leva a vida a sério”
E ela representa tudo o que eu quis ser um dia
Mas, parei de sonhar e levei a vida a sério
Sim!! Exatamente como me disseram pra fazer
Mas ao contrário de mim, ela nunca desiste
Ela insiste em me fazer sorrir
Essa criança não marcou hora na minha agenda lotada de desculpas
Não pediu licença, simplesmente abriu a porta e veio me visitar
E como quem fala
Ei! Você não tá mais de castigo
Ela me olhou e disse a coisa mais séria que eu já ouvi
Você quer brincar comigo? (CASTRO, 2017)
Como na poesia de Alan Castro, a criança que fui um dia, também veio me visitar. Ela me tirou da rotina, me bagunçou, me chamou para brincar. Me fez refletir quem sou, que era, quem seria, quem ser(ia) e me pediu para res(pirar), para voltar a sonhar. Ela me chamou ao vento, me fez sentir a brisa, fez habitar-me. Ela me fez olhar para minha infância, mas também me fez ver as infâncias. A minha filha, as crianças ao meu redor, as crianças de perto, as crianças de longe, as crianças na cidade. Me fez enxergar os muros, as ausências, os isolamentos e pediu: vem brincar!
Este movimento em devir atravessou a pesquisa em andamento: Costurando Memórias: experiências com cotidianos infantis[2], a qual escolho trazer aqui como um recorte para pulsar reflexões sobre o devir criança de uma pesquisadora e suas dobras, a partir da escolha de escrever uma bio:grafia (PRADO, REIGOTA, 2008).
Para não só produzir um relato da minha infância, mas fazer desta narrativa exploratória um encontro em devir criança, propus bordar minhas fotos infantis para auscultar as histórias e tirar delas acontecimentos.
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (BENJAMIM, 1987, p.37).
Neste processo, de buscar a chave, compus um álbum que reúne duas propostas: bordado e fotografia. Os bordados fizeram composição à pesquisa num processo de foto-escrita-experimentação (ROMAGUERA, WUNDER, 2016, p.133). Além de acentuar a mensagem que suspendia nas fotos, ele movimentou a escrita e produziu contornos. Criou intervalos, espaços, vazios para pensar sobre leituras, pensar sobre e com a pesquisa e seu entorno (DALMASO, 2017).
Os acontecimentos lembrados provocaram um encontro com uma personagem conceitual (DELEUZE, GUATTARI, 1992) que apresento nas próximas linhas e que provocou uma terceira coisa, como assim descreve Walter Kohan (2004) em diálogo com Giles Deleuze e Claire Parnet (1988):
Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria infância cronológica. Devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, ideias, entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia, com intensidade e direção próprias (Deleuze; Parnet, 1988, p. 10-15). Um devir é algo “sempre contemporâneo”, criação cosmológica: um mundo que explode e a explosão de mundo (KOHAN, 2004, p.59).
Escolho transitar entre narrativas, em primeira e terceira pessoa, para deslocar o olhar, perceber outras perspectivas. Me distancio num processo reflexivo para ser lida e (in)compreendida por mim e pelo outro como nos diz Marcos Reigota e Barbara Prado (2008). Narro o que por muito tempo foi esquecido: minha infância, minha relação com a natureza e com as crianças. Estes pequenos relatos, “restos” das minhas memórias como diria Nilda Alves (2000), trazem à tona gestos que compõe minha história de vida, minha construção de identidade, de cultura e de expressão política (PRADO, REIGOTA, 2008). Ao rememorar estes momentos, não só registro unidades cronológicas, pontos da minha biografia, mas ponho em prática, nestas idas e vindas de se fazer lembrar, o que Michel de Certeau nomeia “uma arte de fazer pensar” (2012, p.156).
Abro então, meu álbum e faço o convite “Senta, que lá vem história”, buscando nas referências infantis, de um quadro do programa Castelo Ra Tim Bum (1994), este momento de atenção brincante e aberto a curiosidade (Leia o artigo completo em PDF).
Recebido em: 30/06/2020
Aceito em: 30/07/2020
[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (UNISO). E-mail: tabta@costurandomemorias.com.br.
[2] Nome provisório da pesquisa de mestrado em andamento no programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade de Sorocaba.
O devir-criança como trama no processo de pesquisa
RESUMO: O artigo propõe pensar o tema devir-criança como atravessamento no processo de pesquisa. Inicia justificando a escolha da narrativa na perspectiva da bio:grafia (PRADO, REIGOTA, 2008) e tenciona deslocamentos de escrita como forma de trazer à tona a personagem conceitual menina que roubava crianças, costurando assim, possibilidades de encontros em devir. Nesta composição e para acrescentar camadas de reflexão deste cotidiano vivido da pesquisa, adicionou-se o ato de bordar as fotografias das memórias de infâncias num processo de urdidura que entrelaçou as cenas das narrativas e os autores de apoio deste recorte da pesquisa Costurando Memórias: experiências com cotidianos infantis em curso no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba.
PALAVRAS-CHAVE: Devir-criança. Bio:grafia. Bordado.
Becoming-child as fabric in the research process
ABSTRACT: The article proposes a reflection about the theme of becoming-child as a crossing in the research process. It starts by justifying the choice of the narrative from the perspective of biography (PRADO, REIGOTA, 2008) and develops the critical arguments to bring up the conceptual character girl who used to steal children, sewing possibilities of encounters in becoming. In this composition and to add layers of reflection to this everyday experience of research, the act of embroidering the photographs of childhood memories in a sewing process that interwoven the scenes of the narratives and the supporting authors of this section of the ongoing research of the Master Program in Education at the University of Sorocaba, Sewing Memories: experiences with children’s daily lives.
KEYWORDS: Becoming-child. Bio-graphy. Embroidery.
OLIVEIRA, Tabta Rosa de. O devir-criança como trama no processo de pesquisa. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7, n. 18, Set. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-devir-crianca-como-trama-no-processo-de-pesquisa-tabta-rosa-de-oliveira